segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Lutero afixa as 95 teses contra as indulgências

No "Público" de hoje.

Como atirar granadas ao rosto de Cristo



Foi representada no Théâtre de la Ville, em Paris, por estes dias, e gerou protestos de católicos, como já gerara em Avignon, quando subiu à cena pela primeira vez. De 2 a 6 de Novembro está no espaço Cent-quatre, também em Paris. A peça “Sobre o conceito do rosto no filho de Deus” (“Sur le concept du visage du fils de Dieu”), do italiano Romeo Castellucci, é sobre um filho que tem de cuidar do seu pai idoso, que é incontinente. Daí que o filho passe parte do tempo a atirar objectos ao rosto de Cristo. Granadas, por exemplo. E outras coisas, no sentido escatológico que já se vê que a peça tem.

Ora, muitos cristãos, que nas notícias que li aparecem sempre apodados de fundamentalistas, não gostam de ver a peça e também atiram objectos, desde ovos a óleo de motor.


Os protestantes dizem que a peça é “cristianofóbica”, enquanto os defensores da peça, incluindo o presidente da câmara de Paris, dizem que não se pode tolerar tais “expressões de fundamentalismo e intolerância”.

Eu nunca estaria numa sessão de protestos deste género, porque as ofensas a Cristo que mais o magoam são as que são feitas contra os rostos dos mais frágeis. Mas também não percebo a indignação do autor, dos actores, dos políticos e outros perante os protestos. Mais que não seja, tais acções devem ser vistas como uma defesa da liberdade de expressão de quem se sente ofendido. Se se faz no próprio teatro, então até pode ser o público a manifestar-se artisticamente.

A sério. Não concordo com os protestos. Mas fico sempre espantado com a obsessão artística contra a figura de Jesus Cristo – que interpreto como sinal de que este homem será sempre sinal de contradição. Cristo é vulnerável, muito mais do que Maomé, por exemplo. Porque é mais democrática e tolerante a cultura a que deu origem. Que se possa ridicularizá-lo, riscá-lo, destruí-lo, só mostra a sua força.

Pac, o católico que não tem pachorra para a veracidade dos factos


Texto da revista do "Correio da Manhã" de domingo passado. Pac (em tempos integrava os Da Weasel) não aprecia lá muito a "empresa, perdão, instituição" Igreja e acha que já não tem "pachorra" para a aturar no que toca à questão da "veracidade dos factos". Se é só em relação a essa questão, será que tem em relação às muitas outras a que a  "empresa, perdão, instituição" se dedica? Pac católico no resto?

Rua do Trabalho

É providência de Deus que o pão se encontre no fim da Rua do Trabalho.


Lido algures por Georgino Rocha 

domingo, 30 de outubro de 2011

Dez convites para um novo humanismo


Julia Kristeva


“Não são dez mandamentos, mas sim dez convites para pensar pontes entre nós”. Segue-se a parte final do discurso de Julia Kristeva no encontro de Assis. O Papa ouviu-o. Um texto para cristãos, ateus e agnósticos que pensam e olham para o outro lado. Copiei daqui.
1. O humanismo do século XXI não é teomorfismo. O Homem Masculino não existe. Não existem nem "valores" nem "fins" superiores, não há nenhum atracadouro do divino junto aos atos mais altos daqueles homens que, do Renascimento em diante, se chamaram "gênios". Depois do Holocausto e do Gulag, o humanismo tem o dever de lembrar os homens e as mulheres que, se nos consideramos como os únicos legisladores, é somente graças ao contínuo questionamento da nossa situação pessoal, histórica e social que podemos decidir a sociedade e a história.
2. Processo de contínua refundação, o humanismo se desenvolve necessariamente por meio de rupturas que são inovações (o termo bíblico hiddouch significa inauguração-inovação-renovação; enkainosis e anakainosis; novatio e renovatio). Conhecer intimamente a herança greco-judaico-cristã, colocá-la sob rigoroso exame, transvalorar (Nietzsche) a tradição: não há outro meio para combater a ignorância e a censura, e, assim, facilitar a coexistência das memórias culturais que se construíram ao longo da história. 
3. Filho da cultura europeia, o humanismo é o encontro de diferenças culturais favorecidas pela globalização e pela informatização. O humanismo respeita, traduz e reavalia as variantes das necessidades de crer e dos desejos de saber que são patrimônio universal de todas as civilizações. 
4. Humanistas, "nós não somos anjos, mas temos um corpo". Assim se expressava, no século XVI, Santa Teresa de Ávila, inaugurando a idade barroca, que não é uma Contrarreforma, mas sim uma Revolução Barroca que inicia o século das Luzes. Porém, o desejo livre é um desejo de morte. E era preciso esperar a psicanálise para reunir na única e última regulamentação da linguagem essa liberdade dos desejos que o humanismo nem censura nem lisonjeia, mas que se propõe a pôr em evidência, a acompanhar e a sublimar. 
5. O humanismo é um feminismo. A libertação dos desejos necessariamente devia conduzir à emancipação das mulheres. Depois dos filósofos do Iluminismo que abriram o caminho, as mulheres da Revolução Francesa pretenderam essa emancipação comThéroigne de Méricourt, com Olympe de Gouges, e assim por diante com Flora Tristan, com Louise Michel e com Simone de Beauvoir, acompanhadas pelas lutas das sufragistas inglesas. E quero lembrar aqui as mulheres chinesas da Revolução Burguesa de 4 de maio de 1919. As lutas por uma paridade econômica jurídica e política requerem uma nova reflexão sobre a escolha e a responsabilidade da maternidade. A secularização é a única civilização que ainda está isenta de um discurso sobre a maternidade. O vínculo passional entre a mãe e a criança, este primeiro outro, aurora do amor e da hominização – aquele vínculo no qual a continuidade biológica se torna sentido, alteridade e palavra é um confiar, um confiar-se. Diferente da religiosidade assim como da função paterna, a confiança materna completa ambas, participando assim, plenamente, da ética humanista. 
6. Humanistas, é por meio da singularidade compartilhada da experiência interior que podemos combater aquela nova banalidade do mal que é a automatização da espécie humana a que estamos assistindo. A partir do momento que somos seres falantes e escritores, já que desenhamos, e pintamos, e tocamos, e jogamos, e calculamos, e imaginamos, e pensamos: justamente por isso não somos condenados a nos tornar "elementos de linguagem" na hiperconexão acelerada. O infinito das capacidades de representação é o nosso habitat, a nossa dimensão profunda e libertadora, a nossa liberdade. 
7. Mas a Babel das línguas também gera caos e desordens que o humanismo jamais conseguirá regular com a simples escuta, embora atenta, prestada às línguas dos outros. Chegou o momento de retomar os códigos morais do passado: sem enfraquecê-los com a pretensão de problematizá-los, e renovando-os a despeito das novas singularidades. Longe de serem puros arcaísmos, as proibições e as limitações são obstáculos que não podem ser ignorados, se não se quer suprimir a memória que é o pacto dos humanos entre si e com o planeta, com os planetas. A história não pertence ao passado: a Bíblia, os Evangelhos, o Alcorão, o Rigveda, o Tao habitam o nosso presente. É utópico criar novos mitos coletivos, e não é suficiente nem mesmo interpretar os antigos. Cabe-nos reescrevê-los, repensá-los, revivê-los: dentro das linguagens da modernidade. 
8. Não existe mais um Universo. A pesquisa científica descobre e investiga continuamente o Multiverso. Multiplicidade de culturas, de religiões, de gostos e de criações. Multiplicidade de espaços cósmicos, de matérias e de energias que coabitam com o vácuo, que se compõem com o vácuo. Não tenhais medo de serdes mortais. Capaz de pensar o multiverso, o humanismo é chamado a se confrontar com uma tarefa epocal: inscrever a mortalidades nos multiversos da vida e do cosmos. 
9. Quem poderá fazer isso? O humanismo, porque ele sabe como cuidar disso. Poder-se-á dizer que o cuidado amoroso do outro, o cuidado ecológico da Terra, a educação dos jovens, a assistência aos doentes, aos deficientes, aos idosos, aos fracos não detém nem a corrida das ciências nem a explosão do dinheiro virtual. O humanismo não será um regulador do liberalismo: ao contrário, será capaz de transformá-lo, sem inversões apocalípticas ou promessas de futuros gloriosos. Tomando-se o seu tempo, criando uma nova vizinhança e solidariedades elementares, o humanismo acompanhará a revolução antropológica que é anunciada tanto pela biologia que emancipa as mulheres, quanto pelo deixar-fazer da técnica e das finanças, e pela impotência do modelo democrático-piramidal, que não consegue canalizar as inovações. 
10. O homem não faz a história, mas a história somos nós. Pela primeira vez, o Homo sapiens é capaz de destruir a terra e a si mesmo em nome das suas religiões, crenças ou ideologias. E, pela primeira vez, os homens e as mulheres são capazes de reavaliar em total transparência a religiosidade constitutiva do ser humano. O encontro das nossas diversidades, aqui em Assis, testemunha que a hipótese da destruição não é a única possível. Ninguém sabe quais seres humanos sucederão a nós, que estamos comprometidos nessa transvaloração antropológica e cósmica sem precedentes. A refundação do humanismo não é nem um dogma providencial, nem um jogo do espírito: é uma aposta. 
A era da suspeita não é mais suficiente. Diante das crises e das ameaças cada vez mais graves, chegou a era da aposta. Devemos ter a coragem de apostar na renovação contínua das capacidades dos homens e das mulheres de crer e de saber juntos. Para que, no multiverso cercado de vácuo, a humanidade possa perseguir longamente o seu destino criativo.

Bento Domingues: Cidadania em tempo de crise

Texto de Bento Domingues no "Público" de 30 de Outubro de 2011

“Toma cuidado e não vivas mal enquanto falas bem”


Alguém que ouvira o versículo «Oferece a Deus um sacrifício de louvor» (Sl 49,14) pensou: «Todos os dias, ao acordar, irei à igreja e aí entoarei um hino da manhã; ao final do dia, um hino da noite; e depois, em minha casa, um terceiro e um quarto hinos. Deste modo, farei todos os dias um sacrifício de louvor que oferecerei ao meu Deus». Fazer isto é bom, se realmente o fizeres, mas livra-te de ficares tranquilo com o que fazes e vê que, enquanto a tua língua fala bem perante Deus, a tua vida não fale mal à Sua frente. [...] Toma cuidado e não vivas mal enquanto falas bem.

Porquê? Porque Deus disse ao pecador: «Que tens tu de recitar os Meus mandamentos, com a Minha aliança na boca [tu que rejeitas as Minhas palavras por trás]?» (v. 16-17) Eis o temor com que devemos falar. [...] Vós, meus irmãos, estais em segurança: se ouvirdes dizer coisas boas, é Deus que ouvis, qualquer que seja a boca que fala convosco. Mas Deus não quis deixar de repreender aqueles que falam, com receio de que adormeçam em segurança numa vida de desordem, afirmando que falam do bem e pensando: «Deus não quererá condenar-nos, pois foi através de nós que quis dizer coisas tão boas ao Seu povo». Portanto, vós que falais, quem quer que sejais, escutai o que dizeis; vós que quereis ser ouvidos, ouvi-vos em primeiro lugar. [...] Possa eu ser o primeiro a ouvir, possa eu ouvir, e ouvir melhor do que todos, «aquilo que o Senhor Deus diz em mim, pois Ele diz palavras de paz ao Seu povo» (Sl 84,9).

Agostinho (354-430), Bispo de Hipona

sábado, 29 de outubro de 2011

A comida que Deus dá

Deus dá comida às aves do céu, mas não a atira pelo ninho dentro.

J. G. Holland

Anselmo Borges: "O último segredo" (1)

Texto de Anselmo Borges retirado do DN de hoje (aqui):

Coube-me, a pedido da Gradiva, apresentar O Último Segredo, de José Rodrigues dos Santos. No sábado passado, na Sociedade de Geografia, com mais de 500 pessoas presentes. O que aí fica é a primeira parte de uma breve síntese do que aí disse.

1. Vamos supor que se descobriram os restos mortais de Jesus Cristo num túmulo de família. Agora, a partir do seu ADN, como não tentar cloná-lo, se ainda por cima o projecto for no sentido de o Jesus clonado instaurar a paz no mundo? Arranje-se uma intriga, com assassinatos pelo meio, dentro de um thriller, a partir dos interesses de uns em levar a ideia por diante e a perseguição de outros, que têm medo da sua concretização por motivos diversos, e temos material para uma história de enredo apelativo. Se, no meio da intriga, se vão descobrindo alegadas "fraudes" na Bíblia e se anuncia "a verdadeira identidade de Jesus", temos os ingredientes para o sucesso. Mesmo se o tema da clonagem de Cristo não é original, pois já há tempos apareceu um romance com esse tema.

2. A partir dos conhecimentos históricos disponíveis e fundados - Jesus é a figura mais estudada da História -, penso que, apesar das controvérsias que continuam, à pergunta "o que podemos saber hoje sobre o Jesus histórico?", se pode responder minimamente dizendo que foi um profeta escatológico judeu, um sábio, alguém com o dom da cura e um carismático, homem de mesa em comum e rompendo com a distinção entre puros e impuros, que impulsionou um movimento messiânico integrador de marginais, um homem de conflitos e perigoso para a ordem religiosa e social estabelecida, condenado pela oligarquia sacerdotal de Jerusalém e mandado executar na cruz pelo procurador romano, "o seu movimento profético-messiânico manteve-se e transformou-se depois da sua morte" (Xabier Pikaza). Alguns dos discípulos afirmaram que estava "vivo" e que tinha sido elevado à glória de Deus.

3. No desenrolar da intriga de O Último Segredo, há pressupostos e afirmações histórico-teológicos. Pergunta-se: o que valem?

Para mim, ao contrário do que insinua José Rodrigues dos Santos, os pilares do cristianismo não são abalados. Assim, não perturba nada a minha fé que Maria seja virgem ou não: o Credo não é um tratado de biologia. Do mesmo modo, não agride a fé cristã que Jesus tenha tido ou não irmãos e irmãs ou que tenha sido casado ou não. O que a boa teologia diz sobre a Santíssima Trindade é que a unidade de Pai, Filho e Espírito Santo é uma unidade de revelação: "Deus mesmo manifesta-se através de Jesus Cristo no Espírito", escreve Hans Küng. Na Bíblia, não se diz que Jesus é o próprio Deus. Ele é confessado pelos crentes como o Cristo, isto é, Messias e Filho de Deus. Ele é a revelação definitiva de Deus, não o Deus (hó theós).

Quanto à ressurreição, ela não pode entender-se como a reanimação do cadáver. O que foi feito do cadáver de Jesus ninguém sabe: pode inclusivamente ter ido para uma vala comum. No entanto, não haveria cristianismo sem a convicção de fé de que Jesus não morreu para o nada mas para o interior de Deus, para a vida eterna de Deus. Deus em quem Jesus acreditava e revelou como amor não o abandonou na morte.

É evidente que a ressurreição não é um acontecimento da história empírica, estudada pelos historiadores nem podia ser, pois transcende a história. O que é histórico é que Jesus foi crucificado e pouco depois os discípulos voltaram a reunir-se em nome de Jesus Cristo, que anunciaram como o Vivente em Deus. Essa experiência de fé foi de tal modo avassaladora que dela deram testemunho até à morte. Mas é claro que uns acreditam e outros não. Uns e outros com razões.

Sou muito mais cauteloso do que José Rodrigues dos Santos, que declarou ao DN que acredita em Deus "porque a ciência já encontrou provas". Ora, Deus não pode ser objecto de provas científicas: um Deus demonstrado cientificamente não seria Deus, mas um objecto mundano e finito. Uns crêem e outros não, e há razões para acreditar e razões para não acreditar, mas não há provas científicas.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

"Público" recorda "Nostra aetate"

No "Público" de hoje. Recorda-se a aprovação da declaração "Nostra aetate", que introduziu um novo modo, mais cordial e dialogante, de relacionamento do catolicismo com as  religiões não cristãs.

A Igreja "não deve temer a verdade", reage José Rodrigo dos Santos

No "Público" de 27 de Outubro

A Igreja não gostou do romance de José Rodrigues dos Santos. Eu estou a lê-lo, vou perto da página duzentos e acho que entretém bem, mais pela constante provocação e por eu apreciar a matéria em causa, a Bíblia e mais concretamente os Evangelhos, do que pelo enredo em si, que é muito pobre. Parece que no final há uma reviravolta. Lá chegarei.

A técnica narrativa, baseada na pergunta-provocação deixada do fim de um capítulo e na resposta desenvolvida após um capítulo de permeio que segue outra linha, é banal. Um pastiche de Dan Brown ou de outro qualquer especialista em suspense, mas de pouca qualidade. Isto digo eu, que não sou pedreiro, mas sei ver se um muro está direito ou torto. E se este autor imita aquele.

Como é o primeiro romance de José Rodrigues dos Santos que leio (há dias disse que li o livro de JRdS de entrevistas, mas dele li também o “Que é Comunicação?”, na antiga Difusão Cultural), espero que os outros sejam melhores. Lê-se fácil, porque as letras são grandes e os capítulos curtos (com outro tipo de paginação, o romance teria metade do volume), e entretém, como disse, mas tudo muito low profile. Dan Brown de bandos costumes. Sem adrenalina.

Quanto ao motivo da polémica com a Igreja. Sim, há motivo para tal. JRdS já disse várias vezes que tudo o que lá está é sabido pela Igreja. Sabe-se nas faculdades de teologia e em alguns grupos bíblicos. Sabem-no os padres, embora muitos dos assuntos sejam discutidos e haja várias correntes sobre os mesmos assuntos. Mas no romance não há contraditório. A inspectora da judiciária italiana, católica, só teve catequese até à primeira comunhão (digo eu, a pensar nas suas respostas, embora não acredite muito na formação bíblica dos dez anos de catequese normais em Portugal), enquanto o historiador português é especialista em tudo o que é antigo. Até é capaz ver os números dos capítulos e versículos no Codex Vaticanus, que é do séc. IV, quando a Bíblia só foi dividida em capítulos e versículos na Idade Média. Claro que JRdS só deve ter visto o Codex Vaticanus na Internet. Mas também aí dá para notar que os capítulos e versículos não estão numerados.

A minha especialidade não é a Bíblia e até agora ainda não encontrei qualquer novidade em termos bíblicos. Mas o problema não está aí. O problema está no que se diz e se conclui a partir dos dados. O problema está no querer desmontar o edifício dogmático da Igreja dizendo: Não vem na Bíblia, logo a Igreja inventou. Se durante algum tempo veio, era fraude, deturpação, falsificação. Assim, a Trindade é “a mais bizarra das invenções do cristianismo” (195), a divindade de Jesus é “fraude” (183), Mateus “aldrabou” a contagem das gerações na genealogia de Jesus (129), Maria não era virgem, etc., etc. Em relação, por exemplo, à virgindade de Maria, nunca se pergunta ou se afirma o que a Igreja entende por virgindade de Maria. O fulcro do dogma está na “concepção de Jesus por obra do Espírito Santo” – a não intervenção humana na geração de Jesus. Mas convém ao romance não apresentar o correcto entendimento do dogma (que também evolui), para que a confusão seja maior.

A questão da fraude da divindade de Jesus é despachada com o início falso do versículo 3,16 da primeira Carta a Timóteo. Onde está “Deus manifestou-se na carne”, deve estar “Aquele que se manifestou na carne”, logo… Curiosamente, a Bíblia que sigo diz: “Aquele que foi manifestado…” Será que esta Bíblia da Difusora Bíblica (chamada “dos Capuchinhos”) não é católica?

Numa reposta global a JRdS, ou a Tomás Noronha, à partida, poderíamos dizer que, para o cristianismo católico, a Bíblia é “apenas” uma das fontes maiores da revelação. A outra é a Tradição. Mas isso poderia soar a desvalorização da Bíblia. Outra possibilidade seria responder caso a caso – o que levaria a um texto bem maior que o do romance.

Fiquemos, para já, nas perguntas de JRdS na notícia do “Público” acima reproduzida:

- A Igreja nega ou não que Jesus era judeu – e, consequentemente, que Cristo não era cristão?
Não percebo bem a pergunta. Jesus era judeu. Quem ousa a parvoíce de afirmar o contrário? Mas claro que houve quem o fizesse, diz Eco, aqui. “Cristo” é um título, uma expressão de fé, atribuída pelos discípulos a Jesus. Só os discípulos é que podem ser cristãos (Nietzsche dizia que só tinha existido um cristão e esse tinha morrido na cruz – mas essa é outra história). Pergunta inócua.

- A Igreja nega ou não nega que há fortes indícios na Bíblia de que Maria não era virgem?
O problema está no que se entende por virgem. Muitos teólogos católicos falam dos irmãos de Jesus, seja pelo lado da mãe, do pai ou de ambos, sem o dogma da virgindade estar em causa. O dogma, em si, é uma proclamação da Igreja também fundamentada com dados bíblicos.

- A Igreja nega ou não nega que existem textos fraudulentos no Novo Testamento?
Não nega. A minha Bíblia – a dos Capuchinhos – diz, por exemplo, que os melhores manuscritos não referem o episódio da adúltera prestes a ser apedrejada (ev. de João), o mesmo se passando com o final de Marcos. Ambos os textos são repudiados como fraudes no romance. Mas as Bíblias católicas já assumiram há muito tempo que não fazem parte dos manuscritos mais antigos e mais perto das fontes.

- A Igreja nega ou não nega que nenhum dos autores do Novo Testamento conheceu pessoalmente o Jesus de carne e osso?
Não nega. É um dado banal dos estudos bíblicos. Fiquemos pelos evangelhos. Em resumo, sabe-se que foram escritos após o desaparecimento dos apóstolos. Se se perde a memória viva dos factos e mensagens, há que passá-los a escrito. Por isso se afirma que os Evangelhos são um dos primeiros frutos da Igreja. A Igreja é anterior aos Evangelhos escritos. De acordo com os costumes antigos (o conceito de verdade e autoria era outro), os textos foram atribuídos à autoridade de alguém que de facto não os escreveu, como os apóstolos Mateus ou João, tal como se atribuía a escrita do Pentateuco (cinco primeiros livros da Bíblia) a Moisés, quando até num deles se descreve a sua morte. Para dizer que um texto foi inspirado, a Igreja teve basicamente três critérios, a apostolicidade do escrito (isto é, a relação com algum apóstolo), a ortodoxia (correspondência com aquilo em que se crê) e o uso litúrgico (uso nas celebrações dos crentes). Daí que tenham sido declarados canónicos quatro evangelhos no meio de dezenas de outros.


Uma última nota. Há um desfasamento entre o que a Igreja (e, já agora, o que é a Igreja?) sabe e crê e o que as pessoas (crentes, não-crentes, questionantes...) sabem e crêem? Sim, sem dúvida, principalmente em relação à parte do saber, embora haja muitos níveis e nuances e também uma grande consonância. Mas é dessa diferença que o romance vive. A esperteza de JRdS está no aproveitamento disso.

Anselm Grun: Liderar é servir as pessoas

Sinto que a função de chefia me apresenta constantemente a tarefa de servir as pessoas e de me colocar totalmente ao serviço de Deus. Para mim, servir significa o seguinte: despertar vida nas pessoas, servir a vida que possa florescer nelas. Trata-se de uma missão altruísta. Mas é também um serviço pelo qual me devo sentido constantemente grato. Quando vejo um colaborador que sente alegria no seu trabalho, quando alguém me deixa de cabeça erguida, sinto, então que vale a pena entregarmo-nos a este serviço de chefia. Eu próprio sou agraciado, quando a vida desperta nas pessoas.


Anselm Grun, "A vida e o trabalho" (ed. Paulinas), pág. 171

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

27 de Outubro de 1508. Morre Isaac Abravanel, o judeu que financiava D. Afonso V



Isaac Abravanel nasceu em Lisboa, em 1437, e morreu em Veneza, no dia 27 de Outubro de 1508. Pertencente a uma das famílias sefarditas mais famosas – diz-se que descendia do rei David –, Isaac Abravanel foi um grande comentador da Bíblia e financiador de Afonso V nas suas conquistas africanas.

Depois da morte do Africano, Abravanel teve de fugir para Castela porque D. João II pensava que o judeu havia conspirado com o duque de Bragança. Instalado em Toledo, rapidamente Abravanel penetrou no círculo da família real e se tornou financiador dos reis católicos.

Apesar dos favores aos reis, teve de sair de Espanha por causa do Decreto de Alhambra, que expulsava os judeus se não se convertessem, tendo ainda oferecido 30.000 ducados pela revogação do decreto. Em vão. O decreto não foi revogado e Abravanel fugiu para Nápoles. Depois de passar por mais algumas cidades italianas, instalou-se em Veneza, onde colaborou na negociação de um tratado comercial entre Portugal e a Sereníssima República.

Dois padres na vida de Tintin


Estreia hoje em Portugal o filme speilberguiano do Tintin. Como blogue católico, parece-me bem recordar que o Tintin nasceu no jornal “Le Petit Vingtième”, o suplemento juvenil do jornal católico “Le Vingtième Siècle”.

Um dia, o director do jornal, o padre Norbert Wallez (de quem se diz que tinha simpatias pelo nazismo; curiosamente, o jornal que dirigia desaparece precisamente com a invasão da Bélgica pelos alemãs, em 1940) pediu a Hergé que desenhasse algo para as crianças. Assim surgiu o Tintin, o repórter inspirado na experiência escutista de Hergé, na edição de 10 de Janeiro de 1929 (a capa que reproduzo é de 1934).


Tintin veio para Portugal graças a outro padre, Abel Varzim, que tendo estudado em Lovaina, conheceu Hergé, com quem se correspondia. O padre natural de Barcelos deu Tintin a conhecer a Adolfo Simões Muller (julgo que se conheciam do jornal "Novidades"), que começou a publicá-lo na revista “Papagaio”. A primeira aparição foi na edição de 16 de Abril de 1936 (capa abaixo reproduzida). Portugal foi o primeiro país não francófono onde o Tintin apareceu, traduzido para Tim-Tim. E a cores.



Descascar batatas e governar impérios

Tanto vale amar a Deus no mundo, a falar, como na Trapa, em silêncio. A questão é fazer alguma coisa por Ele... Recordar-se dele...  O sítio, o lugar, a ocupação é indiferente. Deus tanto me pode fazer santo descascando batatas como governando impérios.


Frei Maria Rafael Arnáiz Báron, "Saber esperar. Pensamentos" (ed. Paulinas), pág. 166

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

26 de Outubro de 1685. Nasce Domenico Scarlatti



Domenico Scarlatti, italiano, nasceu no dia 26 de Outubro de 1685, ano que deu mais dois músicos gigantes: Bach e Händel.


Scarlatti ensinou música à princesa portuguesa Maria Madalena Bárbara, em Lisboa, por volta de 1720, e mais tarde foi para Madrid como maestro da princesa, que se casou com o herdeiro de Espanha. A princesa torna-se rainha e Domenico passa os últimos 25 anos da sua vida em Madrid, onde morre no dia 23 de Julho de 1757.


O melhor de Domenico Scarlatti, filho de Alessandro Scarlatti, são as suas sonatas. Compôs cerca de quinhentas para instrumentos de tecla.


Missionários, bíblias e terra

Jomo Kenyatta (1894-1978), fundador da nação queniana


Quando os missionários chegaram pela primeira vez à nossa terra, eles tinham as bíblias e nós tínhamos a terra. Cinquenta anos depois, nós tínhamos as bíblias e eles tinham a terra. 

Jomo Kenyatta


No mês das missões, é preciso pensar que nem tudo foi bom, embora eu não tenha qualquer dúvida de que os missionários actuais, mais do que os jornalistas ou os políticos, mesmos os bons, são os verdadeiros heróis do nosso tempo.

"Os Quatro Evangelhos", agora em mirandês


Numa tradução de Amadeu Ferreira, a Editora Sociedade Bíblica Portugal publica em mirandês "Os Quatro Evangelhos", ou melhor, "Ls Quatro Eibangeilhos". No blogue Froles Mirandesas, escreve-se:

L 1.º salimiento deste lhibro será l die 12 de Nobembre, a la tarde, na Lhibrarie Ferin (Rua Nova do Almada), an Lisboua. (...) La obra será apersentada pul Porsor Doutor Aires do Nascimento, de l Departamento de Studos Clássicos de la Faculdade de Letras de l'Ounibersidade de Lisboua i de l'Academie de las Ciéncias.

Steve Jobs queria falar com o Papa. Não deu. Criou a Apple


Veio no DN de hoje, no meio de uma série de notas retiradas da nova biografia de Steve Jobs. É caso para dizer que como não conseguiu falar com o Papa resolveu criar a Apple. 

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Padre Himalaya, pioneiro das energias renováveis


O blogue Rerum Natura lembra o "Padre Himalaya (1869-1933), pioneiro das energias renováveis":
O seu feito científico mais célebre foi a invenção de uma máquina solar a que deu o nome de Pyrheliophero, engenho que experimentou em Portugal e nos Pirenéus orientais franceses, antes de, em 1904, levar a sua invenção à Exposição Internacional de São Luis, nos Estados Unidos, assim descrita pelo Padre Mariotte: 
“(…) Os Estados Unidos quiseram fazer em São Luís um balanço mundial do progresso, abrindo uma exposição universal que, ainda mesmo com o seu monumental fiasco, foi um grande acontecimento industrial” (Amadeu de Vasconcelos, Padre Mariotte, Tipografia Ocidental, Porto, 1905), p. 269. 
Pode-se dizer que a ideia do Padre Himalaya, em 1900, era genial: ele queria generalizar uma energia gratuita, renovável. O seu engenho despertou enorme curiosidade e admiração na Exposição de São Luis. 
Diz-nos ainda o padre Mariotte: 
“O Sol é o supremo regulador da vida no nosso globo, o motor imenso de energia multipartida…”. (…) Porque não utilizar ‘directamente’ parte desta energia antes do que ir buscá-la modelizada às variadas formas em que ela se oculta? 
Assim o pensou um ilustre português, o rev. Padre M. A. Gomes Himalaya que conseguiu vencer as enormes dificuldades que eriçavam o problema e que têm desafiado a hábil técnica de muitos e sábios experimentadores, dando-nos una temperatura superior aos 3500º do forno eléctrico. Ao Sol, pois, vai o ilustre inventor buscar uma força calorífica de milhares de graus, por meio de um aparelho por ele denominado pyrheliophero.”, p. 277. 
Se o pyrheliophero, tal como o padre Himalaya o concebeu, não foi para a frente, ele despertou um grande interesse pelas energias renováveis, tendo em França deixado raízes, pois existem ainda hoje “Les Amis du Père Himalaya”, defensores das “energies positives et renouvables”, que advoga a racionalização científica da energia.
Ler tudo aqui. Breve nota sobre o padre inventor aqui.

Bart D. Ehrman é o teleponto de José Rodrigues dos Santos

Bart D. Ehrman

O Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura publicou uma nota sobre "O último segredo". Copio o ponto 3:
A nota final [do romance “O último segredo”, onde se apresentam indicações bibliográficas] de José Rodrigues dos Santos esconde, porém, a chave do seu caso. Nela aparecem (mal) citados uma série de teólogos, mas o mais abundantemente referido, e o que efetivamente conta, é Bart D. Ehrman. Rodrigues dos Santos faz de Bart D. Ehrman o seu teleponto, a sua revelação. Comparar o seu  “Misquoting Jesus. The Story Behind who Changed the Bible and Why” com o “O Último segredo” é tarefa com resultados tão previsíveis que chega a ser deprimente. Ehrman é um dos coordenadores do Departamento de Estudos da Religião, da Universidade da Carolina do Norte, e um investigador de erudição inegável. Contudo, nos últimos anos, tem orientado as suas publicações a partir de uma tese radical, claramente ideológica, longe de ser reconhecida credível. Ehrman reduz o cristianismo das origens a uma imensa batalha pelo poder, que acaba por ser tomado, como seria de esperar, pela tendência mais forte e intolerante. E em nome desse combate pelo poder vale tudo: manobras políticas intermináveis, perseguições, fabricação de textos falsos… Essa luta é transportada para o interior do texto bíblico que, no dizer de Ehrman, está repleto de manipulações. O que os seus pares universitários perguntam a Ehrman, com perplexidade, é em que fontes textuais ele assenta as hipóteses extremadas que defende.
Ler tudo aquiE já agora, o vídeo, que suponho ser uma uma igreja baptista, e dá uma ideia do que se passa.


Homem queima a Bíblia no Vaticano

No DN de hoje, 25 de Outubro. Por momentos cheguei a pensar que era um leitor de José Rodrigues dos Santos, convencido que não restam senão as chamas para um livro cheio de erros e fraudes.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

D. José Manuel Cordeiro no "Público" de hoje


No P2 de hoje ("Público"). Gosta de cinema italiano e das novas fadistas portuguesas. Mais importante do que isso, afirma que "Deus não é prisioneiro da Igreja nem dos sacramentos" e pensa que deve haver uma abertura maior para o caso dos divorciados recasados.

Curso para padre nas Novas Oportunidades.


Livro no blogue duas ou três coisas (obrigado, FCO):

Missa. Não sendo embora a minha especialidade, sei distinguir uma boa de uma má homilia. E aquela havia sido desastrosa e muito desinspirada, indigna do falecido. O sacerdote "embrulhou-se" e não conseguia acabar com jeito. Comentei com um velho amigo, a meu lado. Resposta dele: "Também achei. Este deve ter tirado o curso para padre nas Novas Oportunidades".

Hipátia de braço dado com Agostinho


Hipátia por Rafael

Dizia Hipátia de Alexandria (que viveu entre 355 e 415, aquela sobre a qual se fez o filme “Ágora”, de pretensões anticristãs):
Governar agrilhoando a mente através do medo da punição noutro mundo é tão baixo quanto usar a força.
Curiosamente, também no Norte de África, em Hipona, um contemporâneo, de seu nome Agostinho (354-430), afirmava:
Quem ama a Deus com medo do inferno não é virtuoso, é cobarde.

domingo, 23 de outubro de 2011

"O último segredo" e as minhas ante ante ante ante ante antepenúltimas considerações

Quanto mais se fala de um livro polémico, bem ou mal, mesmo mal, mais ele se vende. É um lugar comum, mas não me inibe de continuar a escrever sobre "O último segredo".

Há a questão das intenções e da verdade. E se alguém afirma coisas como “Cristo, afinal, não era cristão”; Jesus Cristo foi “totalmente diferente do que pensamos”; “a religião cristã era herética”, Jesus era “intolerante para com os não judeus” – tudo frases de José Rodrigues dos Santos nos noticiários de ontem – se não falta à verdade, tem intenções de dizer que os outros (a Igreja católica) faltam, deturpam, enganam.

Na realidade, José Rodrigues dos Santos – que com certeza há muito não vai à missa, a julgar pelo modo como pronuncia Cafarnaum – não deve saber que todas as passagens sobre as quais acha que descobriu uma verdade desconhecida do povo católico são proclamadas nas missas de domingo e da semana.

A linha geral da sua argumentação parece-me mais ou menos esta: apresentar uma verdade que supostamente está em contradição com o que a Igreja anuncia. Por exemplo: “Cristo, afinal, não era cristão”. Isto parece um escândalo. (A formulação mais adequada seria antes “Jesus afinal não era cristão”. Mas ele começou a frase por Cristo.) Se não foi cristão, quem nos enganou? - é a pergunta que fica no ar. Ora, ele, desmentindo o que supostamente se afirmou, aparece como arauto da verdade.


Na realidade, nunca a Igreja afirmou que Jesus foi cristão. Jesus foi judeu e pronto. Os seus seguidores, interpretando a sua vontade e devido às circunstâncias históricas, fizeram a Igreja cristã. Afinal, Rodrigues dos Santos diz a verdade e a polémica esvazia-se porque não tem por onde estar cheia. Mas entretanto lançou a suspeita de que a Igreja terá querido algo diferente (e do diferente ao oposto vai pouca distância) do que queria Jesus Cristo. Teria havido manipulação. Mas saberá JRdS o que Jesus queria? Eu não digo que sei. Só procuro.

Quando há dias li a bibliografia, notei que não fazia referência a nenhum dos dois recentes volumes de Bento XVI sobre Jesus Cristo. Pelo menos ao primeiro, de 2007, deveria.

A Agência Ecclesia colocou-lhe a questão. E o que respondeu JRdS? “Admitiu não ter considerado esta obra do Papa na elaboração do seu novo livro por a considerar «apologética» e de um âmbito teológico, não histórico”, diz a agência católica (aqui).

Mas eu lanço outra explicação. O Papa conhece os autores citados pelo jornalista-escritor e outros que o jornalista ignora, mais de tradição alemã, onde a separação entre o Jesus da história e o Cristo da fé mais se colocou, de forma radical, principalmente a partir de Rudolf Bultmann. Ora a linha de fundo de Bento XVI / Ratzinger, como a de muitos outros teólogos e exegetas, quer alemães quer norte-americanos (os destas duas nações são os melhores), é a da continuidade entre o Jesus histórico e o Cristo da fé, o das convicções dos crentes. Naturalmente isto vai contra a pretensão de JRdS mostrar um novo Jesus e em contradição com o da maioria católica. Além do mais, como citar alguém que está no centro da hierarquia, o Papa, quando a linha de fundo do romance é mostrar que a igreja dominante ocultou e oculta, enganou e engana?

Por fim, valeria a pena ouvir tudo o que o padre e professor Anselmo Borges, insuspeito quanto a simpatias para com a hierarquia, já que por vezes é uma voz incómoda na Igreja portuguesa, disse na apresentação do livro. Fico pela frase que aparece no “Público” de hoje. “[Anselmo Borges] deixou mesmo um desafio: que o autor retire a afirmação de que «as citações de fontes religiosas e informações históricas e científicas incluídas neste romance são verdadeiras». «Não é verdadeiro, não precisa disso, vai ser um bestseller»”.

Bento Domingues: A Bíblia sob investigação

Texto de Bento Domingues no "Público" de 23 de Outubro de 2011

A minha única salvação é a alegria...



A minha única salvação é a alegria... Porque é cruel demais saber que a vida é única e que não temos como garantia senão a fé em trevas - porque é cruel demais, então respondo com a pureza de uma alegria indomável. Recuso-me a ficar triste. Sejamos alegres. Estou sendo alegre neste mesmo instante porque me recuso a ser vencida: então eu amo. Como resposta. E a minha própria morte e a dos que amamos tem que ser alegre, não sei ainda como, mas tem que ser.


Clarice Lispector, Água Viva, pp. 94-95, citada por José Augusto Mourão (Quem vigia o vento não semeia, p. 135)

sábado, 22 de outubro de 2011

George Harrison mudou a forma como nós acreditamos?



George Harrison mudou a forma como nós acreditamos? Um artigo do sítio Religion News Service diz que sim. E se pensarmos que o fascínio pelo Oriente vem muito de uma certa fase dos Beatles, talvez haja motivos para concordar. Mas de um mogo geral, parece-me que se trata de uma influência muito localizada em alguns estratos sociais.

Fala-se disso porque surgiu um livro e um documentário, ambos intitulados “Living in a Material World” (sítio oficial aqui). O livro foi escrito por Olivia, a viúva do segundo “beatle” a falecer. O documentário foi realizado por Martin Scorsese. Passa hoje e amanhã no DocLisboa (Cinema São Jorge, Sala Manoel de Oliveira, 22h).

Anselmo Borges: As revoluções possíveis


Texto de Anselmo Borges no DN de hoje.

Na perplexidade em que nos encontramos, dentro do abalo de um mundo incerto e perigoso, aí está um tema que obriga a pensar. Foi disso que tratou o Simpósio deste ano em Santa Maria da Feira, organizado pela autarquia local, no sábado passado. Foram exactamente quatro horas de debate, no dia em que nas ruas de 951 cidades de mais de 80 países milhares manifestavam a sua indignação.

O que aí fica são apenas impressões, perplexidades, interrogações.


Quem primeiro falou foi Mona Prince, professora de Literatura Inglesa na Suez Canal University. Uma muçulmana liberal - foi bom podermos brindar com um copo de vinho - que participou nas manifestações da Praça Tahrir, obrigando à queda de Mubarak. E contou, exuberante, como tudo se passou em crescendo. Primeiros pedidos: liberdade, pão e trabalho. Depois: não queremos este regime. E os egípcios uniram-se e partilhavam e cristãos e muçulmanos rezavam juntos e todos cantavam a uma só voz e "isso mexe com o corpo". A vida era na Praça Tahrir. A experiência maior: o poder de estar juntos.


E agora? Depois dos acontecimentos trágicos do passado domingo, dia 9, as pessoas estão divididas, e algumas desiludidas. Afinal, os negócios não têm nacionalidade nem religião. O exército quer manter-se no poder? Vai impor-se um Estado islâmico? Mona Prince manifestou a convicção de que nunca os fundamentalistas tomarão o poder, "teremos um Egipto como Estado laico". Oxalá!


Depois, falou Vasco Lourenço. Quem é o revolucionário? "O que faz o máximo do possível". O programa de Abril foi em grande parte cumprido. A democracia está aí, pôs-se fim à guerra colonial. O desenvolvimento foi mais difícil, mas ninguém pode esquecer as transformações económicas, culturais, sociais, operadas. "A mulher foi quem mais ganhou."


Mas desde há alguns anos que vimos advertindo para a necessidade de sociedades mais justas: "Ou arrepiamos caminho ou a revolução dos escravos chegará." E aí está a revolução árabe. De qualquer modo - e referia-se também a Portugal -, não podemos continuar a assistir aos "roubos do capital". A revolta dos escravos também cá vai chegar. O problema é que " se sabe como se começa, ninguém sabe como se acaba". Aqui, Carlos Magno, o moderador, lembrou o princípio da incerteza e manifestou a esperança fundada de que se não chegue a uma conflitualidade incontrolável.


Finalmente, a palavra era do filósofo italiano António Negri, antigo intelectual da esquerda radical, um pensador fundamental no debate filosófico-político contemporâneo. Foi um discurso polémico, denso e ágil, de que só se pode dar pinceladas. Falou de coisas ainda em curso, perguntando se a crise não revela os limites do sistema em que vivemos, uma fractura na democracia como a temos vivido. Fundamentalmente, o que está em causa é a incapacidade de o sistema económico se adaptar às novas figuras da produção social.


A transformação essencial é que o trabalho é menos produção material do que intelectual: os valores da riqueza vêm da capacidade da produção cognitiva. A produção não está nas fábricas, mas na vida toda. A economia neoliberal não sabe responder à "biopolítica": a sociedade produtiva avança mais do que o Estado nacional ou a finança.


Aí estão os endividados, todos endividados. Mas o trabalho é comum. Os Estados nacionais são impotentes, porque o mundo se globalizou. As constituições que temos estão ultrapassadas, porque vêm de um sistema antigo. Hoje, trabalha-se comunitariamente, todos participam na produção. Urgência maior: encontrar o fundamento comum - o comum entre os homens, para lá do privado. As constituições são um contrato. Hoje, porém, quem estabelece o contrato? A finança mundial? Mas ela faz o contrato com quem?


A nova constituição não pode estar assente no medo, como pretendeu Hobbes, mas nesse fundamento comum, sabendo, com Espinosa, que a liberdade em conjunto se multiplica, exactamente como a capacidade vital.


Agora, a opressão é em rede, mas a informática também traz uma potência global de transformação.

Bárbaros no meio de gente que quer mais justiça e equidade



A destruição de imagens religiosas, mesmo que para os iconoclastas sejam ídolos, é sempre um gesto de barbárie. Aconteceu nas manifestações de 15 de Outubro, em Roma, num assalto à paróquia de S. Pedro e S. Marcelino. No meio de muitas pessoas de boa vontade e que procuram a justiça, há sempre uns bárbaros.


Provavelmente ignoram que um dos poemas mais revolucionários de sempre é posto na boca de Maria de Nazaré (o Magnificat, no Evangelho de Lucas):


A minha alma glorifica o Senhor
E o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador.

Porque pôs os olhos na humildade da sua Serva:
De hoje em diante me chamarão bem aventurada todas as gerações.
O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas:
Santo é o seu nome.

A sua misericórdia se estende de geração em geração
Sobre aqueles que o temem.
Manifestou o poder do seu braço
E dispersou os soberbos.

Derrubou os poderosos de seus tronos
E exaltou os humildes.
Aos famintos encheu de bens
E aos ricos despediu de mãos vazias.

Acolheu a Israel, seu servo,
Lembrado da sua misericórdia,
Como tinha prometido a nossos pais,
A Abraão e à sua descendência para sempre. 

Mensagem sempre a ter em conta

Do Hermano Cortés no dia 15 de Outubro de 2011.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Ó José Rodrigues dos Santos, então João Paulo II veio a Portugal em 1976?


Estive a dar uma vista de olhos em “O último segredo”, de José Rodrigues dos Santos. Ainda não o comprei porque logo que entrar para o top da livraria que frequento o preço baixa dois euros. De qualquer maneira li o suficiente para perceber o essencial da tramóia. E li as últimas páginas, pós-desfecho da história, que revelam os livros consultados pelo autor. Este é um daqueles romances com bibliografia. Dá credibilidade. Estão lá o Reimarus, o Schweitzer, o Crossan. Falta o John P. Meyer, padre católico, que já vai no quarto volume sobre Jesus Cristo e é o melhor estudioso do Jesus histórico da actualidade. E não me lembro se está lá Marcus Borg, embora estejam vários das suas imediações intelectuais. Para já não falar dos alemães todos pós Bultmann, que não estão. Claro que aquilo é um romance e não um ensaio teológico. Mas se o autor quer dar credibilidade apontando autores, convém notar que não aponta os mais significativos.

Para mais, li isto na página 561:
Como fontes para as citações bíblicas recorri à “Bíblia Sagrada”, edição lançada pela Verbo em 1976 para comemorar a visita do papa João Paulo II a Portugal nesse ano, e baseada nas melhores traduções dos mais antigos manuscritos em grego ao dispor do Vaticano.
Ora aqui há pelo menos dois erros. Em 1976 o papa era Paulo VI. Wojtyla estava em Cracóvia e só seria eleito em Outubro de 1978. E só veio a Portugal, pela primeira vez, em 1982.

Se é a edição da Verbo em que estou a pensar, uma de capas vermelhas (imagem acima), é interessante pelas gravuras, mas não pelo rigor científico. A mais recente dos capuchinhos (Difusora Bíblica) é bem melhor.

Por outro lado, qualquer Bíblia com pretensões de rigor científico, hoje, é traduzida de manuscritos gregos (NT e alguns livros do AT), hebraicos (AT) e aramaicos (versículos e capítulos do AT), as três línguas bíblicas, e não somente do grego.

Só há doze bispos no mundo. São todos homens e judeus

No início de novembro este meu texto foi publicado na Ecclesia. Do meu ponto de vista, esta é a questão mais importante que a Igreja tem de ...