segunda-feira, 18 de julho de 2011

O que diz Joseph Moingt da Igreja. Lúcido, crítico e esperançoso

Joseph Moingt, 95 anos, jesuíta francês, deu uma entrevista em livro que só é de lamentar se não for publicada em Portugal. Título: livro “Croire quand même, libre entretien sur le présent et le futur du catholicisme (“Crer apesar de tudo, conversa livre sobre o presente e o futuro do catolicismo” - já aqui há tempos referido). A entrevista é conduzida por Karim Mahmoud-Vintam. Os seguintes excertos apareceram na revista francesa "Témoignage Chrétien” e foram traduzidos para português pela Unisinos (aqui).

Fé, crença e religião 
É uma distinção que me é pessoal, que não coloca uma verdadeira oposição entre esses três termos, mas que permite que se evitem muitas confusões.A fé é o assentimento dado aos pontos fundamentais da revelação cristã, aqueles que se enunciam no Símbolo dos Apóstolos, e o engajamento a viver segundo o espírito do Evangelho. Certamente, ela se expressa em dogmas, em crenças doutrinas e em práticas religiosas, mas ela é essencialmente una, unificada e estruturada: é o ato de se confiar a Cristo e de seguir a via da salvação por ele traçada.
A crença é feita, ao contrário, de múltiplos dogmas e doutrinas – de autoridade e de importância muito variáveis – e de tudo o que é ensinado pelo Catecismo. Ela compromete menos diretamente a vida de cada dia, é muitas vezes transmitida pela família ou pelo ambiente, sem ser objeto de uma convicção firme e refletida, ou ela se deixa conduzir por escolhas subjetivas, irracionais e contraditórias, assim como mostraram as recentes pesquisas de opinião: uns consideram a crença no diabo um critério de fé, outros declaram crer em Cristo, mas não na ressurreição dos mortos, ou vice-versa.
No que se refere à religião, que em princípio é a via da fé em uma comunidade de crentes, ela impõe, sobretudo, leis, regras de moral, práticas cultuais, alimentares, penitenciais, devoções, e corre o risco, para muitos, de se reduzir a tais práticas às quais estão ligados por hábito, senão por superstição, enquanto não sabem mais muito bem se ainda são crentes: assim, veem-se católicos que colocam a devoção à Virgem no mesmo plano da Eucaristia, enquanto outros põem os pés em uma igreja só para acender uma vela diante de uma estátua ou depositar uma esmola em uma caixa para as ofertas.
[...] Os "conservadores", sensíveis ao princípio de autoridade, colocam em primeiro plano a obediência a Roma; os "tradicionalistas", a fidelidade às antigas práticas litúrgicas; certos cristãos "críticos", marcados por uma corrente de filosofia liberal, tendem relativizar certos dogmas recentes em favor de uma maior fidelidade à escritura; certos espíritos "progressistas", a reconduzir o essencial do Evangelho à justiça social; enquanto que os "carismáticos" serão mais atentos ao fervor da piedade comunitária do que à regulamentação rigorosa das liturgias; e os cristãos mais bem formados segundo as orientações do Vaticano II serão mais inclinados a renovar o estilo de vida na Igreja e a se pôr ao serviço evangélico do mundo.Em tudo isso, não são questões de fé que opõem os cristãos, mas sim modos diferentes de regular a crença ou a prática. Os "fundamentais" da fé, tal qual como se enunciam no Símbolo da Fé, não estão em discussão. No entanto, essas diferenças de atitude religiosa, que muitas vezes têm o seu estímulo determinante sobre a cultura, o meio social, a educação recebida, as escolhas políticas, podem dissimular profundas divergências na maneira de compreender e de viver a fé (p. 34-36). 

Futuro da Igreja Católica 
Eu me guardarei de fazer prognósticos. Retração não significa desaparecimento, assim como a religião não se identifica com a fé. Ele é a sua encarnação em uma sociedade, da qual sofre as influências, assim como os aspectos negativos. É principalmente por meio do seu clero e das suas ordens religiosas que a Igreja exerce a sua autoridade sobre a sociedade, por intermédio de organizações e de movimentos de piedade, de apostolado, de caridade, de ensino, de serviços sociais e outros.
A queda das vocações sacerdotais (alguns preferem dizer "presbiterais", mas o termo é menos usado) e religiosas diminui consideravelmente o poder da Igreja de agir sobre a sociedade. Ela é, reciprocamente, um sinal de que a sociedade não experimenta mais a necessidade de perpetuar o modelo religioso segundo o qual ela funcionava no passado.
Porque seria ingênuo pensar que as "vocações" viessem unicamente de uma atração interior da graça: ela também provinha de pressões recebidas da família e dos educadores, das ajudas e dos encorajamentos provenientes do ambiente social, da consideração da qual as "pessoas consagradas" eram objeto e, não nos esqueçamos, das vantagens econômicas, da "posição" que os filhos de famílias numerosas e pobres encontrariam entrando "para as ordens". Assim, hoje, vemos bispos que vão procurar padres ou religiosos nos países pobres, lá onde os empregadores recrutavam mão de obra em certas épocas.
A rarefação de padres, religiosos e religiosas, incontestavelmente, desorganizará a Igreja, mudará a sua figura, a obrigará a se refundar em sua base leiga, a partir das pequenas comunidades que já vemos se formar, na ordem ou na desordem, assíduas no estudo do Evangelho, aplicadas a viver fraternalmente, a colocá-lo em prática na sociedade, para manter a tradição da fé cristã da qual ela há muito tempo se alimenta. Eis em que sentido eu imagino ou espero que evolua o futuro da Igreja, que ela encontrará uma renovação de vitalidade e que continuará contribuindo na busca de sentido dos nossos contemporâneos (p. 51).

Mudanças possíveis 
As coisas podem evoluir fazendo com que as comunidades não sejam de simples adesão, mas também de contestação, lembrando que, linguisticamente, "contestação" está ligado a "atestação". Contesta-se a autoridade para atestar o Evangelho. O fato de os cristãos não poderem mais viver na instituição eu entendo, mas, se estiverem sozinhos, não podem fazer grandes coisas.
Eu sonho com comunidades cristãs em que outros crentes poderiam vir, mas também pessoas que não têm fé, e que se diriam: "O que podemos fazer juntos? Há coisas que gostaríamos de suprimir ou de corrigir, ou outras que teríamos vontade de inventar?"; pessoas que refletiriam sobre tudo isso e que decidiriam o que fazer. É assim que se poderá espalhar o espírito do Evangelho. [...]
É em grupo que se podem fazer coisas importantes, e é difícil para um cristão viver isolado, sobretudo quando se pensa que o cristianismo é uma religião encarnada e comunitária, não uma pura filosofia. Vocês não mudariam o mundo permanecendo sozinhos, cada um no seu canto. E, como vocês querem viver como cristãos, pensem também em mudar a Igreja, portanto, em permanecer vinculados (p. 82).

Passagem 
Igreja Católica se encontra em um momento de passagem. Vai rumo a uma outra coisa, rumo a uma outra maneira de fazer Igreja, o que por si só não é trágico. Toda mudança, é verdade, tem um aspecto inquietante, porque produz rupturas, aflições, fraturas. E essas palavras, que são tomadas do vocabulário corporal, por si só evocam sofrimentos e perigos. Mas essa evolução será o advento de uma era nova, que eu ainda não posso imaginar para a Igreja nem para a fé cristã, mas que não será necessariamente catastrófica.
Não prevejo, de modo algum, uma retomada do poder, do poder perdido pela Igreja sobre a sociedade, mas sim uma outra maneira de se situar no mundo e de guardar a sua unidade. Talvez, ela terá menos visibilidade, no sentido de que a sua visibilidade atual está amplamente ligada à sua estrutura hierárquica e clerical. Mas a sua hierarquia perdeu muito da sua credibilidade interna e externa por causa dos seus excessos de poder sobre os seus fiéis e com relação à sociedade. E o clero, dada a perda de recrutamento, logo não poderá mais ocupar sozinho todos os postos de autoridade e de responsabilidade que lhe eram devidos.
A maior visibilidade da Igreja passará, assim, para o campo dos leigos e leigas, porque haverá cada vez menos clérigos e, portanto, será preciso confiar aos leigos e leigas um número cada vez maior de postos de responsabilidade. A Igreja terá menos visibilidade por causa da forte diminuição do número dos seus fiéis, e uma visibilidade diferente, menos "vistosa", se assim posso dizer, pelo fato de que a sua dominante leiga não a diferenciará mais tão fortemente do resto da sociedade; lhe dará um rosto menos especificamente religioso, menos cultual e ritual. [...] 
Imaginar uma tal evolução me enche de esperança, eu confesso, embora certamente haverá menos pessoas que se dirão católicas. Mas o pensamento de muitas pessoas que estão deixando a Igreja continua a me perturbar. Não que eu tema que o seu abandono da Igreja os condene ao inferno – porque eu não acredito que Deus persiga com a sua cólera aqueles que dEle se esqueceram –, mas porque a perda de toda vida espiritual os colocaria em perigo de afundar para sempre na morte, se é verdade, para os crentes, que não existe vida eterna a não ser na união com Deus (p. 147-149).

3 comentários:

Anónimo disse...

Espantosa lucidez. A idade só acrescenta vigor. Revejo-me em tudo o que é dito. Parabéns pela ressonância. Já agora, um sinal deste dia: é nomeado um bispo jovem em idade e oriundo da diocese para onde vai; o problema é que ele é nomeado talvez por ter estado longe do seu povo e perto do poder (Roma). E, pelas declarações, parece ser alguém com um pensamento muito conservador. Mas demos o benefício da dúvida.

Jorge Pires Ferreira disse...

Obrigado pela suas palavras. Em relação ao novo bispo, também não o conheço, embora já o referisse aqui, http://tribodejacob.blogspot.com/2010/04/entrevista-ao-reitor-do-colegio.html, por engano...Mas de alguma forma me espanta que antes tinham de ter formação em direito canónico, agora é em liturgia. Já há algum tempo que não vem nenhum do lado mais social e pastoral.

Anónimo disse...

Padre Cordeiro longe do seu Povo??? Quem o conhece sabe que apesar de estar em Roma desde 1999, Natal, Páscoa, Verão - sempre em Bragança. Já para não falar da relação com o clero local. Esteve e ajudou em muito o seminário, acções de formação e sobretudo na relação com a sociedade civil. É uma figura que manteve muita proximidade apesar de distância - Roma. Conservador??? Talvez seja melhor ler o que já tem escrito e reflectir melhor...

Só há doze bispos no mundo. São todos homens e judeus

No início de novembro este meu texto foi publicado na Ecclesia. Do meu ponto de vista, esta é a questão mais importante que a Igreja tem de ...