O texto é longo, mas tratando-se de um teólogo apreciado por estes lados, sobre uma questão de grandes consequências para qualquer católico - o ser e estar da Igreja - não hesito em colocá-lo todo aqui. Walter Kasper pronunciou-o em abril passado na Academia Católica de Bréscia. Copiei daqui.
Em primeiro lugar, gostaria de expressar a minha profunda
gratidão pelo convite a vir a Bréscia. Devo confessar que é a primeira vez que
venho pessoalmente a esta famosa e bela cidade. Mas, através da editora
Queriniana, estou ligado a ele há décadas.
1. Experiências pessoais com a Igreja
O tema que tratarei a seguir é: "Crise e futuro da
Igreja". Eu não me ocupo apenas atualmente com a Igreja. Esse tema me
interessa desde quando eu posso pensar, e já são mais de 70 anos. Por isso,
gostaria de começar esta conferência com algumas notas biográficas, para
esclarecer que o tema da "Igreja" não é para mim um tema com o qual
eu tenho a ver apenas em nível acadêmico ou por "dever de ofício". A
Igreja tem alguma coisa a ver comigo, com a minha vida e com a minha
experiência de vida. Trata-se da minha Igreja.
Eu cresci antes e durante a Segunda Guerra Mundial, no
período do nazismo e da guerra, quando a Igreja, entre nós, na Alemanha, não
estava bem. O bispo da nossa diocese havia sido expulso pelos nazistas. No
campo de concentração de Dachau, havia um grande bloco para os sacerdotes e, no
fim da guerra, muitas Igrejas estavam reduzidas a escombros. Quando menino, eu
sabia que não deveria contar aos meus companheiros o que a minha mãe me dizia
(meu pai era soldado) sobre os nazistas, porque senão eu acabaria em um campo
de concentração. A discriminação era clara, havia um claro "sim" ou
um claro "não". Mas justamente com essa identidade clara, a Igreja
para nós era pátria, casa. Era, como se diz hoje, a Igreja pré-conciliar. Eu
não a percebia como limitante. Tínhamos orgulho de pertencer a ela.
Depois da guerra, eu encontrei o reflorescimento do
movimento juvenil, intimamente ligado aos movimentos litúrgico e bíblico.
Depois do nazismo e dos horrores da guerra, foi um novo começo. Durante os meus
estudos universitários nos anos 1950, eu tomei conhecimento da teologia de
Tübingen. Não se tratava nem de uma neoescolástica cristalizada, nem de uma
teologia liberal. Era, ao invés, uma teologia baseada na concepção da tradição
viva da Igreja. Ela foi concebida por Johann Adam Möhler, um dos maiores
precursores da teologia do século XX, que, analogamente a John Henry Newman,
preparou a renovação eclesiológica do Concílio Vaticano II.
No entanto, para nós, foi uma surpresa absoluta que o Papa
João XXIII, no dia 25 de janeiro de 1959, anunciasse que queria convocar um
Concílio. Ninguém esperava. Mas nunca percebemos o Concílio como uma ruptura.
Para nós, ele foi, ao contrário, a implementação de aspirações não ditas, que já
estavam há muito tempo nos nossos corações. Propagou-se uma onda de entusiasmo,
como os jovens hoje não podem nem sequer imaginar e que não poderiam mais
reviver.
A experiência do Concílio me deu uma marca permanente. O
Concílio se tornou para mim ponto de referência fixo da minha teologia.
Posteriormente, algumas expectativas de então podem ser julgadas como ingênuas.
No entanto, ainda hoje considero os documentos conciliares como uma bússola
segura para o caminho da Igreja no século XXI e no ainda jovem terceiro
milênio. Espero que o 50º aniversário da abertura do Concílio, que celebramos
este ano, torne novamente presente e fecundas as riquezas dos 16 documentos
conciliares.
Muitas vezes fala-se de uma crise da Igreja depois do
Concílio. Sim, ela existe principalmente na Europa Ocidental. Mas nem tudo o
que aconteceu depois do Concílio ocorreu por causa do Concílio. Ao invés, só
aprofundando o conhecimento e a compreensão do Concílio e realizando melhor as
suas intenções profundas, se lermos e compreendermos os textos conciliares em
uma hermenêutica não de ruptura, mas sim de uma continuidade viva e inovadora,
seremos capazes de superar as dificuldades atuais. Nesse espírito e com essa
intenção, nos anos depois do Concílio, eu publiquei a cristologia [1] e o livro
sobre a doutrina de Deus [2] para ajudar a reforçar os fundamentos sobre os
quais a Igreja está construída.
Perto do fim do meu período na universidade, também quis
publicar uma eclesiologia. Mas as coisas ocorreram de forma diferente. Depois
de 25 anos de docência na universidade, fui chamado para ser bispo de uma
grande diocese e tive que fazer uma eclesiologia prática. Foi o momento da
verdade para a minha eclesiologia, antes mais do que nada teórica, e, ao mesmo
tempo, foi uma experiência que me enriqueceu. Eu fiz uma experiência concreta
do povo de Deus. Além disso, eu também era responsável pelas relações com a
Conferência Episcopal do Terceiro Mundo. Eu viajei para muitas partes do mundo,
conheci as jovens Igrejas da África, da América Latina e da Ásia, fiquei
impressionado com a sua vitalidade, mas também fui confrontado com muitas
situações de pobreza, miséria e perseguição. Os problemas da nossa casa, em
comparação, pareciam modestos.
Eu também experimentei do que eram capazes de fazer as
freiras católicas e os voluntários das organizações humanitárias. Foi uma
experiência grandiosa pertencer a essa Igreja de tantas formas, mas que é uma
só, universal; uma Igreja que é uma luz de esperança para inúmeras pessoas e em
que em toda a parte estamos em casa, em um mundo que, por outro lado, está tão
dilacerado.
Ainda hoje, a Igreja é, apesar de todas as suas divisões, o
maior movimento pela paz que existe no mundo, é um sinal de esperança para
inúmeras pessoas em todo o mundo. Assim, todas essas experiências eram para mim
uma ampliação de horizonte formidável e positivo para além das palavras.
Quando, há 12 anos, fui chamado a Roma para o Pontifício
Concílio para a Promoção da Unidade dos Cristãos, começou uma fase existencial
totalmente nova. Vindo da Alemanha, país confessionalmente dividido, eu estava
familiarizado com os problemas entre católicos e evangélicos. Da ortodoxia, eu
só sabia o que se aprende nos livros escolares. Desde o início, ficou-me claro
que não podemos nos ocupar do ecumenismo a partir da escrivaninha e que nem os
documentos por si só são suficientes. Em vez disso, trata-se de construir
relações ou, melhor, confiança e amizade com os outros cristãos. Isso me levou,
novamente, a fazer muitas viagens ao redor do mundo e a viver muitas
experiências comoventes. Eu conheci a Igreja universal e a cristandade mundial
na sua variedade de cores. As Igrejas orientais pré-calcedonianas, ortodoxas e
católicas, a Igreja Católica latina, as Igrejas protestantes tradicionais, as
Igrejas livres e as novas comunidades carismáticas e pentecostais, as Igrejas
do hemisfério Norte e do Sul. À primeira vista, tudo isso parece ser muito
desorientador; a um segundo olhar, enriquece; por fim, contudo, é doloroso
fazer uma experiência concreta da dilaceração do único corpo de Cristo.
Todas essas experiências de vários tipos, feitas como
professor universitário, bispo de uma grande diocese e a responsabilidade na
Igreja mundial reforçaram a minha fé católica e ampliaram a minha eclesiologia
original. Era disso que eu queria prestar contas e também queria compartilhar
com os outros, na obra que agora é publicada [3]. Ao mesmo tempo, eu queria
dizer que, apesar das diferenças que existem, a experiência ecumênica de
pertencimento de todos os batizados em Cristo, a cooperação e a amizade
ecumênica indicam que a unidade plena de todas as Igrejas é uma grande tarefa.
Essa é a vontade do Senhor, a tarefa que nos foi confiada pelo Concílio.
2. O método e os atuais desafios da eclesiologia
Depois de ter ilustrado o pano de fundo, coloca-se agora a
pergunta: como se faz eclesiologia? Qual é, portanto, o método da eclesiologia?
Como se sabe, a questão do método é constitutivo para toda disciplina
acadêmica.
Eu já mencionei que venho da tradição da Escola de Tübingen
do século XIX. Para ela, o método histórico é determinante. No entanto, o
método histórico não significa apenas o uso dos métodos históricos críticos.
Ele tem um significado teológico muito mais profundo. Significa que a fé e a
doutrina da Igreja não são um sistema abstrato de dogmas, enunciados e
princípios. O conteúdo da fé é uma história concreta, a história de Deus com as
pessoas, que começa com Abraão, Moisés, os profetas e que se cumpre em Jesus
Cristo.
Em última análise, a fé orienta para uma Pessoa concreta,
Jesus Cristo, Filho de Deus, e, portanto, a alguém que testemunhou Deus como
Pai misericordioso, precisamente na própria morte e na própria ressurreição.
Mas Jesus Cristo não só viveu há 2.000 anos na Palestina, para depois ir
embora. Ele está presente permanentemente, através do seu Espírito Santo, na
história da Igreja, no seu anúncio, nos seus sacramentos e em toda a sua vida,
especialmente a dos santos.
Se, portanto, quisermos conhecer e compreender a fé, então
devemos estudar essa história. Certamente, os dogmas são importantes. Mas não
caíram do céu. Eles são, ao contrário, na história, por assim dizer, o
sedimento, a expressão da experiência de fé e da proclamação da fé por parte da
Igreja. Se quisermos compreendê-los, devemos compreender como eles se formaram
e, ao mesmo tempo, é preciso traduzi-los na história de hoje, nos problemas e
nos horizontes de hoje. Nesse sentido, fala-se de uma tradição viva, que não é
só um conteúdo fixo, mas também um processo de tradição ativa. Isso não tem
nada a ver com o relativismo, mas, ao contrário, quer dizer e mostrar que,
nessa tradição se expressa algo duradouramente válido, duradouramente
importante e duradouramente meritório de reflexão. A tarefa da teologia é dar
desse tesouro o que é duradouramente válido, torná-lo frutífera para hoje e,
assim, transmiti-lo vivo para o futuro.
Então, eu sempre parto do testemunho do Antigo e do Novo
Testamento e da sua interpretação, vivida e, muito frequentemente, sofrida, na
História da Igreja. Nisso, reveste-se de uma especial importância o testemunho
dos Padres da Igreja dos primeiros séculos e também dos grandes Santos.
Justamente essa era a intenção do Concílio Vaticano II: ele queria um certo aggiornamento,
mas não uma atualização que fosse uma adaptação para os dias de hoje. Ao invés,
ele queria, como dizem os franceses, uma ressourcement, um retorno às fontes
para nelas obter água fresca e refrescante. O Concílio, assim, não encaminhou
uma Igreja nova, mas sim uma Igreja renovada, uma Igreja que está em linha de
continuidade com a tradição até agora, mas uma continuidade viva, inovadora. A
sua mensagem é a mesma em todos os séculos, que nunca é velha. Ao invés, é
sempre jovem e sempre nova, porque Jesus Cristo é a novidade que nunca se
desgasta, é a novidade eterna, jovem.
Esta História, às vezes, é complicada, mas também é
enormemente reconfortante. Pois indica que a Igreja não se encontra em
dificuldades só hoje, mas se encontrou em dificuldades, por assim dizer, desde
o início e que já superou muitas crises, das quais saiu, normalmente,
reforçada. Toda a História da Igreja é uma história de crise, e Jesus não
anunciou nada de diferente aos discípulos: "Neste mundo vocês terão
aflições, mas tenham coragem; eu venci o mundo" (Jo 16, 33).
Perguntamo-nos, então: quais são os desafios que temos pela
frente hoje, e a quais desafios a eclesiologia hodierna deve responder? Eu vejo
um tríplice desafio.
1. Há dificuldades e crises concretas, diferentes de acordo
com os países. Por exemplo, nos últimos anos, os terríveis escândalos de abusos
em diversas países, inclusive no meu país. Custaram muito à Igreja, em
confiança, e lesaram gravemente o seu prestígio. Devemos nos perguntar,
portanto: o que deu errado? E o que se deve fazer, como processo de cura, para
ajudar as vítimas? A Igreja deve ser ecclesia semper purificanda et renovanda:
Igreja que precisa continuamente de purificação e renovação (Lumen gentium 8).
Uma eclesiologia, portanto, deve ser apologeticamente certa, no sentido de
defender a estrutura permanente da natureza da Igreja desejada por Cristo, mas
não deve defender tudo da Igreja; também deve indicar formas de renovação nas
pegadas do Concílio.
2. A Igreja, para nós, na Europa, encontra-se atualmente em
uma difícil fase histórica de transição. As premissas culturais e sociais do
milieu católico e da Igreja popular de velho estilo estão no fim ou, em muitos
lugares, já tiveram fim. Por Igreja popular de velho estilo, entende-se a
situação em que a Igreja determina do modo mais amplo a vida pública e os
parâmetros que valem publicamente, enquanto nos encontramos em uma situação
amplamente secularizada e de pluralidade social. Em muitos países, estamos indo
ao encontro de um novo tipo de situação de diáspora, em que os cristãos
convictos e praticantes, católicos e não católicos juntos, ainda constituem uma
grande minoria, mas não são mais a maioria. O Papa Bento XVI falou de minoria
qualitativa, desperta e criativa.
Tal situação preocupa e assusta muitos cristãos. Mas se
seguirmos o grande e famoso historiador Arnold J. Toynbee, então, nos períodos
de maior crise e de revolução da história da humanidade, sempre foram minorias,
despertas e criativas, que encontraram uma saída e uma solução, que depois
também pôde ser seguida pela maioria. As minorias, portanto, não devem se
tornar seitas; elas podem ter uma enorme influência cultural, se forem
despertas e criativas. Por isso, não é preciso ter medo. Porém, esse
desenvolvimento nos pões desafios significativos, por exemplo na reestruturação
das nossas paróquias e na nossa atividade de cuidado pastoral, como já ocorre
na França e na Alemanha e, parcialmente, também na Itália. Em última análise,
no entanto, trata-se do problema eclesiológico: o que é uma Igreja local? O que
é uma comunidade local (paróquia)? Como ela se parecerá no futuro e como se
parecerá a relação entre Igreja universal e local?
3. O verdadeiro e mais profundo desafio, na nossa situação
secularizada e pluralista, é a questão de Deus. Não nos referimos apenas, em
primeiro lugar, ao novo ateísmo agressivo, que existe, mas sim à indiferença
para com Deus, o obscurecimento da consciência de Deus e a aparente ausência de
Deus. Muitos, na nossa sociedade, vivem como se Deus não existisse e pensam,
assim, que podem viver muito bem. Além disso, também há muitos, muitos
numerosos do que pensamos, que se definem como agnósticos, mas são, por assim
dizer, agnósticos devotos que interiormente estão em busca, são em certo
sentido peregrinos, e se encontram, por assim dizer, no átrio dos gentios. Eles
não se interessam pelas questões estruturais internas à Igreja, como as do
celibato, da ordenação de mulheres e similares, que atualmente muitas vezes são
os insiders que colocam em primeiro plano.
Eles perguntam se e o que a Igreja tem a dizer sobre a
questão basilar da sua existência, isto é, em última análise, sobre a questão
de Deus que está indelevelmente impressa nos corações dos seres humanos criados
à imagem de Deus. Estou convencido de que o futuro da Igreja nas nossas
sociedades depende disto: se somos ou não capazes de responder a essa pergunta,
e se não nos pronunciamos apenas com a boca, mas também se podemos testemunhar
com credibilidade na vida.
E com isso nos encontramos diante da questão basilar da
eclesiologia de hoje. Ela não pode tratar apenas de questões estruturais dentro
internas à Igreja. Deve fazê-lo, também, obviamente. Mas, acima de tudo, deve
pôr a questão da Igreja à luz da questão de Deus. A eclesiologia, portanto,
pode ser não apenas hierarcologia, da qual se interessam os insiders, mas não
as pessoas de fora. A eclesiologia deve ser teologia, isto é, discurso (logos)
sobre Deus (theos). Isso é o que tenta fazer a eclesiologia que eu proponho.
Mais exatamente, ele tenta tratar a eclesiologia no horizonte da escatologia,
portanto, da mensagem do reino vindouro de Deus e da esperança que ele nos dá.
A esperança hoje é mercadoria escassa. O próprio Jesus provavelmente nunca
falou explicitamente da Igreja, mas sim do reino de Deus; a Igreja é o seu
sinal e instrumento. Dito teologicamente: a Igreja é quase-sacramento, isto é,
sinal que já torna presente e instrumento do reino incipiente de Deus, reino de
verdade, de justiça, de santidade e de felicidade.
Os Padres da Igreja tinham uma bela imagem para expressar
essa ideia. Eles diziam que a Igreja é como a lua: não brilha com luz própria,
mas somente com a luz que recebe do sol. A Igreja também não tem um esplendor
próprio, mas apenas o que cai sobre ela de Deus e de Jesus Cristo. Ela não é
importante em si mesma, mas é importante como sinal e instrumento de Deus e de
Jesus Cristo na história da humanidade e do mundo. As duas primeiras palavras
da Constituição Dogmática sobre a Igreja do Concílio Vaticano II são Lumen
Gentium (Luz das Nações), mas depois não se continua com "a luz das nações
é a Igreja", mas sim com "Lumen gentium quod est Christus" (luz
dos gentios, que é Cristo).
Diz-se que a Igreja é somente um sacramento, isto é, sinal e
instrumento de unidade com Deus e da unidade dos seres humanos. A Igreja está
no seguimento de Cristo, testemunho de Deus servidor para os outros. Ela existe
ouvindo a Palavra de Deus e pronunciando-a e dando a sua vida por muitos, isto
é, por todos.
3. Redescobrir a Igreja
Movendo-nos a partir dessa visão teológica da Igreja,
devemos redescobri-la. É como uma árvore, que só pode resistir à tempestade se
tiver raízes profundas. Portanto, devemos nos interrogar sobre as raízes da
Igreja e perguntar: Igreja, quem tu és? O que tu dizes sobre ti mesma? Hoje, o
grande risco é o achatamento da compreensão da Igreja. Esse perigo não vem só
de fora, mas muitas vezes da própria Igreja. É o risco da autossecularização da
Igreja, que se envolve em muitas coisas, certamente importantes, com grande
zelo, mas às vezes se esquece da sua missão fundamental. O que precisamos é de
uma reviravolta teocêntrica. Uma visão teológica da Igreja.
O primeiro capítulo da Constituição sobre a Igreja do
Concílio Vaticano II inicia, com razão, com um capítulo sobre o mistério da
Igreja. Ela, portanto, não é, primeiramente, uma entidade social. Certamente,
deve se comprometer com a caritas, com a justiça social, com o desenvolvimento
e com a paz no mundo, e também o faz. Mas as suas raízes se espalham mais profundamente.
Em última análise, ela está fundamentada no desígnio eterno de salvação,
assumido por Deus antes de todos os tempos, para trazer novamente para casa a
humanidade inteira e toda a realidade por meio de Jesus Cristo, no Espírito
Santo. Recapitular e conduzir novamente para Cristo, única cabeça, todas as
coisas (Ef 1, 10). Com a Igreja, Deus deu um início. Ela é, por assim dizer, a
vanguarda do reino de Deus
As quatro grandes Constituições do Concílio Vaticano II
indicam essa natureza, cada uma de um modo diferente. A Constituição sobre a
Igreja [4]: A Igreja é o povo de Deus e o Corpo de Cristo, ela fará
resplandecer a luz de Cristo no mundo, por meio da sua própria palavra e dos
sacramentos e de toda a sua própria vida.
A Constituição sobre a Revelação [5] acrescenta: por isso, a
Igreja deve escutar a Palavra de Deus, ela é, portanto, essencialmente, Igreja
que escuta: assim, no entanto, também deve testemunhar a Palavra com energia e
coragem. Deve dar orientação e ser uma lâmpada que dá luz na escuridão.
A Constituição sobre a Liturgia [6] afirma que, na liturgia,
particularmente na celebração eucarística, o reino vindouro de Deus se faz
presente, já agora, sob sinais sacramentais, como força e alimento no caminho
da vida e da história. A Igreja é Ecclesia de Eucharistia (João Paulo II,
2003): Igreja que vive da Eucaristia.
Por fim, a Constituição pastoral [7] afirma que as alegrias
e as esperanças, as tristezas e as angústias das pessoas de hoje são também as
alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo.
A Igreja, portanto, deve ser solidária com as desventuras e as alegrias das
pessoas. Ela deve ser Igreja no mundo e para o mundo.
Nesse âmbito, gostaria de ir ao essencial e redescobrir o
mistério profundo da Igreja: e assim também mostrar a beleza da Igreja como a
Esposa de Cristo, apesar das suas manchas e rugas (Ef 5, 27). A Igreja, diziam
os Padres da Igreja citando o Cântico dos Cânticos, é negra, mas bonita. Porém,
as únicas reformas exteriores não ajudam a avançar. É como uma casa que deve
ser reparada: não basta preencher as fissuras e renovar a pintura; é preciso,
em primeiro lugar, assegurar os fundamentos. Assim é também para a Igreja: os
meros reparos cosméticos não resolvem. É preciso uma renovação que venha da fé
e uma renovação espiritual. Então, como a Igreja é uma realidade encarnatória,
ou seja, uma realidade complexa de uma dimensão divina e uma dimensão humana
(LG 8), tal renovação pode e deve conduzir também a reformas concretas. As duas
coisas se integram. Eu gostaria de tratar, a partir desse ponto, ao menos de
uma questão de reforma concreta.
4. Renovação da forma de communio da Igreja
Nas questões de reforma institucional, a abordagem deve ser
feita a partir do lado da compreensão da Igreja como communio. Essa é a
Leitidee, a ideia principal e diretriz da Igreja no Concílio Vaticano II. Mas o
que se entende por communio? “Communio” não significa, simplesmente, comunhão,
que se fundamenta na derivação e proveniência comum, ou que se origina por
simpatia e interesses comuns e por meio da união e da fusão entre nós. Communio
indica, no sentido do Novo Testamento, originalmente participação
(participatio); mais exatamente, participação na realidade salvífica de Jesus
Cristo, na vida e no Espírito de Jesus Cristo; em última análise, participação
na communio trinitária, portanto, na vida trinitária de Deus.
Em tal acepção, a Igreja é entendida pelo Concílio no
sentido dos Padres da Igreja como imagem, por assim dizer ícone da Trindade.
Assim como nós adoramos um único Deus em três Pessoas, assim também a Igreja,
como communio, é uma única unidade na variedade (Lumen gentium 4; Unitatis
Redintegratio 3). A communio é fundada mediante o Batismo e a Eucaristia.
Mediante o único Batismo, participamos do corpo de Cristo (Gal 3, 28, 1Cor 12,
13). Sobre Eucaristia, Paulo diz: "E como há um único pão, nós somos um só
corpo" (1Cor 10, 16ss). Communio é, portanto, um conceito teológico e não
sociológico.
Se entendermos a Igreja em sentido escritural, patrístico e
conciliar, como a communio fundada por meio do Batismo e da Eucaristia, então
toda renovação deve principiar com o Batismo e com a Eucaristia. Renovação do
Batismo significa, acima de tudo, renovação da catequese para os sacramentos
iniciação, o Batismo (juntamente com a Crisma) e a Eucaristia. Ela era o
segredo do sucesso da Igreja antiga e o é também hoje na Igreja em missão.
Entre nós, pelo fato de que muitos cristãos são batizados sem saber o que
significa ser cristão, há atualmente um difundido analfabetismo cristão, que
leva a um cristianismo certificado apenas no papel de um certificado de
Batismo. Muitos se dizem cristãos, mas vivem como todos os gentios modernos. A
renovação da catequese para os sacramentos de iniciação para as crianças e para
os jovens, mas também para os adultos, é como o alfa e o ômega da renovação
eclesial e é de primeira importância para o Ano da Fé que nos espera. Devo
dizer que em Roma conheci algumas paróquias que, nesse aspecto, dão um notável
exemplo e o fazem com grande sucesso.
Acrescenta-se a isso que a communio requer um estilo
comunicativo na Igreja, isto é, um estilo dialógico e fraterno, que se distinga
tanto daquele estilo vetusto, feudal, quanto daquele estilo novo, aparentemente
moderno, burocrático. Tal forma de communio da Igreja não comporta a
democratização da Igreja. A democracia tem o seu lugar legítimo no âmbito
político. A Igreja não é um povo qualquer: ela é o povo de Deus, é uma
realidade de gênero próprio. Trata-se, portanto, da realização da realidade do
povo de Deus, onde todos são filhos e filhas de Deus, irmãos e irmãs na mesma
família de Deus. Na revelação, Deus fala aos seres humanos como a amigos e se
entretém com eles (DV 2). Daí, a vida da Igreja também deveria ser
caracterizada por um estilo comunicativo, participativo e dialógico de
fraternidade, amizade e confiança e por uma cultura do diálogo disposta à
escuta e à aprendizagem.
"Diálogo" é uma palavra-chave do último Concílio,
que se encontra nos documentos cerca de 30 vezes, em diversos contextos. Paulo
VI escreveu a propósito uma encíclica sua, a Ecclesiam suam (1964), e João
Paulo II abordou-a em profundas reflexões antropológicas: diálogo não só como
partilha de ideias, mas também de dons (Ut unum sint, 1995, n. 28). Por isso, devemos
nos admirar pelo fato de que, recentemente, alguns levantaram suspeitas sobre a
pura palavra "diálogo", banindo-a do uso linguístico eclesial, quase
querendo-a tornar objeto de um anátema.
Devemos simplesmente saber o que se entende por diálogo. Diálogo
não significa conversa informal, nem mesa redonda, nem disputa acadêmica, nem
manifestação informativa, nem negociação política, nem procedimento quase
parlamentar. No diálogo, não compartilhamos algo com o outro, mas
compartilhamos com ele a nós mesmos ou, melhor, compartilhamos a nós mesmos. O
diálogo, entendido teologicamente, significa dar-se um recíproco testemunho,
cada um, da própria fé e, desse modo, participar da riqueza do outro, deixar-se
enriquecer, mas depois compreender ainda melhor e mais profundamente a própria
fé. Por isso, no diálogo, não nos encontramos no nível do mínimo denominador
comum. O diálogo não tem nada a ver nem com o relativismo, nem com o
sincretismo. Ao contrário; através do diálogo, somos introduzidos mais
profundamente na verdade e, mediante isso, somos enriquecidos, especialmente no
diálogo ecumênico, na nossa compreensão da verdade.
Se, nesse sentido, queremos traduzir na prática a realidade
da communio da Igreja na realidade concreta, então disso faz parte a
comunicação, e isso quer dizer dar nova vida e reforçar as instituições
sinodais na Igreja, tanto em nível local quanto universal. Tal renovação não é
algo a ser fazer ex novo. A Igreja, a partir do concílio dos Apóstolos, tem uma
tradição sinodal, cuja redescoberta poderia dar à Igreja um rosto jovem, fresco
e uma forma renovada.
O ideal me parece estar descrito na Regra de São Bento. Para
São Bento, o abade tem um lugar importante na comunidade monástica; por assim
dizer, ele representa Jesus Cristo. Mas, no caso de decisões importantes, diz
Bento, ele deve ouvir o conselho dos coirmãos e deve ouvir também o mais jovem,
porque o Espírito Santo também pode falar através dele. Depois de ter se
consultado, continua Bento, o abade deve refletir sobre tudo, rezar por isso e
depois deve decidir, isto é, ele não é o executor de nenhum voto democrático;
decide livremente, mas decide com base em uma consulta. Autoridade e
fraternidade, portanto, se integram e se condicionam mutuamente. Na Igreja,
deve haver auctoritas, na acepção original da palavra, de augere, crescer.
Autoridade que não oprime a vida, mas que fundamenta a vida, multiplica a vida,
faz crescer a vida e promove a vida.
Tal conjunto comunicativo de ministério e comunidade ou,
melhor, de Igreja deveria existir em todos os níveis da vida eclesial,
paroquial, diocesana, universal. Em nível da Igreja universal, a Igreja
precisa, por amor à unidade na variedade, em um mundo cada vez mais
globalizado, mas interiormente dilacerado, de um centro forte. Precisamos de
Pedro, que, com a sua profissão de fé em Cristo, é a rocha sobre a qual foi
fundada a Igreja (Mt 16, 18) e que deve fortalecer os seus irmãos (cf. Lc 22,
32). Precisamente em tempos difíceis como os nossos, vale a pena reunir-nos em
torno de Pedro. Da mesma forma, a Igreja precisa reforçar a estrutura
colegial/sinodal. As duas coisas não estão em contradição. A integração,
desejada pelo Concílio Vaticano II, dos dois pontos de vista poderia, ao invés,
contribuir para reforçar a unidade interna e para superar um certo afeto
antirromano, que infelizmente ainda está presente.
Ao diálogo voltado para dentro, corresponde o diálogo
voltado para fora: o diálogo com o povo de Deus da Antiga Aliança; o diálogo
ecumênico e o diálogo com as outras religiões; o diálogo com a cultura de hoje
e com todos os seres humanos de boa vontade. Com esses diálogos, o Concílio
indicou o caminho no futuro: de uma Igreja que se entende como uma rocha e
fortaleza fechada a uma Igreja comunicativa e aberta ao diálogo. Diálogo não
significa renunciar à própria identidade; significa, ao invés, crescer na
própria identidade. Porque, para a identidade cristã, no seguimento de Jesus, é
essencial o ser para os outros e com os outros. Isso exclui tanto a adaptação
quanto uma mentalidade ansiosa, que se isola para cultivar o próprio território
circunscrito.
Disso faz parte, particularmente na nossa situação, o
diálogo ecumênico. É tarefa dada por Jesus e é impulso e obra do Espírito
Santo. A decisão a propósito, portanto, é irreversível e irrevogável; é um
canteiro de obras importante da Igreja do futuro. Alcançamos muito e já podemos
colher frutos. Mas ainda há questões sérias diante de nós. Ainda não chegamos à
meta. Não é só a questão do ministério, mas a questão do ministério em relação
com a da Igreja. Pois – algo que nenhum especialista contestará – assim como
nós temos com os protestantes uma concepção diferente da Igreja, nós também
temos uma concepção diferente da unidade da Igreja. Aqui tocamos as
dificuldades fundamentais do diálogo ecumênico hoje. Apesar dessas
dificuldades, também devemos fazer juntos o que podemos já hoje, na verdade e
no amor.
Obviamente, o diálogo inter-religioso também é um mandamento
desta época. É a alternativa à violência e ao choque de culturas, etnias e
religiões. Mediante tal diálogo na verdade e no amor, a Igreja, como povo
escatológico de Deus, pode ser, em meio aos conflitos do nosso mundo, exemplo e
instrumento da paz (shalom) escatológica.
5. Conclusão: alegria nova para a Igreja
Com os diálogos voltados para dentro e para fora, o Concílio
Vaticano II iniciou desenvolvimentos que não podemos programar. O Concílio indicou
a direção para uma nova época. Isso nos deu uma luz para o caminho que não é um
farol capaz de iluminar uma pista inteira que leva ao futuro; ele pôs em nossas
mãos uma lanterna que, como toda lanterna, faz luz apenas na medida em que
avançamos. Fornece luz para cada passo individual, que deve e pode seguir o
passo seguinte. Por isso, um programa detalhado para o futuro não é possível. O
futuro está nas mãos de Deus.
O Papa João XXIII, ao convocar e abrir o Concílio Vaticano
II, falou de um renovado Pentecostes. Se estamos convencidos de que, em última
análise, só o Espírito do Pentecostes pode dar a renovação, então devemos,
acima de tudo, fazer o que os primeiros discípulos e discípulas fizeram antes
de Pentecostes. Naquele tempo, os discípulos e as mulheres que tinham
acompanhado Jesus se reuniram com Maria, mãe de Jesus, assíduos e concordes na
oração (At 1, 12-14). Hoje também o futuro da Igreja está determinado, em
primeira linha, por aqueles que rezam, e a Igreja do futuro será, acima de
tudo, uma Igreja de pessoas que rezam.
O Espírito pode vir, como no primeiro Pentecostes, na
tempestade e com o fogo (Atos 2, 2ss): com a tempestade que varre algumas
coisas e com o fogo que queima coisas que, hoje, ainda nos parecem importantes.
O Espírito, no entanto, também pode, como no caso do profeta Elias, vir na
brisa suave do vento (1Reis 19, 12ss), pode purificar e transformar a nós e ao
mundo, com o seu ardor, a partir de dentro. Pode nos tornar novamente
conscientes de que a alegria para Deus é a nossa força (Neemias 8, 10).
Se nós, movendo-nos a partir dessa alegria, como povo de
Deus, regozijamo-nos na Igreja, a Igreja também viverá amanhã e terá futuro
depois de amanhã. Então, ela se tornará esplendor que preanuncia o reino
vindouro de Deus e atrairá pessoas que buscam e interpelam, jovens e velhos, e
será novamente, para muito, pátria espiritual. O fato de se lamentar não atrai
ninguém; alegria, ao contrário, é contagiosa. A alegria de ser cristão
convence. Se eu pude contribuir um pouco com essa alegria, ficarei muito feliz.
Notas:
1. KASPER, Walter. Gesù il Cristo. Bréscia: Queriniana,
1986.
2. KASPER, Walter. Il Dio di Gesù Cristo. Bréscia:
Queriniana, 1984.
3. KASPER, Walter. Chiesa cattolica. Essenza – Realtà –
Missione. Bréscia: Queriniana, 2012.
4. Lumen Gentium.
5. Dei Verbum.
6. Sacrosanctum Concilium.
7. Gaudium et Spes.
2 comentários:
Ainda há Esperança...
Conheço um sorriso muito parecido. Só ainda não é Cardeal... mas lá chegará!
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