(…) Tentaremos identificar brevemente o verdadeiro motivo da irritação que nos acomete e atrapalha quando pronunciamos a fórmula «Santa Igreja Católica» (…)
(…) Se formos sinceros, teremos de admitir que gostaríamos de afirmar que a Igreja não é nem santa, nem católica. (…) Se há uma crítica a fazer ao concílio, só pode ser a de ter sido até muito tímido na sua afirmação tendo em vista a intensidade da impressão de pecaminosidade da Igreja na consciência de todos nós.
(…) Os séculos de história da Igreja estão tão cheios de todo o tipo de falhas humanas que até podemos compreender a visão horrenda de Dante que viu sentada no carro da Igreja a meretriz da Babilónia, ou julgar compreensíveis as terríveis palavras do bispo de Paris, Guilherme de Auvérnia, que no século XIII achava que qualquer um devia ficar horrorizado diante da selvajaria reinante na Igreja: «Já não é uma noiva, mas antes um monstro terrivelmente deformado e feroz […]».
(…) A Igreja não é qualificada de «santa» por se pensar que os seus membros são todos seres humanos santos e sem pecados; esse sonho, que reaparece em todos os séculos, não combina com o contexto lúcido do nosso texto, por mais que corresponda à expressão de um desejo profundo do ser humano, que não o abandonará até que um novo céu e uma nova terra lhe dêem realmente o que este nosso mundo não é capaz de lhe proporcionar. Quanto a este aspecto, já podemos afirmar que os maiores críticos da Igreja do nosso tempo também alimentam, inconscientemente, esse sonho; e, como ficam decepcionados, fecham violentamente a porta de casa e partem para a denúncia do logro. Mas, voltemos ao ponto de partida: a santidade da Igreja consiste naquele poder de santificação que Deus exerce nela apesar da pecaminosidade humana. É esse o verdadeiro sinal da «nova aliança»: em Cristo, o próprio Deus prendeu-Se aos homens, deixou-Se prender por eles. A Nova Aliança já não se baseia no cumprimento mútuo do acordo, porque ela é graça concedida por Deus, a qual não recua diante da infidelidade do ser humano. Ela é a expressão do amor de Deus que não se deixa vencer pela incapacidade do ser humano; pelo contrário, Deus quer bem ao ser humano apesar de tudo e sem cessar; aceita-o precisamente como ser pecador, dirigindo-Se-lhe para o santificar e amar.
Como a liberalidade da entrega do Senhor nunca foi revogada, a Igreja continua a ser sempre santificada por Ele e é nela que a santidade do Senhor se torna presente entre os homens. É verdadeiramente a santidade do Senhor que se torna presente e que escolhe como receptáculo da sua presença, num amor paradoxal, também e precisamente as mãos sujas dos homens. Ela é santidade que resplandece como a santidade de Cristo no meio do pecado da Igreja. Assim, a figura paradoxal da Igreja, em que o divino tantas vezes se apresenta em mãos indignas e se faz presente sempre e apenas sob a forma da não-obstância, é para os fiéis um sinal da não-obstância do amor de Deus, que é sempre maior. Esse encadeamento estimulante entre a fidelidade de Deus e a infidelidade do ser humano que marca a estrutura da Igreja é, por assim dizer, a estrutura dramática da graça, pela qual a realidade desta última, como agraciamento dos que são em si mesmos indignos, se torna presença constante e visível na história. Poderíamos até afirmar que a Igreja, precisamente por causa da sua estrutura paradoxal, feita de santidade e imperfeição, é a figura da graça neste mundo.
Demos mais um passo em frente. No sonho humano de um mundo perfeito, a santidade é imaginada como isenção do pecado e do mal, e não como algo que se mistura com eles; ela permanece sempre uma espécie de pensamento a preto e branco que elimina e condena implacavelmente a respectiva forma negativa (que pode ser vista de muitas maneiras). Na actual crítica da sociedade e nas acções em que ela se cristaliza, manifesta-se novamente com toda a nitidez essa tendência implacável própria dos ideais humanos. O que escandalizava os contemporâneos de Jesus em relação à sua santidade era a ausência absoluta de uma atitude julgadora: Ele nem lançava um raio sobre os indignos, nem autorizava os zelosos a arrancarem a erva daninha que viam proliferar. Pelo contrário, a sua santidade manifestava-se precisamente na promiscuidade, com os pecadores que eram atraídos por Jesus; essa mistura indiscriminada chegou ao ponto de Ele mesmo ser transformado «em pecado», tendo de carregar, pela sua execução, a maldição da lei, que o levou a associar inteiramente o seu destino ao dos perdidos (cf. 2Cor5, 21; Gal3, 13). Ele atraiu a Si o pecado, fazendo com que este se tornasse parte d'Ele, para assim revelar o que é a verdadeira «santidade»: não discriminação, mas união, não julgamento, mas amor que salva. Não é a Igreja simplesmente a continuação dessa atitude de Deus que se mistura com a miserabilidade humana? Não é ela a continuação da comensalidade de Jesus com os pecadores, mediante a qual Ele se misturou com a aflição do pecado a ponto de parecer sucumbir nele? Não se revela na santidade imperfeita da Igreja diante das expectativas humanas de pureza a verdadeira santidade de Deus, que é amor, um amor que não se mantém na distância aristocrática do puro e intocável, mas se mistura com a sujidade do mundo para a superar? Nesta perspectiva, caberá à santidade da Igreja ser outra coisa que não sustentáculo mútuo, devido ao facto de todos serem, afinal, suportados por Cristo?
Confesso que, para mim, essa santidade imperfeita da Igreja é um consolo infinito. Não deveríamos desesperar diante de uma santidade que fosse imaculada e que só pudesse manifestar-se julgando-nos e queimando-nos? E quem poderá afirmar que não precisa de ser apoiado e sustentado pelos outros? E como poderia alguém que vive da tolerância dos outros recusar o exercício da tolerância da sua parte? Não será ela a única retribuição que ele tem para oferecer? Não será esse o único consolo que lhe resta: apoiar tal como ele próprio é apoiado? A santidade da Igreja começa com o apoio e leva à sustentação; quando já não há apoio, deixa de existir também a sustentação, e uma existência sem sustentáculos só pode cair no vazio. Não me importa a afirmação de que estas palavras são a expressão de uma existência débil e fraca - é próprio do cristianismo aceitar a impossibilidade da autarquia e a sua própria fraqueza. No fundo, é sempre um orgulho esconso aquele que age na crítica amargurada e biliosa contra a Igreja, uma crítica que já começa a tornar-se moda. Infelizmente, ela faz-se acompanhar, em muitos casos, por um vazio espiritual que nem permite ao seu autor ver a própria essência da Igreja, que é encarada apenas como uma entidade com fins políticos, cuja organização é vista como patética ou brutal, como se a essência da Igreja não estivesse numa realidade que está para além da organização, onde há o consolo pela palavra e pelos sacramentos que ela concede nos bons e nos maus momentos. Os verdadeiros fiéis não dão muita importância à luta em torno da reorganização das formas da Igreja, porque vivem daquilo que ela sempre foi e é. Para saber o que é propriamente a Igreja, é necessário aproximar-se deles. A Igreja não está em primeiro lugar nos órgãos que a organizam, reformam, governam, e sim naqueles que simplesmente crêem e recebem nela o dom da fé que se torna a sua vida. Só quem experimentou, para além das mudanças dos seus servidores e das suas formas, a acção da Igreja nas pessoas, confortando-as, dando-lhes um lar e uma esperança, um lar que é esperança - caminho para a vida eterna -, só quem teve essa experiência sabe o que é a Igreja, tanto no passado como no presente.
(…) Uma porta que se fecha com estrondo pode até transformar-se num sinal para despertar aqueles que se encontram dentro de casa. Mas é uma ilusão imaginar que se pode construir mais no isolamento do que na cooperação, assim como é uma ilusão pensar numa Igreja dos «santos» em vez de numa «Igreja santa», que é santa porque nela o Senhor distribui o dom da santidade imerecida.
Joseph Ratzinger
Introdução ao Cristianismo
Editora: Principia
Páginas: 248-252
2005 (edição original alemã: 1968)
Sem comentários:
Enviar um comentário