Mostrar mensagens com a etiqueta Schillebeeckx. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Schillebeeckx. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Como apagar uma recordação perigosa

Divinizar unilateralmente a Jesus, pô-lo exclusivamente do lado de Deus, é eliminar da nossa história um homem incómodo e apagar a recordação perigosa da uma profecia viva e desafiante, uma forma de impor silêncio a Jesus como profeta.

E. Schillebeeckx

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Bento Domingues: "O Papa não é a cabeça da Igreja"

Texto de Bento Domingues no "Público" de ontem.


1. Quando a anormalidade se torna normal, o reencontro com a mais pura normalidade surge como algo de extraordinário. É certamente essa secular situação que explica o espanto, ora sincero ora fictício, diante da clarividente renúncia de Bento XVI. Além disso, as canonizações rituais dos titulares de certas funções na Igreja e a intensa promoção do culto da personalidade acabam por se exprimir numa beata retórica de finados: "Que iria ocorrer agora? Como continuaria sem ele o Ano da Fé?"

É precisamente porque estamos no chamado Ano da Fé, que importa não a desfigurar com expressões ridículas resvalando para a idolatria. Os católicos sabem que o Papa não é a Igreja, nem a cabeça da Igreja e que a si próprio se designa como "servo dos servos de Deus". Como diz S. Paulo, seguindo a verdade no amor, cresceremos em tudo em direcção Àquele que é a cabeça,Cristo; Cabeça da Igreja, que é o seu Corpo, a plenitude daquele que plenifica tudo em todos (Ef. 4, 15; 1, 22-23 e par.).

O apóstolo escolheu e usou estas imagens para que ninguém, na Igreja, pretenda substituir Jesus Cristo, fundamento da unidade eclesial na pluralidade dos seus carismas, por qualquer culto idolátrico. Como os papas não são sucessores de Cristo, é de elementar decência teológica denunciar qualquer expressão de papolatria.

2. S. Tomás de Aquino teve o cuidado de lembrar que o terminal da Fé cristã não é o articulado do Credo, fruto das Igrejas cristãs, mas o próprio Mistério de Deus e, por isso, acrescentou que, em rigor, nem sequer é na Igreja que acreditamos, mas no Espírito Santo, que santifica a Igreja (Cf. ST II-II q. 1 a 1 ad 2; a. 9 ad 5).

Seria, no entanto, abusivo concluir: se o que importa é o Espírito Santo, então não se preocupem nem com a qualidade humana e espiritual da hierarquia eclesiástica, nem com as formulações da fé cristã. Deus providenciará!

Um tal sobrenaturalismo seria uma ofensa à própria teologia de Tomás de Aquino. Bento XVI, no dia 27 do mês passado, véspera da festa deste santo, aludiu a uma das suas mais ousadas buscas de harmonia, embora carregada de tensões, sobretudo em momentos de grandes viragens culturais: a fé cristã não eclipsa a razão; oferece-lhe até, no seu interior, uma nova paisagem e novos campos de investigação. Como diz no seu hino eucarístico, de poética modernidade, quantum potes tantum aude (atreve-te quanto puderes).

A graça não substitui a natureza, nem a natureza dispensa a graça do infinito amor. Importa derrotar as representações que substituem uma tensão existencial por uma persistente rivalidade: se damos muito a Deus, roubamos o ser humano, se concedemos muito ao ser humano, roubamos a Deus. Yves Congar, no diagnóstico da situação religiosa dos anos 30 do século passado, escreveu de forma lapidar: a uma religião sem mundo, sucedeu um mundo sem religião. Jesus Cristo é a radical superação desta rivalidade. Ele incarna a abertura humana ao Mistério de Deus e a abertura divina ao Mistério do Mundo. O encontro da finitude humana, do não divino, com a infinita profundidade divina, faz parte da identidade cristã.

3. Como escreveu E. Schillebeeckx, um dos grandes teólogos do séc. XX: não existe automatismo da graça. Os católicos acreditam que o Espírito de Cristo actua no mundo, na vida da Igreja e na acção ministerial das suas lideranças, mas também sabem que o povo crente e, dentro dele, a hierarquia eclesiástica podem, de diversas formas, acolher ou recusar os dons do Espírito. Quem não está atento à multiforme mediação eclesial da acção do Espírito Santo - porque supõe que goza do monopólio da verdade - acaba por se subtrair à sua influência.

Sempre que o magistério oficial deixa de estar atento às diversas instâncias de mediação que estruturam, o povo cristão corre o perigo de não escutar os reais apelos do Espírito de Deus. Quem ignora estas mediações sucumbe à tentação do facilitismo ou da negligência e torna-se vítima de cegueira e de surdez ideológicas.

Um apelo do Magistério ao Espírito Santo, sem ter em conta as mediações eclesiais, informando-se cuidadosamente antes de assumir as suas próprias responsabilidades, é um apelo em vão. Retirar-se para escutar os murmúrios do Espírito é, sem dúvida necessário, mas não basta nem dispensa o estudo das situações concretas de um mundo em mudança. A omnipresença do mistério da graça não suprime, automaticamente, a presença do mistério da iniquidade na história do mundo, das religiões e das Igrejas cristãs, no passado e na actualidade.

O Estado do Vaticano não é a Igreja Católica. Na opinião pública, até parece que sim. As frequentes narrativas sobre a corrupção e o crime organizado que afectariam algumas das suas instâncias exigem uma informação limpa, acerca de tudo o que vem minando a sua credibilidade e a do papado. As comunidades católicas, espalhadas pelo mundo, têm direito a essa informação. Não se pode esquecer que, sem ética, as invocações místicas são mistificações. O Vaticano só se justifica como instrumento de liberdade da missão da Igreja. Atraiçoa-se quando se deixa dominar pelo carreirismo e por endeusados negócios de banqueiros, nas suas vertigens criminosas.

sábado, 13 de outubro de 2012

Anselmo Borges: 11 de Outubro de 1962



Texto de Anselmo Borges no DN de hoje.

"Devemos discordar desses profetas das desgraças, que anunciam acontecimentos sempre funestos, como se o fim do mundo estivesse próximo." A Igreja quer ir ao encontro dos homens nas suas alegrias e esperanças, nos seus problemas e dificuldades. "Nos nossos dias, a Igreja de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade: julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validade da sua doutrina do que condenando erros."

Foi com estas palavras que o Papa João XXIII inaugurou há 50 anos, precisamente no dia 11 de Outubro de 1962, o Concílio Ecuménico Vaticano II, um dos acontecimentos maiores do século XX - o Presidente da França, Charles de Gaulle, considerou-o "o mais importante". Nele, como ironicamente escreveu a "Der Spiegel", deu-se "uma viragem copernicana, na qual Roma confessou que o Céu talvez ainda gire à volta da Basílica de São Pedro, mas a Terra não".

A Cúria Romana preparava-se para manter praticamente tudo na mesma. Houve, porém, um conjunto de cardeais que obrigaram à viragem. Um deles foi o cardeal Josef Frings, de Colónia, que tinha como assessor um jovem professor de Teologia, Joseph Ratzinger, crítico de cinco dos sete esquemas preparatórios fundamentais do Concílio. Ele e outros peritos, como Karl Rahner, Edward Schillebeeckx, Yves Congar, Hans Küng pensavam na urgência de uma renovação profunda e reconciliação da Igreja com o mundo moderno. Ratzinger foi então um provocador, até certo ponto um rebelde, favorável às línguas vernáculas na liturgia e criticando duramente a Cúria e a sua "atitude antimoderna": "A fé tem de enfrentar-se com uma nova linguagem, uma nova abertura."

Só quem viveu antes do Concílio pode aperceber-se da revolução que ele constituiu. Foi um esforço real e sincero de aproximação de todos. Como se diz no início da Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo, Gaudium et Spes, "as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e das mulheres do nosso tempo, sobretudo dos pobres e de todos os aflitos, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo, e nada existe de verdadeiramente humano que não encontre eco no seu coração".

E talvez o mais paradoxal é que a Igreja, com o seu aggiornamento, diálogo, abertura, apenas estava, no essencial, a reconciliar-se com o melhor do Evangelho, que, desgraçadamente, tinha tido de se impor na modernidade contra a Igreja oficial: os direitos humanos, a dignidade sagrada da pessoa humana, a liberdade religiosa, a inviolabilidade da consciência.

Devia tornar-se claro que a Igreja, "luz dos povos", é, antes de mais, "povo de Deus" e não a hierarquia e mesmo esta tem de contar com a colegialidade episcopal e a participação dos leigos, contra uma estrutura piramidal. A revelação não pode ser concebida como um ditado de Deus; apela-se, portanto, à leitura da Bíblia, que estava afastada dos fiéis, mas no quadro de uma investigação histórico-crítica. A Igreja deve estar atenta aos "sinais dos tempos", como a emancipação das mulheres, a descolonização, o mundo do trabalho, da ciência e da técnica. As realidades terrestres são autónomas e não há oposição entre a criação de Deus e a acção criadora dos homens no mundo; a esperança da salvação no além tem de dar sinais e começar já aqui. Denunciou-se o anti-semitismo, a Igreja abriu-se ao diálogo ecuménico com as outras Igrejas e confissões cristãs, com as outras religiões, com os não crentes, com todos os homens de boa vontade. A viragem mais visível foi na liturgia: em vez do latim, adoptou-se a língua vernácula, o presidente deixou de celebrar de costas para o povo, todos eram convocados para uma participação activa, fraterna e festiva.

Passados 50 anos, muito falta fazer por uma Igreja verdadeiramente conciliar. O ecumenismo não dá passos. Os bispos, como faz notar a "Der Spiegel", continuam "marginais", "a Perestoika na Cúria não se realizou". Continua a dominar em Roma "uma corte medieval" e lutas pelo poder. Sobretudo, falta a fé e o ânimo de então.

domingo, 15 de agosto de 2010

Teólogo critica silêncios e condenações da hierarquia católica

“Silêncios ominosos sobre pessoas sanguinárias, ideologias totalitárias e ditaduras militares com as mãos manchadas de sangue. Condenações imisericordiosas contra homens e mulheres de mãos limpas, de honestidade inatacável, de vida exemplar”. As palavras são de Juan José Tamayo, no “El País” de 14 de Agosto de 2010, sobre a hierarquia da Igreja católica dos últimos 70 anos.

O teólogo espanhol refere-se ao silêncio relativamente a ditaduras e a líderes religiosos imorais (o exemplo é Marcial Marcel, fundador dos Legionários de Cristo) e à condenação de teólogos como Lubac, Rahner, Congar, e Schillebeeckx, que tentaram o diálogo com a modernidade.

Para ler em espanhol aqui e aqui em português.

domingo, 11 de julho de 2010

Bento Domingues: Entre a memória e o sonho

Escreve Bento Domingues, citando o filósofo Emilio García Estébanez (dominicano espanhol, 1937-2007), e nisso vejo a maior crítica ao papado de Bento XVI: “Não se pode invocar a razão e, depois, não ligar às suas exigências”. Texto no "Público" de 11-07-2010.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Para não esquecer o Vaticano II

"Apóstolos no Concílio", pintura de Jean Guitton

"Por certos aspectos, sou ainda um teólogo feliz, mas, por outros, sou um teólogo triste, porque algumas coisas que acontecem na Igreja causam-me tristeza. Vejo que o espírito do vaticano II se está a enfraquecer". A frase é de Schillebeeckx , citado por Francesco Strazzari, na Além-Mar de Fevereiro de 2010.

O II Concílio do Vaticano parece cada vez mais esquecido. Pelo menos é o que se diz. Os cardeais jesuítas Carlo Maria Martini e Roberto Tucci criaram, por isso, com mais sete teólogo, o sítio Viva il Concilio - para "promover e valorizar o Vaticano II".

domingo, 10 de janeiro de 2010

Ecos de uma conferência em Lisboa - 3 Dessacralização do mundo

A morte de Edward Schillebeeckx levou-me a reler o artigo “O Deus oculto” e a admirar-me com a actualidade de um texto que tem mais de 40 anos. E com a nossa desatenção de católicos perante o que está à frente dos nossos olhos. Talvez as palavras do teólogo belga-holandês na altura parecessem desadequadas à realidade portuguesa. Poder-se-ia pensar, julgo eu, que tinham como referência a secularização do centro da Europa e a debandada dos cristãos das igrejas oficiais (com as igrejas holandesas transformadas em pousadas, discotecas e supermercados).

Hoje parecem perfeitamente actuais, embora também em Portugal a secularização tenha décadas de efeito e de teorização.

Schillebeeckx nota, como outros também notaram, que a secularização, enquanto passagem duma natureza divinizada para uma natureza humanidade, está inscrita nos genes do cristianismo. (Outros disseram – e não sei precisar quem – que “o cristianismo é a religião da saída da religião”, Harvey Cox? Noto, ainda por cima, que “saída da religião” pode ter dois sentidos: 1. O cristianismo ajuda a humanidade a sair da religião; 2. O cristianismo é a espiritualidade do pós-religião). Diz o teólogo recentemente falecido: “À luz do dogma da criação, o homem no mundo é, por definição, não divino, estabelecido dentro dos seus próprios limites”. O movimento de dessacralização acompanha toda a história do cristianismo, mesmo que os teólogos e a autoridade religiosa a isso se oponham. E atinge nos dias que correm (há 45 anos como ainda mais hoje) a ética, que “se separa da teologia e se torna acessível, de maneira autónoma, ao homem, enquanto ser no mundo com os outros”. Por outras palavras, o homem é fundamento da ética – e não Deus. [E, por estes dias, saiu o livro “Being good without God”, do capelão da Universidade de Harvard para os ateus, humanistas, agnósticos… Sim, Harvard tem uma capelania para este segmento.]

E agora fala Schillebeeckx:

“Dessacralização do mundo não significa de modo nenhum que deus se torne irreal, mas sim que as «provas» cosmológicas de Deus se tornam irreais e que, para o homem moderno, Deus se torna irreal na medida em que é apresentado e pregado numa visão cosmocêntrica do homem e do mundo. (…) Na antiga imagem da natureza, teria sido um contra-senso negar Deus; sem Deus, a presença do homem na natureza omnipotente, inquietante e todavia maternal – assim a experimentava ele do modo imediato – ter-se-ia tornado absurda. Na nova imagem do mundo, pelo contrário, o homem no mundo conserva os seus valores profanos, ainda que negue Deus. Não podemos menosprezar tal facto. Na base de todas as formas de ateísmo contemporâneo, encontra-se uma experiência real, não evidentemente de não existência de Deus, mas de factos historicamente observáveis: uma vida sem religião – não digo sem Deus, porque isso não depende de nós – em nada diminui a moralidade, a inteligência, o carácter humano e pessoal do homem. Dum prisma puramente terreno, a religião parece realmente inútil, não apresenta qualquer «interesse». É o que – mesmo sem propaganda – torna hoje em dia o ateísmo espontaneamente atraente. Por isso, para os ateus, a história caminha progressivamente para um ateísmo universal. Neste ponto, o cristão introduzirá uma distinção: admite de bom grado que a marcha da história irá levar inevitavelmente a uma dessacralização cada vez maior do mundo, e alegra-se com isso; mas continua a considerar o ateísmo como uma interpretação ideológica de factos históricos que mantêm todos o seu sentido e todos o seu calor numa perspectiva teísta e cristã Não é preciso recorrer ao ateísmo para explicar tais factos”.

Esta extensa citação merece duas observações. Primeira, a profanidade do mundo é hoje, apontada por alguns ecologistas radicais como uma triste consequência do cristianismo. Se ainda vivêssemos num fundo encantado, o ser humano não teria transformado tanto a natureza. Não estaríamos a caminho do descalabro ecológico. Mas a verdade é que a exploração desmedida é uma violação contra a criação – dirão os cristãos, como o Papa na recente mensagem para o Dia Mundial da Paz.

Segunda, o teólogo diz que “não é preciso recorrer ao ateísmo para explicar tais factos”. Isto é o que precisamente os ateus costumam dizer das explicações religiosas do mundo. Mas é um argumento interessante a invocar num debate com Richard Dawkins, por exemplo. Qual é a “explicação” mais complicada do mundo? A que mete Deus ou a que exclui Deus? Não a explicação científica. Essa não pode meter Deus. A explicação do sentido. O porquê e para quê. É isso essencialmente a tarefa da teologia.

Bento Domingues sobre Schillebeeckx: "Sou um teólogo feliz"

O dominicano Bento Domingues escreve sobre o dominicano Edward Schillebeeckx, no "Público" deste domingo. A certa altura refere o texto "O Deus oculto", nos "Cadernos o Tempo e o Modo". Dois excertos desse texto podem ser lidos aqui (1) e aqui (2).

sábado, 9 de janeiro de 2010

Libertação e política - Anselmo Borges volta a Schillebeeckx

Volto ao teólogo flamengo Edward Schillebeeckx, um dos mais notáveis e influentes pensadores católicos do século XX, que morreu, com 95 anos, no passado dia 23 de Dezembro, em Nimega (Holanda), em cuja universidade ensinou. Foi um dos principais mentores do Concílio Vaticano II, acontecimento determinante do século XX. De facto, aos seus críticos é preciso perguntar: o que seria a Igreja sem esse Concílio?, sem ele, como seria o próprio mundo?


E. Schillebeeckx fez parte de uma plêiade excepcional de teólogos - entre eles, M. D. Chenu, H. Urs von Balthasar, Yves Congar, Henri de Lubac, Karl Rahner, J. B. Metz, Hans Küng -, que ousaram pensar e que deram uma nova orientação ao cristianismo e à Igreja. Um dos problemas maiores da Igreja actual é que precisamente essa geração está a desaparecer e não tem substitutos à altura.


Acusado de pôr em perigo a ortodoxia, teve de enfrentar por três vezes a Congregação para a Doutrina da Fé - uma das vezes, porque defendeu que a comunidade poderia designar membros seus não ordenados para presidir à Eucaristia -, e denunciar os seus métodos inquisitoriais, constatando que a Igreja se ia desviando do Concílio e se tornava cada vez mais monolítica, confundindo unidade com uniformidade.


Foi-lhe atribuído o Prémio Erasmus, pois "os seus trabalhos vêm confirmar os valores clássicos da cultura europeia ao mesmo tempo que contribuem para o exame crítico desta cultura". Nunca perdeu a esperança na Igreja, comunidade de Deus, crítica e solidariamente presente e activa entre os homens e as mulheres deste mundo, entre os crentes, "que voltam as costas precisamente à Igreja estranha ao mundo, à Igreja do Concílio de Trento e dos tempos anteriores ao Concílio Vaticano II, Igreja triunfalista, juridicista e clerical, que pretende ser o intérprete irrefutável da vontade de Deus até ao mínimo pormenor". Numa das últimas entrevistas, concluiu: "Continuo optimista. Acredito em Deus e em Jesus Cristo. Que mais me pode faltar?"


O conceito de "experiências negativas de contraste" é certamente uma das chaves para o seu pensamento, pois formam uma experiência fundamental. É de facto nessas experiências que o homem aprende a distinção entre bem e mal e a urgência ética. O que vemos e ouvimos do mundo põe-nos em contacto com uma realidade que não está de modo nenhum em ordem - há algo que está radicalmente mal. Por isso, a experiência de sofrimento, de maldade, de injustiça e infelicidade é "fundamento e fonte" de uma indignação e de um "não" fundamental ao mundo tal como se apresenta. Ora, esta incapacidade de se resignar com o mundo tal como está revela uma "abertura" para uma outra situação, que constitui "apelo radical ao nosso sim", sim a um mundo outro, com sentido, justiça, felicidade. Este sim aberto, que é ainda mais forte do que o não, pois é ele que torna possível a resistência e indignação frente ao mal, é, num mundo ambíguo - mistura de bem e de mal, de sentido e sem sentido -, alimentado e solidificado por experiências fragmentárias, mas reais, de sentido e felicidade, convocando à solidariedade de todos para a construção de um mundo melhor, com rosto humano.


Aqueles que acreditam em Deus "preenchem religiosamente esta experiência fundamental", recebendo então o "sim aberto" mais orientação e horizonte, dados no vínculo entre ética e mística. Os cristãos, concretamente, a partir da revelação de Deus no homem Jesus, confessado como o Cristo e Filho de Deus, são transformados pela esperança fundada de que "no núcleo mais íntimo da realidade, está presente um suspiro da compaixão, da misericórdia; os crentes vêem aí o nome de Deus", cuja causa é a causa dos homens, o seu bem-estar e felicidade.


A fé num "Deus dos homens" que quer chamar todos à plenitude da vida implica, por um lado, que é preciso acreditar no homem, pois não há salvação que não passe pela libertação, também sócio-política, mas, por outro, não se pode cair numa fé iluminista ingénua no progresso nem num messianismo político, pois "nenhum progresso sócio-político reconciliará alguma vez com a injustiça que coube aos mortos".


Fonte: DN

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Edward Schillebeeckx. Ecos de uma conferência em Lisboa - 2

A conferência de Schillebeeckx, em Lisboa, em 1966, intitulada “O Deus Oculto”, sugeriu uma nova compreensão do mundo e no homem, na qual há um certo “obscurecimento” de Deus. Mas esse “obscurecimento”, para um teólogo avisado, significa mais uma purificação da imagem de Deus do que um acréscimo de ateísmo.

“Desde há alguns anos que se fala tanto da «ausência» de Deus, que todos nós admitimos sem a menor crítica, que essa ausência era facto indiscutível. Incontestavelmente, Deus não se encontra onde antigamente o fazíamos intervir subitamente para suprir as nossas incapacidades terrestres e humanas. Forçávamo-lo a estar presente. E nem sequer notávamos que essa presença era totalmente desprovida da gratuidade que caracteriza qualquer presença autêntica. Por isso, nos tornámos hoje em dia cegos para a diferença entre a ausência e presença oculta cegos para a presença insuspeitada mas profunda de Deus na maneira mais verdadeira por que é vivida nos nossos dias a comunhão humana. Na verdade, nunca na história a presença de Deus no mundo foi tão intimamente e tão sensivelmente real como na nossa época – que, no entanto, por toda a parte proclama a sua ausência! Como se Deus não se tornasse apenas presente de uma maneira plena no momento em que a preocupação desinteressada pelo próximo entra verdadeiramente no nosso projecto de vida fundamental e é desejada de modo efectivo. Pois é bem o que sucede nos nossos dias; e por isso Deus se encontra infinitamente mais próximo hoje do que dantes. Se sem cessar proclamamos a sua ausência, isso prova que a mentalidade antiga, que o olhava como um «tapa-buracos», influencia ainda de modo inconsciente as nossas concepções e nos nossos juízos”.

Primeira parte.

sábado, 2 de janeiro de 2010

"Deus é um luxo" - Anselmo Borges fala de Schillebeeckx

Anselmo Borges, na sua coluna de sábado do DN, fala de Edward Schillebeeckx (sobre o teólogo ver também aqui e aqui). Texto integral, retirado do DN.

(O DN mudou de grafismo e está muito mais legível. Refiro-me à edição em papel, que cá em casa por vezes já não comprávamos. A penúltima remodelação gráfica só durou uns meses. Tempo de mais.)

A última vez que o encontrei foi em 1988, em Nimega (Holanda). Recebeu-me na sua cela bem modesta, e, embora a saúde já não fosse particularmente boa, concedeu-me tempo para uma longa conversa. E foi aí que lhe lembrei a sua afirmação de que Deus não é uma necessidade, mas um luxo. Ele confirmou: "Sim. Abusou-se de Deus, da palavra Deus, no sentido de que Deus foi funcionalizado, posto em função do homem, da sociedade, da natureza... Ora, a natureza, o homem e a sociedade não têm necessidade de Deus para serem o que são. Mas, por outro lado, o luxo da nossa vida humana é, por exemplo, poder receber um ramo de flores. Não é uma necessidade. É um gesto completamente gratuito. É essa a grande experiência humana."

Edward Schillebeeckx morreu na véspera de Natal, no passado dia 23, em Nimega. Tinha 95 anos. Frade dominicano, foi um dos teólogos católicos mais prestigiados do século XX. Preparou e inspirou decisivamente o Concílio Vaticano II, concretamente nalguns dos seus documentos mais importantes, referentes à Revelação e ao diálogo da Igreja com o mundo. Ao velho aforismo "Fora da Igreja não há salvação", E. Schillebeeckx contrapunha: "Fora do mundo não há salvação." Co-fundador da revista Concilium, que continua a ser publicada em várias línguas, a sua influência impôs-se muito para lá da Teologia, tendo, por isso, recebido o Prémio Erasmus. Crítico da Igreja oficial, concretamente da política eclesiástica do Vaticano na nomeação dos bispos, para ter de novo uma Igreja uniforme, enfrentou por três vezes a Congregação para a Doutrina da Fé e denunciou os seus métodos. Definiu-se, no entanto, como "um teólogo feliz".

Perguntas fundamentais: Que significado tem ainda o cristianismo para o nosso mundo secularizado?, que futuro para a Igreja? Resumiu-me o essencial: "O ecumenismo das religiões deve ser sustentado por um ecumenismo de toda a humanidade sofredora. O sofrimento injusto: eis o grande problema." Assim, "diria que o grande desafio, portanto, o futuro do cristianismo depende da presença dos cristãos e, por conseguinte, da Igreja, no futuro do mundo, nas necessidades dos homens e das mulheres. É necessário que a Igreja se não interesse apenas por si mesma, mas que se desligue de si mesma e olhe para o mundo dos homens". "Refiro-me a todo esse processo em prol da justiça, da paz e da salvaguarda e defesa da criação."

Quando lhe perguntei quais as forças que disputam o futuro do mundo actual, respondeu que há sobretudo três grandes dinamismos: "Por um lado, há o positivismo, sobretudo o positivismo científico, a tecnocracia; por outro, há esse misticismo a-político, a interioridade pura, sem relação com o mundo, com a sociedade; finalmente, as religiões, as grandes religiões mundiais, que, cada vez mais, redescobrem as suas fontes e raízes. Há aí, cada vez mais, uma ligação entre a mística e o compromisso político e social."

Esta era, para ele, a religião verdadeira, que vive do vínculo indissolúvel de ética e mística, e que tem também de ser racional. É certo que hoje "há também toda uma tendência irracional contra tudo o que é da razão. Mas eu sou contra isso. É necessário aceitar a razão enquanto tal, pois é também um motor libertador. Trata-se, porém, da razão que é esclarecida, estimulada pela consciência do sofrimento. Caso contrário, a razão é totalmente fatal e funesta para os seres humanos. Mas, quando a razão é estimulada pelo facto do sofrimento incrível no mundo, é uma razão iluminada não só pela fé, mas também pelo sofrimento injusto".

O pensamento de E. Schillebeeckx centra-se nas experiências negativas e de contraste. "Neste contraste, o homem experiencia que a situação tal como se apresenta - de maldade, de injustiça, de sem sentido -, tem de ser mudada. Nesta experiência de contraste, temos já implicitamente a perspectiva do positivo no negativo." Aí, tem de intervir a praxis solidária libertadora, que pode abrir-se à esperança fundada de que a palavra última pertence a um mistério divino indisponível de salvação, ao Deus vivo que liberta.


quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Edward Schillebeeckx. Ecos de uma conferência em Lisboa - 1

Edward Schillebeeckx (Antuérpia, 12 de Novembro de 1914 – Nimega, 23 de Dezembro de 2009), esteve pelo menos uma vez em Portugal. Em Abril de 1966 proferiu em Lisboa uma conferência para os assinantes da revista “Concilium”, que nessa altura tinha uma edição em português de Portugal (agora, a versão em português é publicada a partir do Brasil).

A conferência, sobre a secularização e o aparente ocultamento de Deus, foi publicada nos “Cadernos o Tempo e o Modo”, cujo número 3 teve como tema “Deus o que é?”.

O artigo que resultou da conferência é verdadeiramente espantoso. E actual, passados mais de 40 anos. Começa assim:

“No reinado de Filipe II de Espanha, foi submetido às autoridade o projecto de tornar navegáveis o Tejo e o Manzanares, com o fim de melhorar as condições de vida de algumas populações isoladas. A comissão governamental opôs-se. Reconhecia que a situações dessas populações era difícil e até insuportável, mas punha de lado o projecto, porque «se Deus tivesse querido que esses rios fossem navegáveis, com uma só palavra sua o teria conseguido. Isso seria portanto intrometer-se de modo ilegítimo nos direitos da Providência, tentando melhorar o que, por motivos insondáveis, ela tinha deixado incompleto».

Este episódio traduz uma mentalidade que pertence sem dúvida ao passado, mas que ainda subsiste nos nossos dias sob formas mais subtis. É conhecido o dito espirituoso: «A fé, a esperança e a caridade permanecem, mas a maior das três é a ordem estabelecida»”.

Regressarei ao artigo de 1966. Talvez já em 2010.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Morreu Schillebeeckx

Morreu Edward Schillebeeckx, ontem, 23 de Dezembro, aos 95 anos. Dominicano, este teólogo belga (nascido em Antuérpia, a 12 de Novembro de 1914) que viveu a maior parte do tempo na Holanda, antecipou a renovação do II Concílio do Vaticano, sendo assessor dos bispos holandeses no Concílio.

Mais tarde foi crítico do Vaticano. Ensinou na Universidade de Nimega até a reforma. O seu livro sobre Jesus (em espanhol, língua em que li alguns capítulos, o título era “Jesús. La historia de um viviente”) mereceu as críticas do Vaticano, melhor, da Congregação para a Doutrina da Fé, em 1984 (já lá estava Joseph Ratzinger).

Sinodalidade e sinonulidade

Tenho andado a ler o que saiu no sínodo e suas consequências nacionais, diocesanas e paroquiais. Ia para escrever que tudo se resume à imple...