sábado, 4 de dezembro de 2010

Anselmo Borges: Cristianismo e Democracia

Texto de Anselmo Borges no DN de hoje. Sugiro que se confrontem as ideias repescadas do P.e Joaquim Alves Correia com as do bispo Spong que ontem aqui apontei. Há muitos pontos de contacto. Ambas implicam transformação.

P.e Joaquim Alves Correia


No contexto das celebrações do centenário da República, fica aí uma reflexão sobre o pensamento do Padre Joaquim Alves Correia, a figura católica mais lúcida da primeira metade do século XX em Portugal. Republicano convicto, morreu no exílio, em 1951 - a ocasião próxima foi a publicação do artigo "O mal e a caramunha", que pode ler-se na Antologia que preparei: Joaquim Alves Correia. Cristianismo e revolução.

Foi um precursor do Concílio Vaticano II. Chamavam-lhe o "Padre Larguezas", por causa de um livro admirável: A Largueza do Reino de Deus, que mostra como o Reino de Deus se estende para lá da Igreja. Muito considerado por ateus e agnósticos, como António Sérgio, que o admirava por ser um "padre cristão", ou Bento de Jesus Caraça, que o convidou para escrever De Que Espírito Somos, era um democrata e um pensador. O que hoje mais falta: pensar.


O seu pensamento gira à volta de alguns princípios fundamentais.


1. O princípio primeiro é o da Comunhão transcendente ou Transcendência comunional. No princípio, era a Vida em comunhão. Para o cristianismo, Deus não é o Motor imóvel, mas o Deus unitrino, o Deus Amor, que cria por amor.


Este princípio destrói toda a forma de totalitarismo e supera o niilismo. É preciso salvaguardar a Transcendência. De facto, no quadro da imanência, há sempre o perigo do totalitarismo: a totalidade seria plenamente cognoscível e quem detivesse a verdade toda deveria impô-la. A outra face do totalitarismo é o niilismo. E não é aí que estamos? Mas, se no princípio é a Transcendência comunional, a criação não é cega, tem um sentido.


2. Daqui, derivam todos os outros princípios. Em primeiro lugar, o princípio da liberdade: Deus cria a partir do nada por puro amor, não por necessidade.


3. Outro princípio é o da história, do progresso, da autonomia. Na criação por amor, há a afirmação da autonomia das realidades terrestres. A ciência, a política, a economia, a própria moral seguem as suas normas e regras, sem tutela da religião.


4. Impõe-se o princípio dos direitos divinos do ser humano. Deus não cria por causa dele, mas por causa do ser humano, do seu bem-estar e felicidade. Lá está a afirmação mais revolucionária da história: "O homem não é para o Sábado, mas o Sábado para o Homem". Mesmo as leis de Deus só valem se e na medida em que estão ao serviço da dignidade humana.


5. Segue-se, consequentemente, o princípio da consciência e da tolerância: o princípio do ecumenismo e do diálogo inter-religioso, no qual se incluem também os ateus que sabem o que isso quer dizer.


6. Outro princípio: o da condenação das absolutizações históricas. A pretensão de realizar totalmente o Reino de Deus no tempo, sob forma religiosa ou secular, é uma tentação constante. Aí está a tentação de confundir o Reino de Deus com a política ou com o dinheiro ou com o sexo.


Ora, isso seria desdivinizar Deus, o que o cristianismo não permite.


A união destes dois princípios - o dos direitos divinos da pessoa, que faz com que todos os seres humanos devam ser respeitados e tenham o direito de participar em todos os domínios da vida como expressão da sua humanidade e para a sua realização, e o da condenação das absolutizações históricas - fundamenta a democracia pluralista, dado que nenhum partido pode ter a pretensão da realização plena e única do ser humano. Por outro lado, esta democracia não pode ser apenas de política formal, pois tem componentes económicas, sociais, ecológicas, etc., o que se traduz nos direitos humanos nas suas várias gerações. A democracia tem de ser política, económica, social, ecológica.


7 . Finalmente, o princípio do sim da esperança. Se Deus é amor, não abandona o ser humano, nem mesmo na morte.


Como disse D. António Ferreira Gomes: "É preciso que não morram no deserto as vozes que, vindas de longe, ainda encerram apelo válido para hoje e para amanhã".

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