Mais um daqueles artigos do género tive-educação-católica-mas-não-sou-crente-no-entanto-lá-vou-eu-perorar-sobre-a-situação-da-Igreja-e-ser-for-sobre-o-Papa-ainda-melhor. O seguinte artigo é de Vasco Graça Moura, no DN de hoje. Note-se, contudo, que eu gosto deste tipo de artigos. Como a Igreja é uma coisa pública, todos podem escrever sobre ela. E se for escrito com inteligência, ainda melhor. É o caso.
Sem dúvida que vivemos numa cultura de matriz cristã, pelo menos no horizonte que ficou para trás. Mesmo os ateus são católicos. Como naquele diálogo:
- Qual é a tua religião?
- Nenhuma. Sou ateu.
- Mas ateu de que religião? Católico? Protestante? Muçulmano?
- Ah, sou ateu católico, claro.
Como toda a gente que teve uma educação católica, mesmo sem
depois ter tirado dela consequências de maior no plano das convicções
religiosas, também eu, ao saber da renúncia de Bento XVI, fiquei com a
impressão de estar a viver um momento histórico cujas consequências principais
estão ainda muito longe de poder ser abarcadas.
Não foi apenas o ineditismo da situação, já tantas vezes
referido e perspectivado, para trás e para a frente, que me impressionou.
Também não direi que me tenha propriamente preocupado a discussão a lo divino,
já a puxar as coisas para o plano híbrido em que o direito canónico e a área do
sagrado se confrontam, sobre a liberdade plena do acto de renúncia ao vicariato
de Deus ou as eventuais dificuldades de coexistência de quem "já foi"
e de quem "passou a ser", num caso de tamanha envergadura.
O que me veio ao espírito foi a relação histórica tão
profunda e tão antiga de Igreja de Roma com a Europa, a começar pelo sacro
Império Romano-Germânico de que o Habsburgo Carlos V, após tê-lo
vitoriosamente disputado ao Valois Francisco I, veio ainda a ser um poderoso
símbolo moderno, não obstante o terrível saque de Roma que promoveu com os seus
lansquenetes em 1527.
Pouco antes desses agitados e terríveis sucessos, tivera
lugar a grande cisão da Igreja protagonizada por Lutero. Pouco depois,
começaram as guerras de religião. Passou a haver uma correspondência acentuada
entre a Igreja romana e a Europa meridional. Os países do Norte, salvo o caso
da Polónia, foram mais condicionados por uma matriz luterana e por uma devoção
mais interiorizada. A ética protestante modelou o capitalismo, como diria Max
Weber, e também lhe deu um sentido da solidariedade. A liturgia católica não
dispensou pompas e cerimoniais, ritos externos e paramentos. Nas práticas
sociais dos países do Sul, os homens continuaram a venerar o vil metal pelo vil
metal, isto é, "amando cousas que nos foram dadas / não para ser amadas,
mas usadas", como disse o Camões.
E todavia, nos tempos do capitalismo industrial, a Igreja de
Roma surge a articular uma mensagem ética com uma profunda preocupação social.
O processo foi muito lento e teve, no plano conceptual, momentos de ponderação
e contestação, conflito e desvario. Vai de Leão XIII e da sua Rerum Novarum
(1891) até à teologia de libertação, que pontua a mensagem evangélica junto dos
desesperados do Terceiro Mundo, e aos católicos ditos progressistas, que
tentaram encontrar na esquerda caminhos para uma Igreja que concebiam como
agente da revolução.
Talvez não houvesse, em várias décadas ingenuamente
ideológicas do século XX, a percepção da caixa de Pandora em que fervilhavam os
fundamentalismos que vieram a traumatizar o espírito humano a partir do 11 de
Setembro de 2001.
Duas guerras mundiais, vários totalitarismos e a guerra fria
terão impedido que esse problema se percebesse mais cedo.
No extremo desse longo e cruel processo histórico, Bento XVI
é um grande intelectual europeu de um tempo menor ainda europeu. Surge num
momento em que, pela sua personalidade, é levado a enquadrar racionalmente
esses inúmeros conflitos e tensões do seu tempo. Logo em inícios de mandato foi
miseravelmente atacado por radicalismos de vária ordem, a propósito de uma sua
intervenção em Ratisbona.
Na sociedade de hoje, há processos e tecnologias de
comunicação, formas de circulação de informação em grande quantidade e
velocidade, modalidades de saber e de transmissão do conhecimento,
virtualidades empresariais e negociais à escala planetária, potenciais de
sugestão e de manipulação imparáveis, hábitos de contacto humano em redes
sociais e modelos de comportamento que não podiam conceber-se até há bem poucas
décadas.
Nesse quadro, a Europa, seja a do Norte seja a do Sul, por
muita importância que ainda consiga afirmar, está a perder terreno. A Igreja
Católica também. O futuro, nessa dimensão vertiginosa, surge-nos cada vez mais
interrogado e imprevisível. O mundo escapa-nos.
A crise dos valores éticos e culturais que nasceram na nossa
civilização é um factor de desagregação acelerada da Europa (e por culpa da
Europa) e também atinge a Igreja e o seu magistério, ou, pelo menos, torna-o em
grande medida ineficaz. O Papa teve a plena percepção disso mesmo.
Sendo assim, o que é que havia de fazer um ancião de 85
anos, que sente que as suas forças ficam esgotadas e as suas responsabilidades
da chefia da Igreja se tornam cada vez maiores?
1 comentário:
Não sei se quando escreveu: " tive-educação-católica-mas-não-sou-crente-no-entanto-lá-vou-eu-perorar-sobre-a-situação-da-Igreja-e-ser-for-sobre-o-Papa-ainda-melhor", o fez em tom de crítica mas acho que sim.
Devo dizer que nessas pessoas e todas as que escrevem sobre a igreja no mundo actual sem ser cerntes eu vejo realmente uma IMENSA sede de espiritualidade a que a igreja católica infelizmente não soube dar resposta. São realmente ovelhas sem pastor à mercê de todos os lobos, desde IURDs a misticismos orientais e ocidentaos vários.
Esperemos que tal como Jesus, se apresente na igreja hoje alguem que saibe guiar as ovelhas reais de hoje e nao o homem teorizado do catecismo até sacear a sede de espiritualidade.
Enviar um comentário