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sábado, 7 de dezembro de 2013

Anselmo Borges: "Francisco: a alegria do Evangelho (1)"

Texto de Anselmo Borges no DN de hoje:


Precisamente com este título - "A alegria do Evangelho" -, Francisco acaba de publicar o seu primeiro grande texto, na forma de exortação, que foi objecto de referência e análise por parte dos media em todo o mundo e nomeadamente dos principais diários mundiais, como o The New York Times, o Wall Street JournalThe GuardianLe MondeEl País. Viram nele, e com razão, o programa do pontificado de Francisco, com duas partes: uma que diz respeito à renovação no interior da Igreja, outra referente à missão da Igreja perante a situação económico-financeira e social do mundo. Centro-me hoje na primeira, ficando a segunda para o próximo sábado.

"A alegria do Evangelho" não é uma redundância? De facto, a própria palavra Evangelho (do grego, "eu angélion") significa notícia boa, felicitante. Mas Francisco quer sublinhar isso mesmo e, por outro lado, sabe que, como denunciou Nietzsche, o que, de facto, muitas vezes, a Igreja transmitiu, por palavras e obras, foi um Disangelho, uma notícia má e causadora de infelicidade.

Os anunciadores do Evangelho terão, antes de mais, de perguntar a si próprios o que significa o Evangelho para eles mesmos. Estão verdadeiramente interessados nele porque lhes traz alegria, sentido para a existência e salvação? Só a partir daí poderão avançar para a sua entrega aos outros. Precisamente porque é uma notícia boa, feliz e felicitante.

Aí está então a urgência da renovação na Igreja. Para a pedofilia, tolerância zero. Transparência total no Banco do Vaticano: acaba de nomear o seu secretário pessoal como supervisor do IOR e da comissão económico-administrativa, com o objectivo de estar directamente informado. Francisco não quer bispos "príncipes" nem "de aeroporto" a viajar em vez de estar ao serviço das pessoas. E sabe que a missão da Igreja não é ganhar prosélitos, mas contribuir para a felicidade e alegria de todos. Tudo parte desta constatação, que inaugura a exortação: "A alegria do Evangelho enche o coração e a vida toda dos que se encontram com Jesus. Aqueles que se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, da solidão. Com Jesus Cristo, nasce constantemente e renasce a alegria. Nesta exortação quero dirigir-me aos cristãos para os convidar para uma nova etapa evangelizadora marcada por essa alegria e indicar caminhos para a marcha da Igreja nos próximos anos." Ficam aí alguns desses caminhos.

A palavra mais repetida no documento é a palavra alegria. A Igreja tem, pois, de ser uma casa onde reina a alegria, o que não significa ausência de esforço, de trabalho e sacrifício. A Igreja tem de ser a "Casa do Pai", o Deus que ama e perdoa sempre, e onde, por isso, as pessoas se sentem bem: os sacramentos (baptismo, eucaristia...) não são só para "os perfeitos". "A Igreja não é uma alfândega", controladora das pessoas e fiscalizadora das suas ideias, mas uma casa aberta, onde há transparência e fraternidade. Nela, o predomínio não pertence à doutrina mas ao Evangelho e, portanto, à confiança e à esperança, aonde todos se podem acolher. A Igreja tem de ser missionária, sair de si mesma, arriscar e ir ao encontro das pessoas, sobretudo das que vivem nas "periferias" geográficas e existenciais. Uma Igreja livre, capaz de denunciar profeticamente as injustiças do mundo. Uma Igreja atenta aos "sinais dos tempos", como mandou o Concílio Vaticano II, e assim capaz de comunicar a sua mensagem com linguagem viva e actual - atenção às homilias!

Impõe-se a reforma das estruturas eclesiásticas, portanto, mais colegialidade e sinodalidade, isto é, mais democracia. "Uma excessiva centralização, mais do que ajudar, complica a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária." Assim, "não se deve esperar do Papa uma palavra definitiva ou completa sobre todas as questões". "Não é conveniente que o Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que se colocam nos seus territórios." "Igreja somos todos" e por isso é necessário desclericalizá-la e activar a corresponsabilidade dos leigos, reconhecendo à mulher os seus direitos nos lugares de decisão.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Bento Francisco: Fé como ilusão de luz

Elisabeth Nietzsche

Diz Bento Francisco (e ficamos a saber que o pastor luterano deu nome bíblico à filha mais nova) no número 2 de "Lumen Fidei":

Nos tempos modernos, pensou-se que tal luz poderia ter sido suficiente para as sociedades antigas, mas não servia para os novos tempos, para o homem tornado adulto, orgulhoso da sua razão, desejoso de explorar de forma nova o futuro. Nesta perspectiva, a fé aparecia como uma luz ilusória, que impedia o homem de cultivar a ousadia do saber. O jovem Nietzsche convidava a irmã Elisabeth a arriscar, «percorrendo vias novas (…), na incerteza de proceder de forma autónoma». E acrescentava: «Neste ponto, separam-se os caminhos da humanidade: se queres alcançar a paz da alma e a felicidade, contenta-te com a fé; mas, se queres ser uma discípula da verdade, então investiga». O crer opor-se-ia ao indagar. Partindo daqui, Nietzsche desenvolverá a sua crítica ao cristianismo por ter diminuído o alcance da existência humana, espoliando a vida de novidade e aventura. Neste caso, a fé seria uma espécie de ilusão de luz, que impede o nosso caminho de homens livres rumo ao amanhã.

sábado, 13 de julho de 2013

Anselmo Borges: "A última encíclica de Bento XVI"

Texto de Anselmo Borges no DN de hoje.

"Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 29 de Junho, solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, do ano 2013, primeiro do meu Pontificado. Francisco" (assinado à mão, sem a indicação habitual de papa). Termina assim a primeira encíclica do Papa Francisco, dedicada ao tema da fé: "Lumen Fidei" (a luz da fé).
Como ele próprio diz, a encíclica foi substancialmente redigida pelo seu predecessor: Bento XVI "já tinha completado praticamente uma primeira redacção desta Carta encíclica sobre a fé. Agradeço-lhe de coração e assumo o seu precioso trabalho, acrescentando alguns contributos". De facto, o papa emérito tinha em mente uma trilogia sobre as três virtudes teologais e já publicara uma encíclica sobre a esperança, outra sobre o amor, faltando a referente à fé, que aparece agora. Um texto belo, bem fundamentado, talvez demasiado académico, com citações de Nietzsche, Dante, Dostoievsky, Wittgenstein, Rousseau,T. S. Eliot.
A sua assunção por parte de Francisco revela humildade e também o reconhecimento do mérito intelectual do seu antecessor e, ao mesmo tempo, a importância da teologia para o cristianismo. Sem teologia, a fé não é argumentável. Mas, se a fé não dialoga com a razão, não tem lugar na Universidade, ficando reduzida a puro sentimento. Esta era uma preocupação fundamental de Bento XVI.
Será a fé religiosa uma mera ilusão, fruto do espelhismo? Lá está a citação de Nietzsche, numa carta à irmã, convidando-a a arriscar-se, a "empreender novos caminhos... com a insegurança de quem procede autonomamente". E acrescenta: "Aqui se dividem os caminhos do homem: se queres alcançar paz na alma e felicidade, crê; mas, se queres ser discípulo da verdade, indaga." Como se a fé fosse, portanto, o contrário de buscar, abandonando a novidade e a aventura da vida.
Aconteceu então que "o homem renunciou à busca de uma luz grande, de uma verdade grande", contentando-se com a verdade da tecnologia, com a verdade do cálculo, com pequenas luzes que iluminam o instante fugaz, mas incapazes de abrir o caminho da vida plena. "É urgente recuperar o carácter luminoso próprio da fé", pois, "quando falta a luz, tudo se torna confuso, é impossível distinguir o bem do mal". Aqui, acrescento eu, poderia citar a advertência que Nietzsche, sete anos antes do seu colapso pessoal, fez à mulher do seu amigo Overbeck, de nome Ida, para que não abandonasse a ideia de Deus: "Eu abandonei-a, quero criar algo novo e não posso nem quero voltar atrás. Vou perecer por causa das minhas paixões, que me atiram daqui para ali; desmorono-me continuamente, mas isso nada me importa."
A fé tem o seu fundamento na experiência crente de Jesus, naquela sua experiência avassaladoramente felicitante de Deus enquanto Abbá (querido paizinho). Acreditou, entregando a sua vida até à morte a esse Deus-Amor e ao seu Reino de vida digna para todos. Os cristãos acreditam como ele e nele, que está vivo em Deus, o Deus da Vida. E procuram agir como ele, levando avante, na confiança e no combate pela vida, o Reino do Deus da vida para todos.
Penso que é pena a encíclica não começar pelo dado antropológico de base: a vida humana está desde a raiz fundada na fé, na confiança. Na presente situação, percebemo-lo perfeitamente, pois o que nos falta é precisamente fé, confiança, crédito.
Leonardo Boff também chamou a atenção para outra lacuna: não aborda com profundidade a crise de fé do homem contemporâneo, as suas dúvidas, as suas perguntas. Onde está Deus, quando um tsunami faz milhares e milhares de mortos? Como crer ainda, depois dos campos de extermínio, dos milhões de torturados e assassinados no corpo e na alma? "Crer é sempre crer apesar de... A fé não elimina as dúvidas e angústias de um Jesus que grita na cruz: "Pai, porque me abandonaste?" A fé tem que passar por este inferno e transformar-se em esperança de que para tudo há um sentido, mas escondido em Deus. Quando se revelará?"
A encíclica: "A luz da fé não dissipa todas as nossas trevas, mas, como lâmpada, guia os nossos passos na noite, e isto basta para caminhar."

sábado, 17 de novembro de 2012

Anselmo Borges: "Um padre polémico"

Texto de Anselmo Borges no DN de hoje.

1. As únicas relíquias que Jesus deixou são comunidades cristãs vivas. Não há outras. E comunidades cristãs vivas assentam em três pilares fundamentais, que se co-implicam.

O primeiro tem a ver com a fé, a entrega confiada ao Deus de Jesus, que se revelou como amor: "Deus é amor", escreveu São João. Esta fé tem de ser esclarecida, segundo o princípio "crer para entender, e entender para crer".

Outro pilar diz respeito à caridade e à justiça. Os discípulos agiam de acordo com o que Jesus tinha vivido e feito, de tal modo que os pagãos diziam: "Vede como eles se amam."

O terceiro diz que a vida cristã segundo a fé e o amor deve ser celebrada em liturgias belas. Não se trata, pois, da prática ritual vazia, mas de celebrar, na fraternidade e na beleza e fazendo memória de Jesus na sua vida, morte e ressurreição, o que se vive no quotidiano da existência. Na celebração, é a vida toda que está presente, e sai-se de lá com nova luz e ânimo para a vida toda e esperança para lá da morte.

2. E o padre? Qual é o seu lugar? A sua missão só pode ser a de membro coordenador e animador das comunidades cristãs nesta tríplice dimensão.

Ele há-de ser aquele que anima a fé e a esclarece, iluminando a vida de todos os dias nas suas diferentes dimensões: pessoal, familiar, comunitária, intelectual, social, económica, política.

Tem de ser homem de fé e, por isso, alguém que se entrega generosamente ao cuidado do seu povo, decidido a defendê-lo e a combater com ele pela justiça e pela paz, pela promoção e dignificação de todas as pessoas. Para os cristãos, é intolerável a injustiça e a exploração.

Há aquela expressão: "Católico não praticante." Uma expressão envenenada. Ela supõe que se segue os valores cristãos, só não se vai à missa nem à confissão. Mas será assim? Isto é, pratica-se real e verdadeiramente os valores cristãos da dignidade livre e da liberdade na dignidade, da partilha, da justiça, do amor? E as celebrações são efectivamente belas ou uma imensa maçada no tédio e na banalidade, de tal modo que se tornam infrequentáveis?

3. O melhor que se pode dizer de um padre é que é um "padre cristão" ou, pelo menos, tenta sê-lo. A vida do padre José Martins Júnior, que celebrou na sua Ribeira Seca (Madeira), em Agosto passado, as bodas de ouro sacerdotais, numa bela festa popular, foi pautada por esse lema.

Lá está a fé, que procurou e procura sempre esclarecer, para que não seja cega, mas autenticamente humana e cristã.

Lá estão o amor e a justiça, nunca esquecendo os privilegiados de Deus: os pobres, os desfavorecidos, os explorados. Anima os jovens e visita os doentes e os mais idosos, recordando estórias e afectos. Quando foi e é preciso, ergueu e ergue, destemido, nos diferentes púlpitos, a voz profética contra a injustiça, sabendo dos dissabores mortais que daí adviriam ou advêm.

Quem não sabe da sua rara sensibilidade estética, sendo um distinto compositor? E aí estão as celebrações em liturgias vivamente participadas por todos, fraternas e belas. E a palavra luminosa da homilia é luz e calor para a vida toda.

No livro de homenagem, "Olhares Múltiplos sobre Um Homem de Causas", estão os testemunhos de muitos que com ele foram contactando ao longo da vida - também Mário Soares - e que convergem para a afirmação de um "padre cristão", mesmo sabendo que, como disse Nietzsche, cristão só houve um e, infelizmente, crucificaram-no. Os outros vão tentando.

Um padre polémico? E Jesus não foi e continua a ser polémico? Mau sinal, quando todos estivessem de acordo na paz da indiferença. Leva consigo a amargura da marginalização por parte de alguma Igreja hierárquica. Ora, se a Igreja se quer, e bem, defensora e promotora dos direitos humanos, porque é que não os pratica no seu seio? No caso presente, dever-se-ia ir até mais longe, pois a compreensão e o amor evangélicos é que devem ser a lei por que se governa a Igreja; mas, se não se chega até aí, porque é que não se procede, pelo menos, a um julgamento eclesiástico justo?

sábado, 16 de junho de 2012

Anselmo Borges: Um homem livre pode acreditar em Deus?

Charles Pépin


Texto de Anselmo Borges no DN de hoje (aqui):

É este o título de um pequeno livro, recentemente publicado, de um prestigiado jovem filósofo francês, Charles Pépin: Un homme libre peut-il croire en Dieu?

Em primeiro lugar, a fé é do foro íntimo livre de cada um, de tal modo que, mesmo que se tente forçar alguém a acreditar ou a abandonar a fé, o que se pode conseguir é que manifeste gestos ou sinais exteriores de fé ou descrença, mas, no seu íntimo, continuará livre para acreditar ou não.

Mas a pergunta quer ir mais longe e mais fundo, pois há dois modos de entendê-la: "o homem é livre de crer em Deus?", e sobretudo: "é possível permanecer um homem livre, crendo em Deus?"

Deus é uma questão livre. Porquê? Deus não é objecto de demonstração científica e, portanto, não sendo possível demonstrar a sua existência, fica entregue à liberdade. Se se pudesse demonstrar a sua existência, não se estaria no plano da fé, do crer, mas do saber. Uma vez que Deus não é demonstrável, é possível acreditar ou não acreditar. Como dizem aliás as próprias palavras crença, que vem de credere, crer, crédito, dar crédito, e fides, fé, confiança, ter confiança.

Nisto, Kant é inultrapassável. Porque o saber científico tem como uma das suas condições que o objecto conhecido seja do domínio da experiência, não se pode demonstrar cientificamente nem que Deus existe nem que não existe. Deus é um postulado da razão prática e objecto de esperança, respondendo à pergunta: o que é que nos é permitido esperar? O homem só age moralmente quando age por dever. Mas, cumprindo o dever, que pode exigir heroicidade e até a morte, merece ser feliz. Ora, só Deus pode ser o garante da harmonia entre o dever cumprido e a felicidade. Exige-se então moralmente que Deus exista.

O acto de fé, que não é cego, pois tem as suas razões, implica, pois, pela sua própria natureza, a liberdade, é um acto livre. Não admira então que Tomás de Aquino tenha escrito que a fé convive com a dúvida. O crente autêntico é aquele que não acredita pura e simplesmente por ouvir dizer ou por educação ou pressão social. Como escreve Pépin, se alguém acredita verdadeiramente, é porque "parou um instante, duvidou, sentiu-se livre e deu esse passo." Certamente, o ateu e o agnóstico, conscientes e também com as suas razões, procederam do mesmo modo.

Aqui, surge a outra pergunta: evidentemente, a fé é um acto livre, mas pode o homem livre continuar livre, crendo em Deus? É que Deus não é um "objecto" qualquer, como os outros: é infinito, omnisciente, omnipotente, criador. Como pode então o homem ser livre, se deve a sua liberdade a Outro, a Deus? Afinal, como escreveu Feuerbach, não é o homem que criou Deus e não o contrário, devendo, portanto, recuperar o que colocou fora dele, alienando-se? Para se poder criar a si mesmo, ser livre para inventar valores, decidir o valor dos valores, ter a liberdade de inventar o sentido da vida, não deve o homem deixar de crer em Deus? Não foi isso que reivindicaram concretamente Sartre, Marx, Nietzsche?

Será necessário responder, perguntando: o que seria uma liberdade que não implicasse a liberdade de crer em Deus? Depois, não é a liberdade total um fantasma? Não reconhece o próprio Sartre que, mesmo sem Deus, estamos sob o olhar do outro? E não postula Marx um sentido pré-existente da História? E Nietzsche não crê no Super-homem?

Mas Pépin vai mais longe, perguntando se a liberdade não é uma invenção do cristianismo, precisamente a partir da fé, no sentido de dar crédito, crer, ter confiança, confiar, que arrastam consigo a dúvida, o direito à dúvida, a legitimidade da hesitação. Foi o cristianismo, e concretamente São Paulo - o homem é justificado pela fé, lê-se na Carta aos Romanos -, que inventou a ideia de que o homem pode crer ou não em Deus, confiar ou não nesse Ser, que é omnipotente e Amor infinito, e essa ideia estende-se ao futuro, a um mundo melhor, a um amigo, a uma mulher. Esta possibilidade de fé face ao Infinito descobre simultaneamente o eu, a pessoa e a sua dignidade. "Um homem livre pode crer em Deus, ou mais precisamente: a questão da liberdade só se põe para este homem que o cristianismo inventou."

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Grande Interregno dos valores

G. Gusdorf citado por Georges Minois citado por A. Borges no livro aqui referido:
A humanidade do ano 2000 "vive no Grande Interregno dos valores, condenada a uma travessia do deserto axiológico de que ninguém pode prever o fim".
Georges Gusdorf, um francês de ascendência alemã e judaica, nasceu em 1912, em Bordéus, e morreu no dia 12 de outubro de... 2ooo. Mais uma ideia dele aqui.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Inicialmente tudo parece continuar como dantes

Quando Deus é posto de lado, inicialmente tudo parece continuar como dantes. As opções fundamentais arreigadas e as formas básicas de vida continuam em vigor, apesar de terem perdido a sua fundamentação. Mas tudo muda no momento em que a mensagem de que Deus estará morto passa a ser realmente percebida e, como diz Nietzsche, fulmina o coração dos homens. Hoje verificamos isso na maneira como a ciência lida com a vida humana, fazendo com que o ser humano se torne automaticamente um objecto da tecnologia, de modo que desaparece cada vez mais como ser humano. (...)
Como há-de o ser humano encarar o ser humano quando não encontra mais nada do mistério divino no outro, mas apenas a sua própria capacidade para fazer?


Joseph Ratzinger, prefácio de 2000 de "Introdução ao cristianismo", pág. 11

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Que desejamos para além dos desejos vulgares?

Que desejamos, afinal, deixando de lado os desejos vulgares que não precisam de um Deus para se satisfazerem? Acima de tudo, não morrer, ou não morrer definitivamente; não perder aqueles que amamos - não dizemos que o amor é mais forte do que a morte? Outro desejo; que a justiça e a paz acabem por triunfar. Outro ainda: encontrar alguém que nos ame com bondade. A religião promete isso tudo, por isso é que é suspeita: «a fé salva, logo mente» (Nietzsche).


José Augusto Mourão in Quem vigia o cento não semeia, pág. 274

sábado, 23 de abril de 2011

Cultura depois da Segunda Queda


Passei uma parte da tarde a ler “No Castelo do Barba Azul”, de George Steiner, que tem como subtítulo “Algumas notas para a redefinição de cultura”. O final da segunda parte (de quatro) detém-se sobre três “reivindicações do ideal” (a expressão é de Ibsen), três estádios “profundamente interligados”, nos quais “a consciência ocidental é forçada a haver-se com a chantagem da transcendência”, todas elas relacionadas com os judeus: Moisés e o monoteísmo, Jesus e o cristianismo primitivo e o socialismo messiânico.
Escreve a certa altura Steiner, num texto todo ele bom para o contexto pascal que estamos a viver:
O genocídio que teve lugar na Europa e na União Soviética durante o período de 1936-1945 (o anti-semitismo soviético talvez seja a expressão mais paradoxal do ódio e da realidade pela utopia fracassada) foi muito mais do que uma táctica política, uma erupção do mal-estar da classe média inferior, ou um produto do capitalismo decadente. Não foi um mero fenómeno económico – social e secular. Actualizou um impulso tendendo para o suicídio da civilização ocidental. Foi uma tentativa de nivelar o futuro – ou, mais precisamente, de tornar a história comensurável com a crueldade natural, o torpor intelectual e os apetites materiais de uma humanidade que não se transcende a si própria. Se nos servirmos de uma metáfora teológica, e não temos por que nos desculpar por isso num ensaio sobre a cultura, poderemos dizer que o holocausto assinala uma Segunda Queda. Podemos interpretá-lo como um abandono voluntário do jardim e uma tentativa pragmática de queimar o jardim atrás de nós. Sem o que a sua memória continuaria a infectar a saúde da barbárie com os seus sonhos debilitantes ou os seus remorsos. 
Com a tentativa falhada de matar Deus e a tentativa quase conseguida de matar aqueles que O tinham “inventado”, a civilização entrou, justamente conforme a previsão de Nietzsche, “na noite cada vez mais noite”.

quinta-feira, 31 de março de 2011

A obra da morte de Deus em manga espanhola


A obra "Assim falou Zaratustra", de Nietzsche, mas em manga (BD japonesa), ou seja, uma adaptação, foi traduzida para espanhol. E tem um blogue, aqui, para acompanhar o processo de lançamento.

terça-feira, 15 de março de 2011

O bigode de Nietzsche, a careca de Gandhi e as barbas de Jesus

Gandhi dizia que gostava de Cristo, mas não dos cristãos. Um leitor comentou esta frase matinal dizendo que “se não gostava dos cristãos também não podia gostar de Cristo”. E rematou: “O gajo não percebeu Cristo...

Eu não acredito na teoria da dupla verdade, mas ambos podem ter razão, excepto na parte de Gandhi não ter percebido Cristo. Acho que compreendeu, ele que tinha no seu quarto uma imagem de Jesus ressuscitado (aqui).

Por lado, Gandhi realçou a não continuidade absoluta entre Jesus Cristo e os cristãos. Outra versão da frase, por acaso também já aqui citada, diz: “Eu gosto de Cristo. Eu não gosto de vocês, cristãos. Vocês, cristãos, são tão diferentes de Cristo” (aqui). Basta olhar para a história. E o presente também oferece exemplos abundantes da nossa distância em relação a Cristo.

Porém, em abono do leitor anónimo, há continuidade entre Cristo e os cristãos, a começar pelo facto de a expressão “Jesus Cristo”, que comporta um credo (que Jesus de Nazaré é o enviado), ser uma afirmação eclesial, isto é, não é o nome de uma pessoa, mas o nome de uma pessoa mais a confissão de fé nessa pessoa. Em certo sentido, Cristo não existe se não houver cristãos que o reconheçam. Enviado a quem?


Em abono do meu desconhecido leitor invoco ainda Nietzsche, discordando do filósofo de bigode farfalhudo, em contraste com a careca de Gandhi, o qual tinha um bigodinho. O alemão dizia: “No fundo, só houve um cristão, e morreu na cruz”. Se Nietzsche tivesse razão, se o cristianismo fosse uma fé impraticável pelos humanos comuns, não haveria continuidade porque não haveria por onde continuar.

Pela frase de Gandhi, até parece que o estadista indiano era nietzschiano, como se só acreditasse no único cristão da história. Mas Gandhi acreditava no poder dos humildes, dos infra-homens, ao contrário do nihilista. Gandhi era um tudiísta. Ele simplesmente não gostava dos cristãos que não seguiam Cristo, género de cristãos comum a todas as épocas. Como Cristo ensinou, provavelmente com barbas, o trigo anda misturado com joio. São todos cristãos, mesmo que alguns não sejam de espírito e de esforço, havendo outros que o são de essência sem serem de nome. De qualquer forma para acabar com esta meditação de pilosidades, tranquiliza-nos saber que nem um só cabelo cai da nossa cabeça sem que Deus o permita. E isto inclui os carecas, como Gandhi. E se Ele sabe de cabelo, muito mais saberá de corações.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Volta!

Não! Volta
com todos os teus tormentos!
Oh, volta
para o último dos solitários!
Todos os rios das minhas lágrimas
correm em direcção a ti!
E a última chama do meu coração
ergue-se para ti”
Oh, volta,
meu Deus desconhecido!
Minha dor! Minha derradeira felicidade.

Nietzsche em “Assim falava Zaratustra”

sábado, 8 de janeiro de 2011

Anselmo Borges: O que diria Jesus hoje?

Heiner Geissler


Artigo de Anselmo Borges no DN de hoje, após a ausência de Natal e Ano Novo.


Os dias de Natal são especiais. Há uma atmosfera diferente, o melhor de nós pode revelar-se: mais proximidade, mais intimidade, mais amor, mais solidariedade. Directa ou indirectamente, há uma presença inegável: o nascimento de um Menino, com "a mensagem mais bela e revolucionária da história mundial", no dizer de Heiner Geissler, que foi ministro do Governo Federal da Alemanha e que escreveu um livro admirável precisamente com o título: "O que diria Jesus hoje?"


Mesmo se muitas vezes os que se reclamam de Jesus fizeram da sua mensagem um Disangelho, como disse Nietzsche, ela é real e verdadeiro Evangelho, notícia boa e felicitante.


Essa mensagem tem na sua base a afirmação de que é o ser humano, com a sua dignidade inviolável e fundamentada em Deus, que ocupa o centro de toda a actividade política e económica. Essa dignidade e os direitos que dela derivam constituem o critério de todas as leis, mesmo das leis "divinas", e o fundamento para a convivência em igualdade de todos os seres humanos, independentemente do sexo, cultura, etnia, religião, classe, nação, estatuto social ou jurídico.


O amor a Deus sem amor ao próximo é uma ilusão, e este amor ao próximo não é platónico, pois tem de ter tradução prática concreta - dar de comer, de beber, de vestir, visitar o doente e o preso -, e supera as barreiras culturais, nacionais, religiosas. Próximo é o próprio inimigo em dificuldade.


Os seres humanos e os seus interesses estão antes dos interesses do capital. O capitalismo neoliberal não está de acordo com o Evangelho e "constitui um crime contra milhares de milhões de pessoas que têm de viver na pobreza, na doença e na ignorância". "Quem transforma o valor na bolsa e a cotação das acções de uma empresa em algo absoluto e quem atribui importância, em termos económicos, apenas aos interesses do capital faz parte das pessoas que, como diz Jesus, possuem muito dinheiro e para as quais será difícil entrar no Reino de Deus." Os mais de dois mil milhões de cristãos têm, pois, de formar uma força impulsionadora de uma nova ordem económica mundial com base na justiça.


A mulher tem de ser tratada na plenitude da sua dignidade humana em igualdade com o homem. Qualquer discriminação, na sociedade ou na Igreja, está em contradição com o Evangelho. "A proibição da ordenação das mulheres e o celibato obrigatório não têm fundamentam evangélico."


Jesus não excluiu os estrangeiros - curou o servo do centurião romano e a filha da mulher sírio-fenícia. Portanto, a xenofobia não é compatível com o Evangelho. Os romanos enquanto potência ocupante podiam obrigar um judeu a transportar a bagagem na distância de uma milha, sendo neste contexto que se percebe o que Jesus diz: "Faz uma segunda milha de livre vontade." Talvez o romano comece a conversar, e quem sabe se não acabarão por beber um copo juntos? Aí está: "A reconciliação, o desanuviamento e a solução pacífica dos conflitos são preferíveis à violência e à guerra."


Quando se olha para o comportamento de Jesus, por palavras e obras, com as mulheres, os estranhos, os samaritanos (hereges), os pobres, os doentes, os leprosos, os inimigos (romanos e cobradores de impostos), entende-se como a nova imagem do ser humano constituía um acto revolucionário, com significado político-religioso explosivo.


O conflito foi mortal por causa de duas imagens de Deus. De um lado, o deus do sistema do Templo e do Império de Roma, em cujo nome as autoridades sacerdotais e o prefeito romano oprimiam e exploravam o povo. Do outro, o Deus dos últimos. Jesus acaba por ser crucificado, porque a sua mensagem e a sua acção abalavam na sua raiz um sistema organizado ao serviço dos poderosos da religião do Templo e do Império.


E hoje? Jesus é o modelo da credibilidade, na harmonia entre ideias e actos. "Hoje, seria o deputado e o porta-voz ideal do povo, uma vez que, no seu tempo, defendeu as pessoas - de forma independente, aberta e corajosa - contra os detentores do poder."

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Suportar


Se existe um Deus, como suportar não o ser?

Freidrich Nietzsche (1844-1900)

Uma pergunta que revela uma infinita ambição e não sei se um imenso ateísmo, se uma imensa fé.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Então dancemos um pouco


Nietzsche dizia que só acreditaria num deus que soubesse dançar. Não sei se com isso queria dizer que nunca acreditaria em nenhum, se acreditaria no Dionísio, que tocado pelo excesso deveria rebolar-se de tanto dançar, ou se pensava na dança de Shiva. De qualquer forma, Jesus Cristo, que sabia de economia, dançava. Pelo menos ia a casamentos. Não havia casamentos sem música nem dança nem vinho. Multiplicou o vinho (João 6). Deve-se ter fartado de dançar. E é sabido que por vezes era inconveniente.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Agonia

Quase três quartos de século após a afirmação proferida por Nietzsche, "Deus está morto", uma outra afirmação, menos proferida do que murmurada na angústia, vem hoje fazer eco: o homem está em agonia.

Gabriel Marcel (1889-1973)

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Gramática

Deus é talvez menos um além do saber do que um certo aquém das nossas frases. E se o ocidental é inseparável dele, não é por uma propensão invencível de franquear as fronteiras da experiência, mas porque a sua linguagem o fomente sem cessar à sombra das suas leis: "Eu receio bem que não nos desembaracemos nunca de Deus, uma vez que nós ainda acreditamos na gramática" (Nietzsche).

Michel Foucault (1926-1984)

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Lutero ria a bandeiras despregadas

Um aluno de Teologia escreveu num exame que, "para Lutero, o ser humano está sempre na fossa". O professor contou na aula e a turma riu. Mas era, simplificado, o que Lutero pensava da condição humana: sem redenção possível a não ser pela imerecida graça de Deus. (E os católicos, no fundo, também acham que assim é. A declaração teológica sobre a justificação foi assinada no final de 1999).

Mas há dias apareceu esta frase no "Público", naquele cantinho das citações, que eu nunca imaginaria na boca de Lutero:

Se não se pode rir no céu, não quero ir para lá.

Martinho prefere ficar onde está, mesmo na fossa, se não puder rir no céu - e dançar, acrescenta Nietzsche, que em vida deve ter dançado pouco. Terá Lutero rido a bandeiras despregadas quando andava por cá?

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Como o fim de escravidão nos EUA influenciou Nietzsche

Na "Folha de S. Paulo" saiu há dias uma pequena entrevista muito útil para compreender Nietzsche. Pelo menos, chama a atenção para um aspecto que passa despercebido quando se estuda este filósofo (falo da minha experiência, obviamente) - a influência da Guerra de Secessão no pensamento do alemão.


Diz Domenico Losurdo, professor em Urbino (itália), autor da biografia "Nietzsche - O Rebelde Aristocrata”:

O início da atividade literária de Nietzsche ocorre em meio à Guerra de Secessão (1861-65), que marca a derrota do Sul dos EUA em eternizar a escravidão negra.

Ele manifestou todo seu desprezo por Beecher-Stowe, a autora do célebre romance abolicionista "A Cabana do Pai Tomás".

Mas, onipresente em Nietzsche e no debate cultural e político da segunda metade do século 19, o tema da escravidão se dissipa ou se transforma numa inocente metáfora no âmbito da hermenêutica da inocência (Bataille, Deleuze, Vattimo, Colli, Montinari etc.).

Sobre a relação entre Nietzsche e nazismo, o ensaísta italiano afirma:

A categoria de "irracionalismo" não me parece particularmente produtiva para explicar Nietzsche e Hitler.

São claros os elementos de continuidade e descontinuidade que subsistem entre um e outro. Quando lemos em Nietzsche terríveis palavras de ordem ("aniquilamento das raças decadentes", "aniquilamento de milhões de malsucedidos"), não podemos deixar de pensar na tradição colonial e no sociodarwinismo, herdados e radicalizados por Hitler.

Também a celebração nietzschiana da escravidão nos reconduz ao nazismo. O Terceiro Reich pretendia encontrar na Europa Oriental, entre os eslavos, os escravos para trabalhar para a "raça dos senhores".

No entanto esse motivo é antípoda ao pensamento de Nietzsche, que, vivendo numa época histórica diferente (anterior à Primeira Guerra), se bate pela unidade da aristocracia de todos os países europeus, inclusive os da Europa Oriental.

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