sábado, 25 de agosto de 2012

Anselmo Borges: "A religião do gato"


Francis X. D'Sa

Texto de Anselmo Borges no DN de hoje (aqui)

Era uma vez um guru que todas as noites fazia meditação com os seus discípulos. Um dia, um gato entrou na sala e, correndo por todo o lado, perturbou a meditação. O guru ordenou então que se prendesse o gato fora, durante a hora da meditação. Deste modo, todos puderam meditar sem serem importunados. O tempo passou. O guru morreu e foi substituído por outro guru, que tudo fez para que se respeitasse estritamente a tradição, dizendo, entre outras coisas, que era necessário prender um gato fora, durante a hora da meditação. Quando também o gato morreu, procurou-se outro, para prendê-lo fora, durante a hora da meditação. Uma vez que as pessoas não compreendiam o sentido desta medida, apelou-se a teólogos, que escreveram dois grossos volumes cheios de notas sobre a necessidade sagrada de se ter um gato preso fora, durante a meditação da noite. O tempo passou, a meditação caiu fora de uso, já ninguém se interessava por ela. Mas, para respeitar o rito, continuou-se a prender um gato."

Aí está uma bela estória, contada pelo teólogo indiano Francis X. D'Sa, que diz bem como tantos costumes e leis, mas sobretudo a religião, se podem tornar vazios de sentido, sem qualquer conteúdo.

De tal modo Jesus atacou a religião meramente formal, ritualista, que poderia bem ser o autor desta estória. Verberou de modo cru a hipocrisia: "Ai de vós, hipócritas, que devorais as casas das viúvas, com o pretexto de prolongadas orações! Ai de vós, hipócritas, porque pagais o dízimo da hortelã, do funcho e do cominho e desprezais o mais importante da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade! Ai de vós, hipócritas, porque limpais o exterior do copo e do prato, quando por dentro estão cheios de rapina e iniquidade! Ai de vós, hipócritas, porque sois semelhantes a sepulcros caiados: formosos por fora, mas, por dentro, cheios de ossos de mortos e de toda a espécie de imundície!" E não foi ele que pronunciou a afirmação mais revolucionária na história das religiões: "o Homem não foi feito para o Sábado, mas o Sábado para o Homem", significando deste modo que o critério último de validade de todas as leis, mesmo das leis de Deus, é o serviço ao Homem, a todos os seres humanos, na sua dignidade?

Há 50 anos, precisamente em Julho de 1962, quando um calor sufocante fazia transpirar os cardeais nas comissões de trabalho conciliares - estava-se na preparação do Concílio Vaticano II -, o Papa João XXIII começou a distanciar-se de alguns esboços preliminares. Conta Juan Masiá, citando o biógrafo dos Papas, P. Hebblethwaite: Um dia o bom Papa João "mediu uma página com a sua régua e disse: 'Quinze centímetros de condenações e apenas dois centímetros de louvor. Porventura é este o modo de dialogar com o mundo contemporâneo?

"Coube ao cardeal Montini (depois, Papa Paulo VI) a tarefa de fazer compreender este ponto, na reunião final da Comissão Central. Os anátemas e as condenações, disse Montini, não são a resposta para os erros contemporâneos. No mundo moderno, os remédios contra os erros são a misericórdia, a caridade e o testemunho de vida cristã.

"Após este discurso, ouviu-se o cardeal Ottaviani - era o inquisidor do Santo Ofício - murmurar: 'Peço a Deus que me chame antes de acabar o Concílio; assim estarei seguro de que morro como católico.'

"Chegava o momento de partir para férias. O Papa não ficaria livre antes de 31 de Julho. No dia 30, recebeu Shizuka Matsubara, superior de um santuário xintoísta em Quioto. Anotou no seu 'Diário': Deu-me muito gosto receber uma visita tão boa... O Papa deseja estar unido a todas as almas honradas e rectas, onde quer que se encontrem, de qualquer nação, num clima de respeito, compreensão e paz..."

À distância de 50 anos, não falta quem atribua em grande parte ao Concílio a causa da actual crise da Igreja, por causa da perda da sua identidade. Ora, aqui, é preciso dizer que a identidade nunca é dada de modo fixo e definitivo, pois é histórico-narrativa. Apesar de o processo nem sempre ser fácil nem isento de sofrimento, numa identidade sã e adulta, auto-afirmação e abertura ao outro, a todos os outros, co-implicam-se.

7 comentários:

Anónimo disse...

Parece-me super interessante:

Doutoramento na Universidade Católica Portuguea do Porto em "Mística e experiências místicas"

mas eu sou suspeito, pois tenho grande admiração por um dos futuros docentes.

Fernando d'Costa

Jorge Pires Ferreira disse...

Obrigado pela informação.
Tem temas muito interessantes.

J. Duque disse...

Jorge:

O tema do Concilio Vaticano II dá muito “pano para mangas”, como se costuma dizer, e muito mais neste ano de 2012, em que se comemoram os 50 anos do início desse magno acontecimento (eclesial e civilizacional)

É provável que ao longo deste ano saiam vários livros sobre o tema, algumas memórias de bispos que nele participaram (embora o contributo dos portugueses tenha sido insignificante, o que todos os historiadores dizem).

Na Comunicação Social, receio bem que os jornalistas afinem todos pelo mesmo diapasão , e que venham glosar até à exaustão o mote do “Concilio-oportunidade-perdida—para-a-renovação-da-reaccionária-Igreja-Católica-concílio-esse-cujas-premissas-foram-traídas-nos-anos-subsequentes-pelos-Papas-e-pelo-aparelho eclesiástico”).


Basicamente, julgo que há quatro teses interpretativas sobre o Concilio Vaticano II, e começo por apresentá-las, da Esquerda para à Direita (usando uma linguagem politica, que também pode ser eclesial... embora se trate de uma simplificação algo abusiva):

1) Tese dos Progressistas radicais (os que ainda estão - mais ou menos - dentro da Igreja):
 “O Concilio foi apenas uma mudança cosmética e superficial numa Igreja irreformável, autoritária, patriarcal, e misógina; deveria ter ido muito mais longe (abolição do celibato sacerdotal , ordenação de mulheres, reconhecimento dos anticonceptivos, do divorcio, regime parlamentar na Igreja, - e toda uma agenda progressista radical tipo BE, muito anos 60-70) - mas não foi, e daí o seu fracasso”.




2) Tese dos Progressistas moderados:
 “O espírito do Concilio foi travado pela reacção neoconservadora de João Paulo II e da Cúria romana e de movimentos conservadores (Opus Dei, Comunhão e Libertação, etc. ), mas virá um dia um novo João XXIII e será retomado”;
 “Estamos a atravessar um Inverno, um parêntesis, mas virá uma nova Primavera da Igreja”.



3) Tese dos Conservadores moderados (Bento XVI, e também linha actual da Igreja, pelo menos desde 1978):
 “O Concilio foi bom e inspirado pelo Espírito Santo, mas os progressistas e modernistas deturparam o sentido dos documentos conciliares e daí a crise pós- conciliar. É preciso ler o Concilio à luz da tradição da Igreja, que começou há dois mil anos com Jesus Cristo e não em 1962.
 Na Igreja há espaço para reformas, mas nunca para revoluções (cortes abruptos com o passado)”;
 ”Temos que descobrir o verdadeiro Concilio Vaticano II e não a caricatura que os progressistas radicais dos anos 60-70 quiseram veicular e que foi a verdadeira causa da crise”


4) Tese dos Conservadores radicais (Integristas de Mons. Lefebvre e similares):
 “O Concilio foi a vitoria dos hereges “modernistas” sobre a verdadeira Tradição católica, apoiados por dois Papas de ortodoxia duvidosa (João XXIII e Paulo VI) e o resultado foi uma enorme crise da Fé católica, da Moral, de vocações, que infectou a Igreja até aos dias de hoje”;
 “Só um milagre é que salvará a Igreja da sua decomposição às mãos dos modernistas/progressistas”;
 “Bento XVI é apenas um gestor moderado e não um verdadeiro restaurador da Tradição”.


J. Duque disse...

(cont.)


Haveria também uma quinta tese, mais e laica e “sociológica”, que se poderia formular mais ou menos da seguinte maneira:

1. Nos anos 60 produziu-se, no mundo ocidental, uma revolução cultural e de mentalidades, que se caracterizou pela contestação geral de qualquer tipo de Autoridade (do Estado, da família, no Exército, na Universidade, na Igreja); à separação definitiva do sexo e da reprodução (invenção e comercialização da pílula); à entrada maciça e definitiva das mulheres (de todos os estratos sociais) no mercado de trabalho e à sua autonomia sexual e financeira; por um ideal simultaneamente Individualista e Colectivista (movimentos sociais, como os Hippies, etc.), pelo trunfo de uma Contra-Cultura baseada na exaltação do momento, do instante, do prazer momentâneo (Musica, sexo casual , droga, “happenings”); pela ascensão de uma sociedade de abundância, depois da penúria do Pós-guerra ( apogeu dos “Trinta Gloriosos”, de Jean Fourastié, antes da crise petrolífera de 1973); pela consolidação das classes medias neste capitalismo “civilizado” e social-democratizado, governado alternadamente pelos Socialistas e pelos Conservadores democratas-cristãos.

2. Esta revolução usou ainda uma linguagem marxista, dado o “zeitgeist” dominante na Europa Ocidental do Pós-Guerra, em que um marxismo difuso dominava as ciências humanas, e até o jornalismo: mas na sua essência, era libertária-individualista.

3. Nos anos 70-80, aquando o Marxismo perder a aura que o envolvia há décadas como horizonte utópico da Historia humana (graças às revelações de Soljenitsine sobre o Gulag soviético, o genoidio do Cambodja, a revelação das atrocidades do Maoismo depois da morte de Mao em 1976, os “Nouveaux Philosophes” parisienses que desmarxizaram a intelectualidade francesa e europeia), o que ficou de todo este vasto movimento foi a ideia de uma autonomia do Individuo em todas as esferas; assim, da comuna “hippie” ou da célula maoista ou trotskista dos anos 60 para o escritório “chic” dos arrogantes e sôfregos “Yuppies” neoliberais dos anos 80, há mutação mas não ruptura;

4. Uma instituição conservadora, como é a Igreja Católica tentou uma conjunto de reformas e adaptações ao mundo contemporâneo num período de grande turbulência , como foram os anos 60; ora era impossível não ser envolvida pelos “ventos “ que então sopravam; a isto há ainda a acrescentar a celebre frase de Tocqueville que o pior momento para um sistema “autoritário” (sem sentido pejorativo, referia-se à Monarquia de Luís XVI) é quando decide enveredar pelo caminho das reformas;

5. Os ventos desta “revolução cultural” (muito mais profunda que a chinesa de Mao Tse Tung, embora com muitíssimos menos mortos...) entraram na Igreja católica através das janelas abertas pelo Concilio, Igreja católica essa que era “quase” um vaso hermético desde pelo menos, o pontificado ultramontano de Pio IX (meados do século XIX), e o resultado foi não tanto a renovação ou um novo impulso (como desejavam o “bom Papa João” e numerosos católicos de boa vontade…) mas sim a confusão, o caos instalado, as crises de consciência de numerosos padres e fieis, a quebra das vocações religiosas, a sedução pelas ideologias revolucionarias por parte do “Progressismo católico” (mais de um século depois dos Socialismos utópicos de 1830-1848 que ainda sonhavam com a síntese Cristianismo/Socialismo !!!), a contestação da autoridade do Papa (o celebre episódio da encíclica “Humanae Vitae”, de 1968, contestada em todo o mundo, até por alguns bispos e teólogos), o desanimo e desagregação de numerosos movimentos eclesiais, o decréscimo do numero de praticantes, o esvaziar dos seminários e toda uma decadência/crise eclesial que persiste, com muito mal-estar interno , mesmo após os movimentos “rectificativos” de João Paulo II e Bento XVI.

J. Duque disse...

(cont.)


6. O movimento de secularização, iniciado em meados do século XVIII, prosseguiu ao longo dos últimos dois séculos, com fases alternadas de avanço rápido e de “slow motion”; nos anos 60-70, toda esta revolução cultural produziu uma aceleração acentuada deste processo, que reduziu a Igreja Católica, nos países europeus (o resto do Mundo: América Latina, Africa, Asia é um caso a analisar à parte) a uma sombra do que foi. Ainda assim, resistiu melhor que as Igrejas anglicanas (Grã-Bretanha) e luteranas (países escandinavos), muito mais permeáveis ao “ar do tempo”, mas que curiosamente (ou talvez mesmo por causa disso), conheceram um declínio muito mais acentuado.

Anónimo disse...

J. Duque,

é de mim ou já li algures - num livro - o que aqui condensou?

Américo Mendes

J. Duque disse...

Não, caro Américo Mendes, o texto é da minha autoria.

Mas confesso que já li bastantes coisas sobre o Concílio, sobretudo no ultimo ano. E cada autor classifica as teses "interpretativas" do Concílio conforme entende. Eu preferi arrumá-las em 4 grupos, mas há quem arrume em menos ou em mais “gavetas”.

Quanto à tese que aparece no fim, a tal 5ª tese supostamente mais “laica” e “sociológica”, apoiei-me sobretudo num pensador francês pouco conhecido em Portugal, Alain Besançon, para mim um dos melhores da actualidade, no campo católico.

J. Duque

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