Resposta a João Silveira, que na questão de Jesus, os
demónios e os exorcismos, aqui, sem rebater os argumentos, que era o que se
esperava, colocou mais alguns dilemas (no fundo é este: ou aceitamos o que a
moderna investigação diz ou deitamos fora tudo da DTDD - doutrina tradicional
dos diabo e dos demónios). Respondo aqui, em vez de responder nos comentários,
para, no futuro, se necessário, fazer remissões para este texto (e não estar
sempre a ler que não respondo às questões; às vezes não respondo; outras
respondo, mas se o interlocutor é novo, e como não posso fazer links para os
comentários, pode parecer que não).
Para alguns, este assunto já deu o que tinha a dar. Se é o
seu caso, não perca tempo com isto, p.f.
Numa coisa concordamos, João. O texto, aqui, é uma manta de
retalhos. Já o tinha dito logo no início. Mas não é uma manta de retalhos
qualquer. É feita com citações de obras de referência, entre as muitas
possíveis e apenas de algumas que tenho à mão (ou melhor atrás das costas, que
é onde está a estante dos livros de teologia). Na realidade, o difícil foi
escolher entre tantas possibilidades. E como a releitura (porque as leituras já
vêm de longe), selecção e escrita foram feitas em duas ou três horas, eu
próprio admito que tem limitações. É só um início. De qualquer forma, será
curioso encontrar teses de doutoramento ou dicionários bíblicos de referência
sobre o tema Jesus, os demónios e os exorcismos que fundamentem a DTDD e se
oponham ao que deixei escrito. Se o João ou Bernardo quiserem fazer-me esse
favor…
Poderá argumentar, contudo, que a dogmática católica não se
faz somente com os dados bíblicos. Com certeza. Mas não contra os dados
bíblicos.
Diz o João: Se… então temos que…
…deitar
fora o que a doutrina da Igreja diz sobre a existência do diabo e dos demónios;
Eu diria antes, e é o que tenho vindo a defender: Ponderar o que diz a
doutrina da Igreja sobre o assunto; considerar o que é importante e relativo,
Revelação, Tradição e circunstâncias históricas, sabendo que por vezes anda
tudo misturado; reinterpretar o que realmente diz a doutrina da Igreja sobre o
assunto; considerar os vários âmbitos de pronunciamento do Magistério, considerar
a “hierarquia de verdades” e o desenvolvimento do dogma; ajudar a esclarecer; e
não temer ter dúvidas.
…desprezar
tudo o que os Papa disseram sobre a existência do diabo e dos demónios;
Há muito a desprezar (eu não usaria este termo, mas antes reconsiderar,
reavaliar, interrogar), sim, se pensarmos, por exemplo, na cobertura legal à
queima das bruxas (umas, sim, pensavam que tinham relacionamentos com o diabo;
outras mulheres, sem nunca terem sido bruxas, por vezes por apenas terem um
sinal corporal, foram vítimas da paranóia colectiva, católica e protestante,
com certeza). E muito mais a reinterpretar. E ainda mais a ouvir quando se
trata de estar atento ao mal e seus simbolismos.
Quanto aos Papas, na realidade, nos
últimos anos, há mais silêncio do que pronunciamentos, muito raros, simbólicos
ou não, sobre o diabo, e nenhum, que eu conheça, sobre possessões, por exemplo.
…desprezar tudo o que os santos disseram sobre
a existência do diabo e dos demónios;
Com certeza que sim, neste e noutros capítulos, mas não "tudo". Eu diria
relativizar em vez de desprezar. Gosto muito de São Bernardo (e, para questões
teológicas, já agora, mais do seu arqui-inimigo Abelardo), mas quer que
acredite que eram demónios as moscas que exorcizava? (É a terceira vez que
refiro este exemplo; mas ainda não disse que Belzebu, Baal Zebu, quer dizer
“Senhor das moscas”). Leio Lactâncio (não é santo, mas é um autor importante do
cristianismo primitivo), mas quer que acredite que Deus e Satanás eram ambos
vassalos de um Grande Deus? Admiro muitíssimo Orígenes (um monstro da teologia
antiga, só superado por Agostinho), mas, por isso, aceite-se, até segundo a
DTDD, que no final o diabo será salvo? Ou que Deus, por ardil, sacrificou Jesus
ao diabo, como diz S. Gregório de Nissa? A ideia foi muito seguida pelos
santíssimos padres da Igreja. Não há ironia em santíssimos.
…considerar
que santos como o Padre Pio, a beata Alexandrina, St. Teresa de Ávila ou S. João
Maria Vianney eram malucos, porque testemunham contactos com o dito cujo.
Não diria malucos, mas antes que se exprimiam com os
conceitos e comparações que tinham as suas convicções e que não são válidos nem
credíveis hoje. E para pegar num exemplo de tempos relativamente recentes, do
P.e Pio (os do Cura d’Ars/Vianney são idênticos), não estou a ver hoje alguém
ouvir um barulho de noite, ver um cão a bufar e dizer: “É o demónio”.
Este exemplo, do princípio do séc. XX (não muito depois do
Papa Leão XIII, grande homem, ter caído na patranha maçónico-demoníaca de Leo
Taxil) foi-me fornecido pelo Alma Peregrina numa discussão anterior:
One night,
Padre had returned to the convent of Saint Elia of Pianisi. He couldn't fall asleep that night because of
the enormous summer heat. He heard the footsteps of someone coming from a
nearby room. Padre Pio thought, "Apparently, Friar Anastasio couldn’t
sleep either." He wanted to call
out to him so that they could visit and speak for awhile. He went to the window
and tried calling to his companion, but he was unable to speak. On the ledge of
a nearby window, he saw a monstrous dog. Padre Pio, with terror in his voice,
said, “I saw the big dog enter through the window and there was smoke coming
from his mouth. I fell on the bed and I
heard a voice from the dog that said, "him it is, it is him". While I
was still on the bed, the animal jumped to the ledge of the window, then to the
roof and disappeared."
Os relatos dos santos sobre contactos com
o diabo podem ser edificativos para nos alertar para as insídias do mal (nem
sequer é o caso do texto acima), mas não lhes peçamos mais do que o que podem
dar. Para terem validade factual e para uma interpretação literal, deveríamos
contar com testemunhas, por exemplo, ou, em tempos mais recentes, com gravações
(existem, por exemplo, para os estigmas do P.e Pio), o que não acontece em
relação a casos demoníacos. É sempre o santo, na sua privacidade que relata a
sua experiência. Visões? Estados mentais? Imaginação? Com certeza que sim,
embora eu não saiba o que é ter visões. Ou simples imagens literárias? E que
validade têm as visões particulares para afirmar a realidade de algo? Dir-me-á
que nunca se poderá filmar o demónio, pela sua própria natureza – ou antes,
pela sua própria supernatureza -, mas então entramos no campo do
indemonstrável. Por outro lado, defendem, contudo, as possessões. Mas estas são
filmáveis… tal como outras manifestações do demónio defendidas pela DTDD (levitações, xenoglossia e coisas do género). Há alguma credível?
Ainda sobre os relatos dos santos, há
um caso exemplificativo, interessante, contado, imagine, pelo P.e Armoth (nem
tudo é mau no livro recente “Mais fortes que o mal”). Ele conta-o, diz, porque “por
vezes trata-se simplesmente de equívocos”. Ele conta um equívoco para contrastar
com os outros casos, para que passem por verdadeiros, como se o reconhecimento
de um equívoco evitasse o rótulo da ingenuidade e valorizasse os restantes
casos. (Ressalvo que não é da seriedade e das boas intenções do P.e Amorth que
duvido).
Transcrevo:
“É simpático o caso que aconteceu a D.
Bosco [outro que admiro]. Uma vez, tinha ido a uma casa de campo para passar ali
alguns dias de repouso. Estava junto com outras pessoas. Durante a noite,
começaram a ouvir alguns rumores. Vinham do teto e pareciam inexplicáveis. Ele
pensou na presenta do demónio, pois acontecia-lhe ser perturbado várias vezes.
Pôs-se a rezar. Depois, constatando que os rumores não terminavam, decidiu com
os seus amigos fazer uma revista ao local, encontrando uma galinha que ficara
presa no sótão e aterrorizada batia as asas por todo o lado. Para festejar a
conclusão burlesca e positiva daquela noite de sono perdida, mataram a galinha,
depenaram-na e comeram-na enquanto o diabo esfrega um olho” (pág. 60).
O que tiro deste relato em comparação
com outros é que, havendo várias testemunhas, o diabo não aparece. Se D. Bosco
estivesse sozinho, não sei se não seria mais um caso demoníaco (em
contrapartida, tinha-se salvado a galinha). Ou por outras palavras, o diabo só
aparece, mesmo em forma de animais, e fala, como no caso do P.e Pio, quando só
há uma pessoa a ver e ouvir – a que diz que é o demónio.
…considerar que todos os padres exorcistas do
mundo são malucos ou burlões;
Nunca pensei isso dos padres exorcistas. Em França, como já
disse noutro ponto, a grande maioria dos exorcistas diz-se “psicologizante” (como
Charles Chossonnerie, da diocese de Lião) porque acredita que as possessões,
sendo fenómenos psicológicos, não são possessões reais de demónios.
Não fui eu que escrevi o artigo, embora já tenha
usado expressões similares (como a do “efeito placebo”) antes de o ler. Sugiro
que, se está em desacordo, o emende.
Há alguns exorcistas que não são lá muito
equilibrados, isso há. Há muitos burlões quando se trata de lidar com os
demónios, principalmente fora dos exorcistas. E há muitos que estão enganados
mas não são burlões. Não conheço nenhum exorcista católico burlão. Quanto a
malucos, já não posso assegurar (depende do que entende por maluco e estou a
pensar num caso concreto – não é português, adianto). E muitos fazem o bem
ajudando pessoas que pensam que estão possessas, sem minimamente acreditarem no
diabo/demónio. Alguns, antes de fazerem o bem, fazem o mal, convencendo-as de
que estão possessas.
E há exorcistas evangélicos que deixam filmar os
exorcismos – estão na Internet – que com certeza são falsos para os exorcistas
católicos, os quais não permitem filmar os exorcismos (ou antes, os
preliminares do ritual é que vedam os exorcismos à comunicação social). Ou será
que católicos e evangélicos, tão distantes em tantas matérias (Papa, Maria,
Sacramentos), estão de acordo nas possessões? Temos então que o diabo será um
ponto de união para um diálogo ecuménico com os evangélicos? O diabo a fazer o
bem? [Aqui imagino qual será a resposta do João: Como só a Igreja Católica
Apostólica Romana tem a razão toda e a fé verdadeira, o diálogo ecuménico só
pode ser fruto do diabo].
Questão parecida com a da existência dos exorcistas
é: porque é que a Igreja tem o rito dos exorcismos? Já esbocei uma resposta
aqui, mas acrescento que, tanto quanto sei, lendo os preliminares e o ritual em
si, a linguagem é muito simbólica (“repeli a força do diabo”), fala
principalmente em “atormentados” pelo diabo e não “possuídos” ou "possessos", o que é
totalmente diferente, e apenas uma vez tem um termo relativo a possessão. Diz
assim: “Escutai, Pai Santo, o gemido da Igreja suplicante; não deixeis que o vosso
filho (a vossa filha) sofra a possessão do pai da mentira”. Diria que a
linguagem é escorregadia, pois não diz que está possuído/possesso. Pede, aliás, que não
sofra a possessão. Parece que está para acontecer. Na chamada fórmula imperativa, diz-se: “Eu te esconjuro,
Satanás (…), sai desta criatura de Deus”. Pergunto-me se a Igreja acredita
realmente que com isto se expulsa uma criatura sobrenatural de um ser humano,
ou se não estamos diante da linguagem litúrgica (ou quase litúrgica, neste
caso, pois o ritual nem sequer é uma verdadeira ação litúrgica, como os sacramentos),
simbólica, herdada de outros tempos, e, no meu ponto de vista, muito
questionável para os tempos de hoje. Que os exorcismos deixem as pessoas que
pensam que estão possuídas em paz, imagino que sim. Que a linguagem poderia
ser outra? Provavelmente haverá vantagens nesta.
…achar
que Jesus também era supersticioso e ignorante em relação à existência de
demónios. Que sabia a vida da samaritana, que sabia o que Natanael tinha andado
a fazer, que sabia que ia morrer e ressuscitar ao terceiro dia, mas andava enganado
em relação aos demónios;
Bom, nunca se disse que Jesus é supersticioso – evito pensar em qualificar
este tipo de afirmação do João. Porém, no que afirma, não percebe, primeiro, as
diferenças entre os evangelhos sinópticos e o de João Evangelista, já que os
exorcismos só acontecem nos sinópticos (e nunca em João – porquê?) e fala-me de
exemplos do evangelho de João, como o episódio da Samaritana e o de Natanael.
Não duvido dos seus parcos conhecimentos escriturísticos (porque ainda não
reconheceu que o apóstolo João não é o discípulo amado – estou a ser mauzinho
com esta), ainda que também não me possa orgulhar dos meus, porque estou sempre
a aprender. Mas ignora que cada evangelho tem uma lógica interna, que, de
facto, episódios isolados podem ser contraditórios. Além de que nenhuma
cristologia séria, hoje, defende uma omnisciência de Jesus como a que a sua
breve afirmação deixa patente. Ou pelo menos não entende a omnisciência de uma
forma mágica. Também é isso que Jesus recusa nas tentações… do diabo.
…trocar a
credibilidade desta gente toda para ficar com teólogos dissidentes;
Falso dilema, porque não se trata de "trocar", nem de "credibilidade", nem de "desta gente toda". “Teólogos dissidentes?” Isto é difícil de contrariar quanto aos autores dos
artigos dos dicionários, por exemplo, porque não os conheço (aliás, nem fui ver
quem são). Mas eles falam de coisas consagradas no saber teológico. E escrevem em
obras de referência. Por outro lado, noto que as obras estão publicadas em
editoras católicas como a Sal Terrae, Sigueme, Gráfica de Coimbra (que é da
diocese de Coimbra), Paulus (que tanto editou os livros de Ariel como os de
Amorth). Quanto à Herder, embora seja das mais importantes editoras de
teologia, julgo que não tem o estatuto de católica, que aqui invoco, não porque
para mim seja relevante, mas porque julgo que será para o João, ou pelo menos
responde à dissidência.
Desculpe-me se a resposta foi bastante
maior do que as provocações. Ou se me provocou por provocar e eu o levei a sério.
Para rir um pouco veja este vídeo sobre a levitação. É a terceira parte de cinco. Sugiro que veja(m) as outras, até porque a levitação, pelo menos no cinema, é um fenómeno associado às possessões. E ficamos a conhecer o patrono dos astronautas.