O leitor João (Fernando) Duque, que não é o teólogo de Braga
nem o economista de Lisboa, deixou um extenso comentário no último texto de
Anselmo Borges, que, com a devida autorização, reproduzo aqui.
O tema do Concilio Vaticano II dá muito “pano para mangas”,
como se costuma dizer, e muito mais neste ano de 2012, em que se comemoram os
50 anos do início desse magno acontecimento (eclesial e civilizacional).
É provável que ao longo deste ano saiam vários livros sobre
o tema, algumas memórias de bispos que nele participaram (embora o contributo
dos portugueses tenha sido insignificante, o que todos os historiadores dizem).
Na Comunicação Social, receio bem que os jornalistas afinem
todos pelo mesmo diapasão e que venham glosar até à exaustão o mote do
“Concílio-oportunidade-perdida-para-a-renovação-da-reacionária-Igreja-Católica-concílio-esse-cujas-premissas-foram-traídas-nos-anos-subsequentes-pelos-Papas-e-pelo-aparelho
eclesiástico”).
Basicamente, julgo que há quatro teses interpretativas sobre
o Concílio Vaticano II, e começo por apresentá-las, da Esquerda para à Direita
(usando uma linguagem política, que também pode ser eclesial... embora se trate
de uma simplificação algo abusiva):
1) Tese dos Progressistas radicais (os que ainda estão - mais
ou menos - dentro da Igreja): “O Concílio foi apenas uma mudança cosmética e
superficial numa Igreja irreformável, autoritária, patriarcal, e misógina;
deveria ter ido muito mais longe (abolição do celibato sacerdotal, ordenação de
mulheres, reconhecimento dos anticoncetivos, do divórcio, regime parlamentar na
Igreja, - e toda uma agenda progressista radical tipo BE, muito anos 60-70) -
mas não foi, e daí o seu fracasso”.
2) Tese dos Progressistas moderados: “O espírito do Concílio
foi travado pela reação neoconservadora de João Paulo II e da Cúria romana e de
movimentos conservadores (Opus Dei, Comunhão e Libertação, etc.), mas virá um
dia um novo João XXIII e será retomado”; “Estamos a atravessar um Inverno, um
parêntesis, mas virá uma nova Primavera da Igreja”.
3) Tese dos Conservadores moderados (Bento XVI, e também
linha atual da Igreja, pelo menos desde 1978): “O Concílio foi bom e inspirado
pelo Espírito Santo, mas os progressistas e modernistas deturparam o sentido
dos documentos conciliares e daí a crise pós- conciliar. É preciso ler o Concílio
à luz da tradição da Igreja, que começou há dois mil anos com Jesus Cristo e
não em 1962. Na Igreja há espaço para reformas, mas nunca para revoluções
(cortes abruptos com o passado)”; “Temos que descobrir o verdadeiro Concílio
Vaticano II e não a caricatura que os progressistas radicais dos anos 60-70
quiseram veicular e que foi a verdadeira causa da crise”.
4) Tese dos Conservadores radicais (Integristas de Mons.
Lefebvre e similares): “O Concílio foi a vitoria dos hereges “modernistas”
sobre a verdadeira Tradição católica, apoiados por dois Papas de ortodoxia
duvidosa (João XXIII e Paulo VI) e o resultado foi uma enorme crise da Fé
católica, da Moral, de vocações, que infetou a Igreja até aos dias de hoje”; “Só
um milagre é que salvará a Igreja da sua decomposição às mãos dos
modernistas/progressistas”; “Bento XVI é apenas um gestor moderado e não um
verdadeiro restaurador da Tradição”.
Haveria também uma quinta tese, mais e laica e
“sociológica”, que se poderia formular mais ou menos da seguinte maneira:
1. Nos anos 60 produziu-se, no mundo ocidental, uma
revolução cultural e de mentalidades, que se caracterizou pela contestação
geral de qualquer tipo de Autoridade (do Estado, da família, no Exército, na
Universidade, na Igreja); à separação definitiva do sexo e da reprodução
(invenção e comercialização da pílula); à entrada maciça e definitiva das
mulheres (de todos os estratos sociais) no mercado de trabalho e à sua
autonomia sexual e financeira; por um ideal simultaneamente Individualista e
Coletivista (movimentos sociais, como os Hippies, etc.), pelo trunfo de uma
Contra-Cultura baseada na exaltação do momento, do instante, do prazer momentâneo
(música, sexo casual, droga, “happenings”); pela ascensão de uma sociedade de
abundância, depois da penúria do Pós-guerra (apogeu dos “Trinta Gloriosos”, de
Jean Fourastié, antes da crise petrolífera de 1973); pela consolidação das
classes médias neste capitalismo “civilizado” e social-democratizado, governado
alternadamente pelos Socialistas e pelos Conservadores democratas-cristãos.
2. Esta revolução usou ainda uma linguagem marxista, dado o
“zeitgeist” dominante na Europa Ocidental do Pós-Guerra, em que um marxismo
difuso dominava as ciências humanas, e até o jornalismo: mas na sua essência,
era libertária-individualista.
3. Nos anos 70-80, quando o Marxismo perde a aura que o
envolvia há décadas como horizonte utópico da Historia humana (graças às
revelações de Soljenitsine sobre o Gulag soviético, o genoidio do Cambodja, a
revelação das atrocidades do Maoismo depois da morte de Mao em 1976, os
“Nouveaux Philosophes” parisienses que desmarxizaram a intelectualidade
francesa e europeia), o que ficou de todo este vasto movimento foi a ideia de
uma autonomia do indíviduo em todas as esferas; assim, da comuna “hippie” ou da
célula maoísta ou trotskista dos anos 60 para o escritório “chic” dos
arrogantes e sôfregos “yuppies” neoliberais dos anos 80, há mutação mas não rutura;
4. Uma instituição conservadora, como é a Igreja Católica
tentou uma conjunto de reformas e adaptações ao mundo contemporâneo num período
de grande turbolência , como foram os anos 60; ora era impossível não ser
envolvida pelos “ventos “ que então sopravam; a isto há ainda a acrescentar a
celebre frase de Tocqueville que o pior momento para um sistema “autoritário”
(sem sentido pejorativo, referia-se à Monarquia de Luís XVI) é quando decide
enveredar pelo caminho das reformas;
5. Os ventos desta “revolução cultural” (muito mais profunda
que a chinesa de Mao Tse Tung, embora com muitíssimos menos mortos...) entraram
na Igreja católica através das janelas abertas pelo Concílio, Igreja católica
essa que era “quase” um vaso hermético desde pelo menos, o pontificado
ultramontano de Pio IX (meados do século XIX), e o resultado foi não tanto a
renovação ou um novo impulso (como desejavam o “bom Papa João” e numerosos
católicos de boa vontade…) mas sim a confusão, o caos instalado, as crises de
consciência de numerosos padres e fieis, a quebra das vocações religiosas, a
sedução pelas ideologias revolucionárias por parte do “Progressismo católico”
(mais de um século depois dos socialismos utópicos de 1830-1848 que ainda
sonhavam com a síntese Cristianismo/Socialismo), a contestação da autoridade do
Papa (o celebre episódio da encíclica “Humanae Vitae”, de 1968, contestada em
todo o mundo, até por alguns bispos e teólogos), o desânimo e desagregação de
numerosos movimentos eclesiais, o decréscimo do número de praticantes, o
esvaziar dos seminários e toda uma decadência/crise eclesial que persiste, com
muito mal-estar interno , mesmo após os movimentos “retificativos” de João
Paulo II e Bento XVI.
6. O movimento de secularização, iniciado em meados do
século XVIII, prosseguiu ao longo dos últimos dois séculos, com fases
alternadas de avanço rápido e de “slow motion”; nos anos 60-70, toda esta
revolução cultural produziu uma aceleração acentuada deste processo, que
reduziu a Igreja Católica, nos países europeus (o resto do Mundo: América
Latina, África, Ásia é um caso a analisar à parte) a uma sombra do que foi.
Ainda assim, resistiu melhor que as Igrejas anglicanas (Grã-Bretanha) e
luteranas (países escandinavos), muito mais permeáveis ao “ar do tempo”, mas
que curiosamente (ou talvez mesmo por causa disso), conheceram um declínio
muito mais acentuado.
4 comentários:
Sinto-me honrado pela reprodução do meu texto no corpo principal do seu seu blogue, Jorge .
Vamos lá a ver as reacções ao mesmo. Ou será que o CVII já não diz nada a ninguem ?
Prexado autor, interessante o mapeamento feito das interpretações a respeito do Concílio, nas quatro linhas. Entretanto, sugiro ao senhor aprofundar um pouco mais sua tese sociológica, uma vez que podemos demonstrar que as raízes do CCVII estão já bem lançadas em meados do séc. XIX, bem longe dos acontecimentos da década de 60. Um abraço cordial.
Diz pouco... sabe... é que com a sua tese (que já vi noutro local, mormente um livro de Harvey Cox,) veio mostrar que a interpretação correcta não é a dos movimentos sectários progressistas que mais espaço de antena têm...
Américo Mendes
Amigo Laércio:
Gostava que me esclarecesse em que medida as origens do CVII vinham desde meados do século XIX (???). Refere-se à velha tese de Lamennais como “Pai” (ou melhor: antepassado) do Progressismo católico ?
Amigo Américo Mendes:
Nunca li Harvey Cox, que só conheço de nome. Sei que foi um teólogo protestante liberal, norte-americano, autor de um best-seller dos anos 60 intitulado “A cidade secular”. Foi conotado com o movimento radical dos “Teólogos da Morte de Deus”, mas parece que afinal, nunca pertenceu ao movimento.
Na parte “sociológica “ da tese que apresento baseio-me sobretudo num autor francês pouco conhecido entre nós, Alain Besançon, para mim dos maiores pensadores católicos vivos.
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