Texto de Anselmo Borges no DN de hoje.
A quem rouba pouco chamam-lhe gatuno e metem-no na cadeia;
pelo contrário, a quem o faz em grande escala chamam-lhe grande financeiro e
recebe todo o tipo de elogios e felicitações pelo seu espírito
empresarial." Quem isto escreve é um filósofo espanhol que, embora ateu e
anticlerical, muito estimo: Fernando Savater, que acaba de publicar um pequeno
livro de reflexão sobre - é este o título - "Os Dez Mandamentos no Século XXI".
Não roubar referia-se, antes de mais, ao sequestro de
pessoas, ao roubo de outros seres humanos, frequente para arranjar escravos.
Esse rapto continua hoje, sobretudo para conseguir órgãos. Mas também continuam
os raptos dos opositores políticos e de bebés, como aconteceu na ditadura
argentina, tanto mais horrorosos quanto foram praticados também por pessoas
ligadas à religião, até de missa diária. Ora, "o corpo é a propriedade
elementar que cada um de nós tem e ninguém quer ser utilizado, raptado ou
manipulado por outros".
Há múltiplas formas de roubo: o roubo da dignidade, do
tempo, de ideias. É impressionante o que se passa em situações de catástrofe,
como terramotos e inundações: no meio do caos e da desordem, o saque em massa.
É como se populações desfavorecidas pudessem, finalmente, participar no festim
do capitalismo e do consumo.
Na realidade, quando falamos em roubo, referimo-nos, em
princípio, a tirar às pessoas injustamente os bens que possuem e a que têm
direito. Mas, em caso de necessidade, ainda se pode falar de roubo? Quem
condenaria alguém por roubo, concretamente se se rouba a uma pessoa rica ou uma
instituição endinheirada, para, numa situação de desespero, comprar um remédio
ou pão para um filho esfomeado? "Há matizes morais e jurídicos que diferenciam
quem rouba um pedaço de pão e quem tira a uma viúva o sustento com que alimenta
os filhos." Lá está o carácter insaciável de algumas pessoas com
quantidades de dinheiro suficientes para mais de dez vidas e que continuam a
roubar. No entanto, só podemos comer três vezes ao dia e dormir numa cama de
cada vez. "No fundo, há um limiar a partir do qual o dinheiro se
transforma numa doença e não numa ajuda." Aí estão os especuladores
gananciosos, que enriquecem utilizando mecanismos e sistemas que, embora não
constituam delito no sentido estrito do termo, equivalem a roubar do ponto de
vista moral: legalidade e moralidade não coincidem, "sobretudo em
situações de penúria e escassez". Ora, no dia em que escrevo, leio, num
documento divulgado pela organização não governamental Oxfam, que os paraísos
fiscais ocultam 14 biliões (14 seguido de 12 zeros) de euros, que, se fossem
taxados, poriam duas vezes fim à pobreza extrema no mundo.
E os impostos? Lá está o dito célebre: duas certezas na
vida: morrer e ter de pagar impostos. A justificação destes só pode ser o bem
comum e o bem-estar, como bens colectivos, segurança social, protecção no
desemprego e na doença, garantidos pelo Estado. Se o Estado não cumpre os seus
deveres, nomeadamente na sua função redistributiva, pode chegar-se a "uma
forma legal de roubo".
O Papa Francisco não se tem cansado de insistir na
necessidade de trazer a ética para a economia e para a finança. Na sua
linguagem simples, evocou recentemente uma parábola para explicar a crise. Como
se trata de uma "crise do homem, que destrói o homem, que despoja o homem
da ética, tudo é possível, tudo se pode fazer, e vemos como a falta de ética na
vida pública faz tanto mal a toda a humanidade". E vem a estória, contada
por um rabino do século XII. Aquando da construção da Torre de Babel, era
necessário fabricar tijolos do barro, meter-lhe palha, levá-los ao forno e, já
cozidos, transportá-los para o alto. Cada tijolo era um tesouro, devido a todo
o trabalho para o fabricar. Quando caía um tijolo, era um drama e o operário
era castigado. Mas se caísse um operário nada acontecia.
"Isso é o que se passa hoje: se os investimentos nos
bancos caem, é uma tragédia, mas se as pessoas morrem de fome, se não têm nada
para comer nem têm saúde, não acontece nada. Esta é a crise actual."
6 comentários:
Fernando Savater acaba de publicar ...?!
Aos anos que eu li o livro (2004/2005.
Tem toda a razão, Maria de Fátima. A edição que tenho é de novembro de 2004. Anselmo Borges deve ter tido acesso a uma nova edição e pensado que é a primeira em português.
A vaidade e prosápia dos homens publicos leva-os por vezes a cometer estes deslizes. ...têm que parecer muito cultos
Sim, verifiquei que a minha edição (a primeira)também é de Novembro de 2004.
AB é useiro e beseiro nestes deslizes que só demonstram uma coisa: ignorância. Ao nível dele só mesmo o Tolentino
Deixem em paz o abade...
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