terça-feira, 30 de novembro de 2010

Wikileaks: O que os americanos pensavam do sucessor de João Paulo II


Os dados revelados pelo Wikileaks também atingem a Igreja católica. Diz o Religión Digital que o Departamento de Estado dos EUA considerava que Ratzinger era “surpreendentemente humilde, espiritual e fácil de manejar. Será um Papa de transição” (aqui).

Joseph Ratzinger não estava na lista dos 20 mais para Papa, onde figuravam entre outros Tettamanzi (Milão), Danneels (Bruxelas) e Castrillón (colombiano, emérito da Congregação do Clero). Até D. José Policarpo (Lisboa) aparecia na lista, porque poderia reunir o apoio dos cardeais latino-americanos.

O sucessor de João Paulo II, diziam os americanos, “deve ter experiência pastoral, experiência internacional para abordar as principais questões da nossa época e ser um bom comunicador, com hábil uso dos novos meios electrónicos para transmitir a mensagem da Igreja de modo claro e poderoso”. Em suma, acrescento eu, um Obama católico.

A eleição de Ratzinger é recebida como um “shock”. Os relatórios enviados para os EUA dizem que a “eleição foi surpresa para muitos” (e é bem sabido que sim), que se tratava de um “guardião da ortodoxia teológica” (e é - pelo menos se tivermos em conta o passado na Congregação para a Doutrina da Fé). Quanto ao prognóstico, dizia: “Vai seguir a sua rota, o seu trabalho centrar-se-á na Europa e talvez seja uma figura de transição”.

Uma vez eleito o Papa, os relatórios, a julgar pelas expressões acima transcritas, diziam exactamente o que circulava nos meios católicos europeus, inclusive quanto à questão transição.

Rostos daquele pelotão

Excerto de uma carta de Etty Hillesum:

"Quando penso nos rostos daquele pelotão de acompanhamento de guardas de uniforme verde armados - meu Deus, aqueles rostos! Olhei-os um a um, escondida por trás de uma janela, e nunca na minha vida houve algo que me deixasse tão assustada. Pus em causa as palavras que constituem o leitmotiv da minha vida: E Deus criou o Homem à Sua imagem. Esta passagem viveu comigo uma manhã difícil".

Ler tudo aqui.

30 de Novembro de 1943. Morre Etty Hillesum

Etty Hillesum, ou o sentido no meio do absurdo

Etty Hillesum nasceu no dia 15 de Janeiro de 1914, em Middelburg (Holanda), e morreu no dia 30 de Novembro de 1943, no campo de concentração de Auschwitz (Polónia). Ainda não tinha 30 anos.

Até 1981 Etty Hillesum foi apenas um dos seis milhões de judeus anónimos que não escaparam ao holocausto nazi. Mas nesse ano, na Holanda, o teólogo e editor J. G. Gaarlandt publicou excertos do diário que a holandesa manteve entre 1941 e 1943. Os diários tinham sido dados pela autora a Klaas Smelik, que depois da guerra os enviou a 12 editoras. Sem sucesso. O filho do primeiro depositário dos diários é que conseguirá a publicação, presidindo actualmente a um Centro de Estudos Etty Hillesum. Depois da Holanda, seguiram-se edições em Inglaterra, França, EUA… e Portugal, em 2008 (na Assírio&Alvim, com o título “Diário 1941-1943”), sempre com grande sucesso, excepto na Alemanha (o que não surpreende) e em Israel (“por causa da mensagem pacifista” – diz ao “Público” de 2 de Maio de 2008 o Smelik júnior).

Numa intervenção pública a que tive oportunidade de assistir, o historiador José Mattoso referiu-se à judia como alguém que, rodeada pelos horrores nazis, “sabe estar acima de tudo isso” e não perde o sentido de Deus. Encontra o sentido no meio do absurdo. “Eu creio em Deus, mesmo quando daqui a pouco os piolhos me devorarem na Polónia”.

O padre e teólogo Tolentino Mendonça, que dirige a colecção Teofanias e prefacia o livro diz que o “Diário” é “uma das aventuras espirituais mais significativas do século”. E exemplifica no prefácio (que pode ser lido, também, no site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, aqui): “No meio da tortura absoluta, é ela quem se preocupa com Deus. «Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares», escreve. (…) Claro que é também uma prece nocturna, povoada de dilacerantes interrogações: «Às vezes pergunto-me, num momento difícil como esta noite, quais são os planos que tens para mim, tu Deus.» Mas o traço mais forte é o de uma impressionante e inexplicável confiança: «Quando ontem, às duas da manhã, finalmente cheguei lá acima ao quarto da Dicky e me ajoelhei quase nua, no meio do quarto, totalmente deprimida, eu disse de repente: “Hoje, vendo bem, vivi coisas grandiosas e esta noite também, meu Deus, agradeço-te por eu poder suportar tudo e por haver poucas coisas que não ponhas no meu caminho.”»

Contra o “grande ódio” aos alemães, que “envenena a alma”, quando os judeus muito compreensivelmente dizem: “Eles que se afoguem. Essa ralé… Deveriam ser todos fumigados”, Etty deixa surgir uma “ideia libertadora, hesitante e frágil, como rebento de relva que começa a nascer num terreno bravio rodeado de ervas daninhas”. “Mesmo que só houvesse um alemão digno de ser protegido contra essa chusma bárbara, por causa desse alemão decente, não se devia derramar o ódio sobre um povo inteiro”. Esta ideia “não significa que uma pessoa deva ter uma atitude indecisa em relação a determinadas correntes”, diz. “Uma pessoa toma posição, indigna-se regularmente com determinadas coisas. Tenta informar-se. Mas o ódio indiferenciado é a pior coisa que existe. É uma doença da própria alma”.

Último sermão de um bispo enquanto anglicano

Sermão de um bispo que deixa a Igreja anglicana.
Mas eu amo a Igreja da Inglaterra – a corrente dominante – e vou sentir falta dela. Ela me ensinou os salmos e a Revised Standard Version [tradução da Bíblia]. Ela me ensinou a música a serviço de Deus. Ela me ensinou a beleza da santidade. Ah, sim, a excitação impertinente do Folies Bergère pode estar disponível no culto anglo-católico, mas a melancólica dignidade do culto das catedrais, o decoro e a decência, é algo que eu também vou sentir falta. Tentei reunir um pouco de tudo isso no culto de hoje. Não há nada mais anglicano do que o Collegium Regale de Herbert Howells, "que toda a carne mortal mantenha silêncio", de Edward Bairstow, ex-organista daCatedral de York, e o canto dos salmos por George Thalben-Ball, ex-organista daTemple Church. Não há nada mais bonito na literatura do que as cadências Cranmerianas da linguagem tradicional do Livro de Oração, que, um pouco incomumente, nós estamos usando hoje. Vou sentir falta até daquelas pessoas da corrente dominante que eu conheci e com quem eu trabalhei.
Ler tudo aqui.

É a economia da salvação, estúpido


Num país como o meu [EUA], tudo se passa como se, quando Deus recebe as almas no céu para as orientar para o Paraíso, o Inferno ou o Purgatório, Ele lhe pusesse só esta pergunta: "O que é que tu fizeste na Terra para aumentar o produto interno bruto?".

John Kenneth Galbraith (1908-2006)

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

29 de Novembro de 1643. Morre Monteverdi

Claudio Monteverdi nasceu em Cremona, no dia 15 de Maio de 1576, e morreu em Veneza, no dia 29 de Novembro de 1643.

Compositor maior do século XVII, deixou madrigais, a ópera “L’Orfeo”, por muitos considerada a primeira obra digna desse nome, e, por exemplo, a “Missa in Illo Tempore”, de que se retira o excerto que acima se reproduz.

Wittgenstein gostaria de ter dedicado um livro a Deus

Ao assinar em 1930 o prefácio ao manuscrito das “Observações filosóficas” - que seriam editadas postumamente, em 1964 –, Ludwig Wittgenstein anotava: “Gostaria de dizer que este livro está escrito em honra de Deus, se estas palavras não soassem hoje vazias, ou seja, se não fossem mal interpretadas. De facto, querem expressar que o livro foi escrito com boa vontade, e na medida em que não tenha escrito com boa vontade, e se, portanto, com vaidade ou coisa parecida, o seu autor quereria sabê-lo condenado".

Li estas frases no preâmbulo de “La teologia del siglo XX”, de Rosino Gibellini (ef. Sal Terrae) e lembrei-me de que se hoje não há muito quem dedique obras artísticas ou literárias ao louvor de Deus, um grupo de jovens anda por aí a encestar para glória de Jesus Cristo.

The Blair Hitchens Project e outros debates

Tony Blair e Christopher Hitchens

Não se pode dizer que tenham sido muito esclarecedores. Os excertos não permitem ir mais longe. Mas nestes dias, deram-se dois debates públicos de alto nível. Num falou-se da bondade/maldade da religião do mundo; noutro, do diálogo entre ciência e fé.

No primeiro, em Toronto (Canadá), participaram Tony Blair, defendendo a religião, e Christopher Hitchens, falando da sua maldade.

Em português um excerto aqui.

Sítio oficial aqui. Mas é preciso pagar para ver, embora haja muito mais informação interessante.

Segundo notícias da rede, ganhou Hitchens (68 contra 32 por cento a favor de Balir).

No segundo, na Itália, suponho que nas páginas do “Corriere della Sera”, estiveram Ignazio Marino (médico e senador) e o Cardeal Martini, emérito de Milão, mais concordando do que discordando.

Em português aqui.

Diz Ignazio Marino: "Às vezes, como crente e como homem interessado pela ciência, desencorajo-me. Outras vezes, conforto-me lembrando que devemos justamente a homens da Igreja algumas das maiores revoluções científicas". É isso.

Ordenação de mulheres: Não se trata de não querer, mas de não poder, diz o Papa

Sobre o que Deus quer e não quer e o consequente poder do Papa, leia-se a reflexão do teólogo espanhol José María Castillo, aqui.

O texto vem a propósito do recente livro do Papa, em que uma das questões abordadas, quanto a mim bem mais importante do que a do preservativo, é a da ordenação das mulheres. Diz o Papa que não é que a Igreja não queira ordenar mulheres. A questão não se põe em termos de vontade. É que não pode. A Igreja não tem poder para tal. Como as coisas estão constituídas, a Igreja não pode ordenar mulheres.

O que o Papa diz, em concreto, é isto:

“Já disse João Paulo II, a Igreja não tem a possibilidade de ordenar as mulheres. Não se trata de não querer, não podemos. O Senhor deu esta forma à Igreja”.

E o teólogo espanhol contrapõe:

“Pues bien, si ahora Dios no quiere que la mujer sea ordenada sacerdote, ¿ quién me puede asegurar a mí que, dentro de unos meses (o años), Dios no pueda cambiar de opinión, como parece ser que empieza a cambiar en lo del preservativo? Detrás del libro del papa lo que está es el problema de Dios.

No hay que ser un lince para sospechar (al menos, sospechar) que, en todo este embrollado asunto, hay algo que no cuadra. Porque o bien lo que sucede es que el papa no tiene la autoridad que representa; o lo que sucede es que representa mal una cosa que es tan seria como la autoridad misma de Dios. En cualquier caso, si Dios es Dios, no parece que pueda andar cambiado de ideas y tomando decisiones variables y volubles, como nos pasa a nosotros los mortales.

Hubo tiempos en que los papas organizaban guerras, condenaban a los heterodoxos y quemaban vivos a los herejes porque Dios lo quería así. Ahora, los papas dicen que Dios no quiere nada de eso. Entonces, ¿en qué quedamos? ¿Es que el Dios, que representa el papa, es un Dios "cultural"? ¿O lo que sucede es que se trata de un Dios "contra-cultural"? El Dios que, por boca de un papa, condenó a Galileo es el mismo Dios que, por boca de otro papa, pidió perdón por lo que se hizo con Galileo”.

A questão da ordenação das mulheres, por muito que alguns não gostem e evitem falar do assunto, é a questão eclesial com mais consequências para o interior e exterior da Igreja. Temo que um dia o Senhor diga que fomos maus servos porque não pusemos os talentos a render (Mt 25).

Veja-se aqui e aqui o que Ratzinger disse noutras ocasiões sobre o assunto.

Já agora, é lamentável, na minha opinião, que o regresso dos anglicanos à Igreja católica esteja a ser principalmente porque não concordam com a ordenação de mulheres como bispos.

Pretensão

Dizer que Deus não existe é já uma pretensão, é pretender conhecer a sua ausência.

Henri Laborit (1914-1995)

domingo, 28 de novembro de 2010

28 de Novembro de 1757. Nasce o pintor e poeta William Blake

William Blake nasceu em Londres no dia 28 de Novembro de 1757. Na mesma cidade morreu, no dia 12 de Agosto de 1827.


Pintor, poeta, tipógrafo foi uma figura seminal do romantismo. As suas pinturas são hoje imensamente reproduzidas, incluindo uma “Escada de Jacob” (aqui). Talvez a mais conhecida seja este “Ancião dos Dias”, inspirado no capítulo 7 do Livro de Daniel.


O poema seguinte é retirado das "Canções da Inocência".


Compaixão, pena, paz e amor,
Todos lhes rezam no seu sofrimento;
E a estas virtudes de tanto fulgor
Entregam o seu agradecimento.

Compaixão, pena, paz e amor,
É Deus, nosso pai adorado,
Compaixão, pena, paz e amor,
É o Homem, seu filho amado.

Tem compaixão humano coração,
E tem a pena uma face humana,
Amor, a forma divina de eleição
E a paz, o traje que irmana.

Todo o homem, em todo o clima,
Que, com dor, reza como é capaz,
Reza à forma humana divina,
Compaixão, pena, paz e amor.

A humana forma amar é um dever,
Para os ateus, os turcos, os judeus;
Compaixão, pena, paz e amor, haja onde houver,
Também é lá que encontrareis Deus.

O jesuíta que inventou o hipertexto

O padre Roberto Busa (Vicenza, Itália, 13 de Novembro de 1913), jesuíta, é um dos pais do hipertexto. Sempre que damos uma clicadela num link, devemos-lhe algo. Desconhecia por completo a história, embora já tivesse ouvido falar do Index Thomisticus (aqui), que no entanto nunca consultei.

Diz o jesuíta, entrevistado pelo “L'Osservatore Romano” de 28-11-2010, que, se tivesse de fazer um verbete enciclopédico sobre si próprio, escreveria: "Pioneiro da informática linguística". E comenta: “ A informática havia sido concebida para os números. Eu pensei em aplicá-la às palavras”.

A entrada "Roberto Busa" da Wikipédia em inglês diz sensivelmente o mesmo: “(...) One of the pioneers in the usage of computers for linguistic and literary analysis” (aqui).

A entrevista (aqui em português) é muito interessante. Foi colega de Luciani (João Paulo I). Queria ser missionário, mas mandaram-no estudar São Tomás de Aquino. Diz que se o ser humano é uma mente que sabe escrever programas, Deus é uma mente que “sabe escrever programas que escrevam outros”. Situa-se num “nível superior de inteligência”. “O cosmos nada mais é do que um gigantesco computador. O Programador é também o seu autor e seu produtor”.

Engraçada é a forma como se dirigiu ao presidente da IBM com a ideia do interligação das palavras. Copio:

Em viagem aos Estados Unidos, pediu uma entrevista com Thomas Watson, fundador da IBM. O velho magnata o recebeu em seu escritório de Nova York. Ao ouvir o pedido do sacerdote italiano, sacudiu a cabeça: "Não é possível fazer com que as máquinas executem o que o senhor está me pedindo. O senhor pretende ser mais norte-americano do que nós".

O padre Busa, então, tirou do bolso um cartãozinho encontrado em uma escrivaninha, que trazia o lema da multinacional cunhado pelo boss – Think (pense) – e a frase "O difícil, nós fazemos logo. O impossível requer um pouco mais de tempo". Devolveu-o a Watson com um movimento de desilusão. O presidente da IBM, tocado em seu ponto fraco, rebateu: "Está bem, padre. Tentaremos. Mas com uma condição: prometa-me que o senhor não irá mudar a IBM, acrônimo de International Business Machines, para International Busa Machines".

É desse desafio entre dois gênios que nasceu o hipertexto, aquele conjunto estruturado de informações unidas entre si por ligações dinâmicas consultáveis no computador com um toque do mouse.

Bento Domingues: Não há teologias definitivas


(Clique para ampliar)

Prenda

Deus não fala abertamente uma linguagem unívoca, só o percebemos no decurso de um esforço que dura tanto como a própria vida, em certos instantes em que o homem recebe de prenda aquilo que nunca teria podido imaginar.

Karl Jaspers (1883-1969)

sábado, 27 de novembro de 2010

27 de Novembro de 1895. Alfred Nobel assina o testamento

No dia 27 de Novembro de 1895, no Clube Sueco-Norueguês de Paris, Alfred Nobel assina o seu testamento, instituindo um prémio de atribuição anual sem distinção de nacionalidade. O Nobel morreu no dia 10 de Dezembro de 1896, em San Remo (Itália).

Diz a história que Alfred Nobel instituiu o prémio para que, sendo o inventor da dinamite e tendo feito fortuna com uma invenção que por vezes é usada para destruir vidas humanas, visse o seu nome associado a algo de positivo.

Isto aconteceu na sequência da morte do irmão. Em 1888, Ludvig Nobel morreu ao visitar Cannes. Um jornal francês, julgando que tinha morrido Alfred, publicou um obituário dizendo que “o negociante da morte morreu” (“le marchand de la morte est mort”). Alfred ficou abismado com tal notícia e arranjou uma forma bem mais positiva para ser recordado. Em boa hora.

Um intervalo no meio do vazio

No Rerum Natura, uma crónica de António Piedade lembra que foi "Georges Lemaître, padre e cientista, o primeiro a propor, em 1927, um início assim para o Universo. Sem dimensões de tempo nem de espaço, uma singularidade. Chamou-lhe a «hipótese do átomo primevo» e baseava-se em assumpções decorrentes da teoria da relatividade geral de Einstein. Anos mais tarde, em 1949, Fred Hoyle haveria de baptizar, ainda que pelo ridículo, esse momento com a designação «Big Bang»".

O texto é sobre, digamos, o vazio do universo e o que somos.

"E que vazio? Incomensurável! Num átomo de hidrogénio, o combustível das estrelas e o elemento mais abundante do Universo, 99,9999% é vazio! O seu núcleo, constituído por um único protão, ocupa apenas 0,00001% do volume de todo o átomo. O resto é nada e uma certa probabilidade de encontramos um electrão, num determinado estado quântico".

"Somos então um intervalo vazio semeado de partículas e energia, cerzidos no tear sempre crescente de tempo e de espaço".

Ler tudo aqui. Sobre Lemaître, ver aqui.

Uma oração de vez em quando. Esta é de João da Cruz


O caminho

Para chegares a saborear tudo,
não tenhas gosto em nada.

Para chegares a possuir tudo,
não queiras possuir nada de nada.

Para chegares a ser tudo,
não querias ser nada em nada.

Para chegares a saber tudo,
não queiras saber nada de nada.

Para chegares ao que não saboreias,
o caminho é não teres sabor.

Para chegares ao que não sabes,
o caminho é não saberes.

Para chegares ao que não possuis,
o caminho é não possuires.

Para chegares ao que não és,
o caminho é não seres.

(...)

Porque se queres ter algo, em tudo,
não tens puro o teu tesouro em Deus.


João da Cruz (1552-1591)

Está consumado. Fizeram mesmo a estátua

Na "Focus" desta semana. Está consumado. Fizeram mesmo a estátua. Ver também aqui.

Anselmo Borges: A Igreja e os sinais dos tempos

Texto de Anselmo Borges. Copiado do DN de 27 de Novembro de 2010.


Começou esta semana a ser distribuído em várias línguas o livro-entrevista "Luz do Mundo. O Papa, a Igreja e os sinais dos tempos", constituído por um conjunto de conversas entre Bento XVI e o jornalista alemão Peter Seewald.


Os média fixaram-se no preservativo. Mas o livro é muito mais abrangente. O seu fio condutor é: "o cristianismo dá alegria, alarga os horizontes. Em última análise, uma existência vivida sempre e só 'contra' seria insuportável". Mas uma coisa é o cristianismo e outra a Igreja. Por isso, o Papa confessa que foi "um choque enorme" a constatação da pedofilia do clero, sobretudo pelas suas dimensões. Admite que o caso terrível de Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, "foi encoberto" por responsáveis do Vaticano. Lamenta não ter tido informação sobre o bispo negacionista R. Williamson, a quem levantou a excomunhão.


No quadro da actual crise mundial, "é absolutamente inevitável um exame de consciência global". O progresso pode ser também destruidor; por isso, "devemos reflectir sobre critérios a adoptar para que seja verdadeiramente progresso". A droga "destrói os jovens, destrói as famílias, leva à violência e ameaça o futuro de nações inteiras". É necessário "olhar para as coisas últimas", mesmo se os novíssimos são "pão duro para os pessoas de hoje". É urgente continuar o diálogo com os judeus e os muçulmanos. Põe a hipótese de renunciar ao cargo, se não estiver em "condições físicas, psíquicas e mentais" para continuar.


E lá vem também a sexualidade, sublinhando a necessidade de uma educação para a sua humanização. De facto, não vale tudo. Mas o pronunciamento papal sobre a legitimidade do uso do preservativo em "casos pontuais, justificados", foi histórico, aliás, saudado como positivo por muitos Governos, pela directora da OMS e pelo secretário-geral da ONU. Afinal, Bento XVI apenas pôs em prática o Evangelho: "O Homem não é para o Sábado, mas o Sábado para o Homem".


Precisamente por isso, penso que será necessário perguntar se a Igreja não terá de rever outras questões. Se, por exemplo, a paternidade e a maternidade responsáveis não implicam a abertura aos anticonceptivos "artificiais", superando uma concepção biologista da natureza. Se não se deverá colocar termo à lei do celibato, pois não é bom impor como lei o que Jesus entregou à liberdade. Se não se deverá tirar as devidas consequências da afirmação papal: os homossexuais "merecem respeito" e "não devem ser rejeitados por causa disso". Se não é necessário repensar a proibição da comunhão aos divorciados que voltaram a casar. Se as mulheres, a partir do comportamento de Jesus, que levou à declaração paulina: "já não há judeu nem grego, nem senhor nem escravo, nem homem nem mulher, pois todos são um só em Cristo", não devem ser tratadas na Igreja sem discriminação, por exemplo, no acesso à presidência na celebração da Eucaristia.


Mais tarde ou mais cedo - é preferível mais cedo -, a Igreja deverá ter um pronunciamento lúcido e claro sobre estas matérias. Para não dar a impressão de que ela lá vai indo, mas aos empurrões, e quando, entretanto, muitos a foram abandonando.


Não foi por acaso que a revelação sobre o uso do preservativo apareceu no mesmo dia em que o Papa impôs o barrete a mais 24 cardeais. No dia seguinte, lembrou-lhes que devem estar sempre junto de Cristo na cruz. Mas cá está! No meio de todo aquele aparato do Vaticano, há aqui uma contradição entre a pompa e a cruz. Há aquele texto do filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard, que diz mais ou menos assim: vai Sua Excelência Reverendíssima o Bispo de Copenhaga, revestido de paramentos com filamentos de ouro e um báculo e uma mitra debruados de pedras preciosas, com todo o seu séquito em esplendor, senta-se num cadeirão de prata e dá início à sua homilia sobre a pobreza. E ninguém se ri !...


A alguém que se sentisse irritado com estas perguntas lembro um texto de Joseph Ratzinger, no qual escreveu que, se hoje se critica menos a Igreja do que na Idade Média, não é porque se tem mais amor à Igreja, mas a si e à carreira.


No último parágrafo, Anselmo Borges remete para um texto que pode ser lido aqui.

Gato

Se Deus está em todo o lado, a porta que se abre para Ele está em todo o lado. A rosa, o pequeno gato, as estrelas da manhã. Mas a porta mais próxima do homem é o homem.

René Barjavel (1911-1985)

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Vitrais de cores que fluem

Vitral na catedral de Gloucester (clique para ampliar)

"As janelas de Denny são inconfundíveis. Os seus vitrais, que podem ser vistos em mais de 30 igrejas e catedrais em toda a Inglaterra, vivem e fluem como nenhuns outros. Em vez de restringir as suas cores às secções definidas pelas junções de chumbo, deixa-as fluir ao longo de toda a janela o que lhe dá uma força elementar e resplandecente. Denny aplica a técnica da impressão de água-forte, com o uso de ácido, e a coloração é feita com nitrato de prata, de acordo com um esquema muito bem planeado de forma a fazer com que a cor avance e recue, o que permite tornar quase invisíveis as linhas de ruptura impostas pelas junções de chumbo. Este tipo de impressão - os vermelhos obtêm-se em algumas horas, mas os verdes, num processo emocionante mas de arrasar os nervos, podem «ficar ali sentados» durante dias - permite evidenciar «todos os matizes da cor que está a actuar no vidro». A coloração através do nitrato de prata produz uma série de tons de amarelo, que vão da prímula ao âmbar, e transforma os rosas em dourados. Mas é vasta a sua paleta de cores: espantosos azuis-ultramarinos e azuis-vinca para o seu vitral de S. Tomás em dúvida, em Gloucester; verdes de jóia para as janelas da casa Thomas Traherne, em Hereford, ou os cinzentos gelados, os rosas e os flamejantes vermelhos do pôr do sol no Mosteiro de Malvern, no Worcestershire. Não há um significado especial para as suas cores, «apenas a beleza por seu próprio direito», como ele diz".

Texto de Ann Wroe, na "Intelligen Life" do Outuno de 2010

Ainda há quem faça vitrais

Vitral na Catedral de Durham. Janela da Transfiguração.

À direita, o arcebispo anglicano Ramsey


Há dias, Tolentino Mendonça escrevia que os homens do séc. XXI ainda há sabem construir catedrais (aqui). Pois também há quem saiba pintar vitrais.

O inglês Tom Denny é um dos mais destacados autores (pintor, construtor, artífice?) desta arte. Fez os vitrais das Catedrais de Gloucester e de Durham.

A revista portuguesa "Intelligent Life" de Outono trouxe um excelente artigo sobre Tom Denny. Pode ser lido aqui em inglês.

Presente de Natal

Perguntaram à pequena Matilde sobre o presente que vai dar ao irmãozinho Miguel no Natal.
- Não sei, respondeu.
- Mas o que é que lhe deste no ano passado?
- Varicela.

Teologia moral católica clássica sobre os preservativos

Sobre como a questão do preservativo pode ser lida à luz da teologia moral católica clássica, veja-se o artigo do teólogo González Faus, jesuíta, publicado originalmente no "El País" de 22 de Janeiro de 2005, quando o bispo Martínez Camino, auxiliar de Madrid, disse que o preservativo ajuda a combater a sida. Na altura provocou polémica. O teólogo catalão veio em defesa do bispo madrileno.

Agora, a propósito do livro de Bento XVI, González Faus republica o texto no seu blogue, Miradas cristianas, e a Unisinos tradu-lo para português, aqui.

Escreve González Faus: O que eu gostaria de acrescentar é que, nesse princípio ["É lícito persuadir a alguém que faça um mal menor se já estiver determinado a cometer um mal maior. E a razão é que quem aconselha isso não pretende um mal, mas sim um bem, isto é, que se escolha um mal menor"] e em todos os casos, tratou-se propriamente não de teologia moral, mas sim de senso comum. Não interveio nesses juízos, em nada, o dado que nós, cristãos, chamamos de "revelado" e que os outros poderão entender como "especificamente católico", como poderia ser a sacramentalidade do matrimónio ou coisas semelhantes.

Porquê

Porta de Meister Eckhart, em Erfurt (Alemanha)

Todas as coisas têm um porquê, mas Deus não tem porquê; e o homem que ora a Deus por qualquer coisa que não seja Ele próprio, esse faz de Deus um porquê.

Mestre Eckhart (1260-1327)

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Bento XVI e os preservativos 4 - Na revista "Sábado", incluindo os outros papas

A revista "Sábado" sai à quinta. Mas esta semana saiu à terça por causa da greve geral da quarta.

25 de Novembro de 1277. É eleito o sucessor do Papa português

Nicolau III (Giovanni Gaetano Orsini) foi Papa de 25 de Novembro de 1277 a 22 de Agosto de 1280. Sucedeu a João XXI, o português Pedro Hispano.

Se Dante colocou o português no Paraíso, já o Nicolau III não teve a mesma sorte. O vate coloca-o no Inferno por causa do pecado da simonia, isto é, a venda de cargos, bênçãos e favores eclesiásticos.

Bia Bang Big Boom

Esta curta ganhou há dias um prémio num festival internacional de cinema. É sobre uma história muito longa que acaba de repente.

Bento XVI e os preservativos 3 - A Igreja "não quer o sexo anárquico". A sério?

No JN, um dos títulos mais informativos de sempre: Igreja "não quer o sexo anárquico". Que tal o democrático? O aristocrático? O burguês?

Estrada


Se o poeta me conduz até Deus, eu quero que isso seja pela estrada por onde eu próprio caminho, as longas estradas terrestres, cheias de armadilhas e de tentações.

Alain-Fournier (1886-1914)

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

24 de Novembro de 1632. Nasce Baruc Espinosa

Estátua de Espinosa em Haia

Baruc Espinosa, ou Bento (de) Espinosa, nasceu no dia 24 de Novembro de 1632, em Amsterdão, e morreu no dia 21 de Fevereiro de 1677, em Haia (Holanda). Era descendente de judeus portugueses, fugidos da Inquisição.

Fala-se muito do racionalismo deste filósofo mas não tanto do criticismo bíblico moderno, de que é fundador. Profundo estudioso da Bíblia e do Talmude, defendeu a aplicação dos métodos filológicos aos livros sagrados – como aos outros – e questionou que Moisés fosse o autor do Pentateuco, como então se cria.

A sua principal obra, “Tratado Teológico-Filosófico”, publicada sob anonimato em 1670, foi acolhida com enorme críticas. “Não me lembro escrevia em 1671 o pastor Philip van Limborch de alguma vez ter lido livro mais pestilencial. O autor põe a ridículo os Profetas e os Apóstolos; para ele, nunca aconteceram milagres e é impossível que venham a acontecer; existe um destino, ao qual o próprio Deus está ligado; além disso, Deus é por ele descrito de tal momo que parece completamente suprimido”.

Um outro ministro protestante holandês escreveu um epitáfio versificado, numa antologia de 1729, que começava assim: “Aqui jaz Espinosa; cuspi sobre o seu túmulo”.

Hoje, Espinosa tem uma estátua em Haia.

Eu voto Ravasi para Papa


D. Gianfranco entregando um prémio à actriz Margareth Madè

A primeira vez que ouvi falar de Ravasi foi há cinco ou seis anos. Perguntei a um padre recém-regressado de Roma quem era o teólogo em voga por lá. “Gianfranco Ravasi. Tem escrito coisas estimulantes, quer no campo bíblico [especialidade de quem me falava], quer na fé-cultura”. Reparei depois que de vez em quando saíam artigos de Ravasi, entretanto feito bispo em 2007, na revista "Communio". E sem saber tinha em casa um livro dele: “Jesus uma boa notícia”, nas Edições Salesianas, com apresentação de Vittorio Messori. O livro (sem data na edição portuguesa; deve ter sido publicado no final dos anos 80; a edição original – vi na Wikipedia italiana – é de 1982) apresenta Ravasi como sendo “um arqueólogo bíblico” que “fez diversas campanhas de escavações na área antiga do Médio Oriente” e “colabora em revistas científicas de divulgação, italianas e estrangeiras”. Não lido, mas a ler em breve.
Há muito a esperar deste líder eclesial, principalmente no campo fé-cultura. É sabido que ele lidera o “Átrio dos Gentios”, o espaço que, em Março de 2011, em Paris, vai pôr a dialogar intelectuais crentes e ateus.
Agora o aspecto curioso e simbólico: na sua recente nomeação para cardeal atribuíram-lhe uma significativa igreja romana. “A mim, coube o de San Giorgio al Velabro, que se encontra nos arredores do Campidoglio e do Fórum, e que foi o título do cardeal John Henry Newman no século XIX”, li aqui.
E agora o aspecto que ficou a ecoar desde há horas na minha mente e que me fez declarar a intenção de voto num conclave em que nunca participarei: Eco também votaria nele.
Gianfranco Ravasi anda a ler o último livro de Umberto Eco, “Il cimitero di Praga”. Ora, Armando Torno, do “Corriere della Sera”, perguntou a Eco o que pensava da nomeação de Ravasi. O semiótico respondeu: "Se falarem com ele, lembrem-lhe que torço por ele. Se ele se tornar Papa, finalmente tratarei por «tu» o Pontífice. Pela primeira e última vez".

Bento XVI e os preservativos 3 - Esgotou o livro, diz o DN

Para ler esta notícia do DN de hoje, 24 de Novembro, uma vez que a meia dúzia de linhas sobre os preservativos é tomada pelo todo, convém não esquecer a figura de estilo chamada sinédoque.

Uma oração de vez em quando. Esta é do cardeal Martini


Dissolve os meus bloqueios

Senhor, provoca-me!
Passa no meio de nós, onde quer que estejamos,
seja entre a multidão,
seja na solidão da prece recolhida,
seja na dureza da realidade quotidiana.
Faz com que não haja diferença entre uma e outra,
que não reneguemos na rotina diária
aquele que desejamos conhecer sobre o monte.
Faz com que haja unidade
nos diversos momentos de nossa existência.
Senhor, através da contemplação da Tua face
que, despertando do sono e ressuscitado da morte,
me infunde confiança,
desfaz, eu Te suplico, os meus temores,
os meus medos, as minhas indecisões,
os meus bloqueios nas escolhas decisivas,
nas amizades,
no perdão,
nas relações com os outros,
nos actos de coragem
para manifestar a minha fé.
Dissolve os meus bloqueios, Senhor!

Cardeal Carlo Maria Martini, cardeal, arcebispo emérito de Milão

[Em Bissau, Guiné, conheci um missionário milanês que conhecia bem o cardeal Martini. Dizia o missionário que para o seu arcebispo rir era preciso um guindaste. A foto de cima não o confirma.]

Bento XVI e os preservativos 2 - Autor dos cartoons do Expresso no DN

No DN de 21 de Novembro de 2010

Bento XVI e os preservativos 1 - no Público


Poeira

Amai toda a criação de Deus, todo o conjunto até à mais pequena poeira. Se amais cada coisa, compreendereis o mistério de Deus nas coisas.

Fiodor Dostoiévski (1821-1881)

terça-feira, 23 de novembro de 2010

23 de Novembro de 1221. Nasce Afonso X de Castela, o Sábio

Afonso X declamando um dos seus poemas

Afonso X de Castela nasceu em Toledo, no dia 23 de Novembro de 1221, e morreu em Sevilha, no dia 4 de Abril de 1284. Pela sua intensa actividade de poeta, escritor e até astrónomo, ficou conhecido pelo epíteto “O Sábio”. Talvez preferisse ser rei ao Algarve (assim se intitulava, talvez para mostrar ascendente sobre o soberano português), mas fez o seu reino um espaço de liberdade para os três monoteísmos.

Em Toledo criou uma espécie de escola de traduções onde cristãos, judeus e muçulmanos resgatavam textos da antiguidade traduzindo-os para castelhano.

Que Ele não me mande visões


Fiz uma aliança com Deus: que Ele não me mande visões, nem sonhos nem mesmo anjos. Estou satisfeito com o dom das Escrituras Sagradas, que me dão instrução abundante e tudo o que preciso de conhecer tanto para esta vida quanto para a que há-de vir.

Martinho Lutero (1483-1546)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

22 de Novembro de 1963. Morre C. S. Lewis

Clive Staples Lewis, mais conhecido por C. S. Lewis, nasceu no dia 29 de Novembro de 1898, em Belfast, e morreu no dia 22 de Novembro de 1963, em Oxford. Especialista em literatura medieval, como J. R. R. Tolkien, de quem era amigo, foi autor de “As Crónicas de Nárnia” e um dos maiores apologetas cristãos do século XX. Era anglicano, convertido na década de 1930.

Foi soldado na I Guerra Mundial. Durante o conflito fez um pacto com o soldado Edward “Paddy” Moore. Se algum deles morresse, o outro zelaria pelos familiares do morto em combate (Lewis era órfão de mãe). O colega morre e Lewis cuida da mãe e filha Moore.

Um dia, numa conversa com operários, em 1944, perguntaram-lhe:

Os materialistas e alguns astrónomos sugerem que o sistema solar e a vida como a conhecemos foram criados por uma colisão estelar acidental. Qual é a visão cristã dessa teoria?

E ele respondeu:

Se o sistema solar foi criado por uma colisão estelar acidental, então o aparecimento da vida orgânica neste planeta foi também um acidente, e toda a evolução do Homem foi um acidente também. Se é assim, então todos nossos pensamentos atuais são meros acidentes – o subproduto acidental de um movimento de átomos. E isso é verdade para os pensamentos dos materialistas e astrónomos, como para todos nós. Mas se os pensamentos deles – isto é, do Materialismo e da Astronomia – são meros subprodutos acidentais, por que devemos considerá-los verdadeiros? Não vejo razão para acreditarmos que um acidente deva ser capaz de me proporcionar o entendimento sobre todos os outros acidentes. É como esperar que a forma acidental tomada pelo leite esparramado pelo chão, quando você deixa cair a jarra, pudesse explicar como a jarra foi feita e porque ela caiu.

(Li aqui)

Philip Roth e Deus


Tiago Bartolomeu Costa comentou a minha surpresa pela sua surpresa por Philip Roth ter dado com a questão de Deus.
Escreveu o colaborador do Ípsilon aqui (nos comentários):
Surpreendo-me porque, precisamente, ele sempre disse, e reafirmou na entrevista à Vanity Fair, que citei no artigo, que "não há [nele] um único osso religioso".
E porque, tendo lido a íntegra da sua obra, achei, sim, surpreendente que ele o fizesse agora. Esperava que o tivesse feito em outros livros, como "Pastoral Americana", até mesmo em "Todo-o-mundo" que começa num funeral, ou em "The Humbling", onde o protagonista se suicida sem sequer pensar em Deus.
O Roth falou sempre muito de religião, obviamente. Mas fê-lo, tal como digo no artigo, usando-a para pensar no Homem, e nunca em Deus. Aqui, em "Nemesis", Deus é co-protagonista.
Eu li menos do que três livros de Roth. Li dois. E nem sequer os principais. Li “O Animal Moribundo” e “Todo-o-Mundo”. São dos mais recentes e, ao que sei, dos menores. Não receber o Nobel desmotiva. Vi o filme “Mancha humana”, mas isso não conta para os livros lidos. E não li os obrigatórios “Pastoral Americana” e “A conspiração contra a América”.
De qualquer forma, li o suficiente para pensar que a questão de Deus pairava sobre a fragilidade humana, quer quando se apaixona por uma mulher mais nova (“O Animal Moribundo”), quer na morte (“Todo-o-Mundo”). Roth, nos que eu li, falava sempre de coisas judaicas, pois claro. Mas com tanta judaicidade, a questão de Deus, mais tarde ou mais cedo, haveria de chegar. Eu não sabia que ele não tinha um único “osso religioso”. Apostava simplesmente que a “carne religiosa” (o corpo é a coisa mais bíblica que há) estava perto.
Há judeus ditos ateus. Pode ser o caso de Roth. Mas em nenhum outro povo a questão divina está tão intrincada na identidade humana. Por que é que ele é judeu, continua a ser judeu, vivendo nos EUA? Como é que um judeu pode ser judeu, gerações após gerações, sem nunca ter vivido na Judeia? A questão de Deus está lá sempre. Por vezes, vem ao de cima. Parece que é o caso do novo romance, que só lerei quando surgir em português, em 2011, suponho.
O caso de Roth faz pensar numa anedota que é mais ou menos assim:
Diz o corcunda:
- O sr. é judeu, não é?
O judeu admira-se:
- Como é que sabe?
Responde o corcunda:
- Pela mesma razão que o sr. não me pergunta se eu sou corcunda.

Ninguém teme a justiça

Bráulio se Saragoça e Isidoro de Sevilha

Um texto com 14 séculos de actualidade:

A avareza passou a ser senhora, e a lei a ser apenas a da ganância e do lucro. Os direitos ficaram sem valor, os prémios e as “cunhas” foram aumentando até virem a substituir a própria lei e o próprio direito. Onde venceram o poder e o dinheiro, aí ficou corrompida a justiça. Ninguém teme a justiça, porque os vícios continuam sem castigo, ninguém censura os criminosos, e aos malvados nada de mau lhes acontece. Os maus arranjam-se bem e até sobem a postos de governo e são sacrificados os inocentes, a quem não se dá a oportunidade de falar ou de se defender. Os honestos vivem na pobreza e os maus na abundância, podendo os criminosos fazer tudo o que lhes apetece.

Os justos passam dificuldades e os maus têm todas as honras; os justos são desprezados e os maus passeiam contentes na vida. Os justos levam uma vida triste e os ímpios amesquinham os justos com o seu poder.

Os bons são prejudicados pelos maus, enquanto os malvados são elogiados. Tantas vezes, os inocentes morrem como culpados por sentenças injustas, julgados por testemunhas e juízes sem escrúpulos, enquanto se arquivam impunemente os processos forenses daqueles réus que são tidos como criminosos pela opinião pública.

Isidoro de Sevilha (560 - 636)

Só há doze bispos no mundo. São todos homens e judeus

No início de novembro este meu texto foi publicado na Ecclesia. Do meu ponto de vista, esta é a questão mais importante que a Igreja tem de ...