A morte de Edward Schillebeeckx levou-me a reler o artigo “O Deus oculto” e a admirar-me com a actualidade de um texto que tem mais de 40 anos. E com a nossa desatenção de católicos perante o que está à frente dos nossos olhos. Talvez as palavras do teólogo belga-holandês na altura parecessem desadequadas à realidade portuguesa. Poder-se-ia pensar, julgo eu, que tinham como referência a secularização do centro da Europa e a debandada dos cristãos das igrejas oficiais (com as igrejas holandesas transformadas em pousadas, discotecas e supermercados).
Hoje parecem perfeitamente actuais, embora também em Portugal a secularização tenha décadas de efeito e de teorização.
Schillebeeckx nota, como outros também notaram, que a secularização, enquanto passagem duma natureza divinizada para uma natureza humanidade, está inscrita nos genes do cristianismo. (Outros disseram – e não sei precisar quem – que “o cristianismo é a religião da saída da religião”, Harvey Cox? Noto, ainda por cima, que “saída da religião” pode ter dois sentidos: 1. O cristianismo ajuda a humanidade a sair da religião; 2. O cristianismo é a espiritualidade do pós-religião). Diz o teólogo recentemente falecido: “À luz do dogma da criação, o homem no mundo é, por definição, não divino, estabelecido dentro dos seus próprios limites”. O movimento de dessacralização acompanha toda a história do cristianismo, mesmo que os teólogos e a autoridade religiosa a isso se oponham. E atinge nos dias que correm (há 45 anos como ainda mais hoje) a ética, que “se separa da teologia e se torna acessível, de maneira autónoma, ao homem, enquanto ser no mundo com os outros”. Por outras palavras, o homem é fundamento da ética – e não Deus. [E, por estes dias, saiu o livro “Being good without God”, do capelão da Universidade de Harvard para os ateus, humanistas, agnósticos… Sim, Harvard tem uma capelania para este segmento.]
E agora fala Schillebeeckx:
“Dessacralização do mundo não significa de modo nenhum que deus se torne irreal, mas sim que as «provas» cosmológicas de Deus se tornam irreais e que, para o homem moderno, Deus se torna irreal na medida em que é apresentado e pregado numa visão cosmocêntrica do homem e do mundo. (…) Na antiga imagem da natureza, teria sido um contra-senso negar Deus; sem Deus, a presença do homem na natureza omnipotente, inquietante e todavia maternal – assim a experimentava ele do modo imediato – ter-se-ia tornado absurda. Na nova imagem do mundo, pelo contrário, o homem no mundo conserva os seus valores profanos, ainda que negue Deus. Não podemos menosprezar tal facto. Na base de todas as formas de ateísmo contemporâneo, encontra-se uma experiência real, não evidentemente de não existência de Deus, mas de factos historicamente observáveis: uma vida sem religião – não digo sem Deus, porque isso não depende de nós – em nada diminui a moralidade, a inteligência, o carácter humano e pessoal do homem. Dum prisma puramente terreno, a religião parece realmente inútil, não apresenta qualquer «interesse». É o que – mesmo sem propaganda – torna hoje em dia o ateísmo espontaneamente atraente. Por isso, para os ateus, a história caminha progressivamente para um ateísmo universal. Neste ponto, o cristão introduzirá uma distinção: admite de bom grado que a marcha da história irá levar inevitavelmente a uma dessacralização cada vez maior do mundo, e alegra-se com isso; mas continua a considerar o ateísmo como uma interpretação ideológica de factos históricos que mantêm todos o seu sentido e todos o seu calor numa perspectiva teísta e cristã Não é preciso recorrer ao ateísmo para explicar tais factos”.
Esta extensa citação merece duas observações. Primeira, a profanidade do mundo é hoje, apontada por alguns ecologistas radicais como uma triste consequência do cristianismo. Se ainda vivêssemos num fundo encantado, o ser humano não teria transformado tanto a natureza. Não estaríamos a caminho do descalabro ecológico. Mas a verdade é que a exploração desmedida é uma violação contra a criação – dirão os cristãos, como o Papa na recente mensagem para o Dia Mundial da Paz.
Segunda, o teólogo diz que “não é preciso recorrer ao ateísmo para explicar tais factos”. Isto é o que precisamente os ateus costumam dizer das explicações religiosas do mundo. Mas é um argumento interessante a invocar num debate com Richard Dawkins, por exemplo. Qual é a “explicação” mais complicada do mundo? A que mete Deus ou a que exclui Deus? Não a explicação científica. Essa não pode meter Deus. A explicação do sentido. O porquê e para quê. É isso essencialmente a tarefa da teologia.
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