sábado, 2 de outubro de 2010

Anselmo Borges: Quem guardará a guarda?

Wittgenstein

Um dia, numa conferência, L. Wittgenstein disse mais ou menos o seguinte: se fosse possível escrever um livro de ética que fosse verdadeiramente um livro de ética, esse livro arrasaria todos os outros.

Hoje, toda a gente se queixa: "não há ética, perderam-se os valores"... Quem pode negar razão a essas queixas? Mas, depois, fundamentar a ética e, sobretudo, ser ético, é tremendamente complicado. Se há terreno há muito revisitado teoreticamente, é o da ética, mas lá estão as éticas materiais e as formais, as ontológicas, as teleológicas e as deontológicas, as éticas da virtude e até as teológicas, também há a negação do seu conteúdo cognoscitivo, pois estaríamos apenas no campo das exclamações emotivas de aprovação ou reprovação... Etc. Mas o mais difícil mesmo é ser ético na vida. Porque devo ser honesto, se isso prejudicar os meus interesses?

Os seres humanos são constitutivamente abertos à questão ética, porque nascem por fazer, devido à neotenia, e devem fazer-se bem moralmente, porque a sua lei é a lei da liberdade e da dignidade. Devemos habitar o mundo eticamente (o étimo de ética é êthos, morada).

Mas o que constitui um acto ético? Há na história da ética dois exemplos famosos: o anel de Giges, de Platão, e o comerciante honesto, de Kant. Nem Giges nem o comerciante eram éticos, pois agiam como agiam no seu próprio interesse. Ora, a ética implica agir não por causa do próprio interesse ou da consideração dos outros, não por castigo ou por prémio, mas exclusivamente pelo dever, pela consideração da humanidade e da dignidade.

Como diz A. Comte-Sponville, não é necessário nem possível fundamentar a ética. Como se fundamenta a razão? Mas fazemos a experiência ética: se virmos uma criança a afogar-se, sabemos o que devemos fazer. É uma exigência. Trata-se de não sermos indignos da nossa humanidade e de estarmos de bem connosco.

E que fazer? Queres saber se esta ou aquela acção é boa ou má? Pergunta a ti mesmo o que aconteceria se todos se comportassem como tu e se quererias isso honrada e dignamente. Se todos mentissem, quem poderia acreditar em alguém? Quererias viver numa sociedade na qual todos roubassem? Se toda a gente matasse, nem sociedade existiria. Se ninguém pagasse impostos, não poderia erguer-se uma vida comum em dignidade e todos perderiam.

Se todos fossem éticos, segundo a ética desinteressada, não era necessária a política, que ficava reduzida a administração das coisas. Só porque somos egoístas, interesseiros, é que temos necessidade do Estado para regular e gerir de modo não violento os conflitos de interesses. Como escreve A. Comte-Sponville, se a moral reinasse, não teríamos necessidade de polícia, de leis, de tribunais, de forças armadas, de cadeias.

Então, ética e política não se identificam nem confundem, mas os seus objectivos são comuns: a realização da humanidade de todos. O paradoxo não é então encontrar políticos que sejam precisamente políticos, mas com ética?

O grande desafio do nosso tempo é a formação ética, para os valores. Quando isso não acontece, remetemos constantemente para a política, para as leis, para os tribunais... Ora, neste quadro, fica-se confrontado com duas questões temíveis. Primeira: não é possível legislar sobre tudo, até porque o indivíduo tem mais deveres do que o cidadão, pois há o pré-político e o pré-jurídico. Depois, seja como for, sem ética assumida - e poderia acrescentar: sem referência religiosa ao Absoluto -, fica apenas a lei e a sua sanção, o medo e a esperança de não ser apanhado. Por exemplo, se não se pagar impostos e se for apanhado, tanto pior... De qualquer forma, nesta lógica, sem valores éticos assumidos, acaba, no limite, por ser necessário colocar um polícia junto de cada cidadão, mas, como os polícias também são humanos, é preciso pôr um polícia junto de cada polícia... Ai!, o totalitarismo!

Lá está Juvenal, embora noutro contexto: Custos custodit nos. Quis custodiet ipsos custodes? A guarda guarda-nos. Quem guardará a guarda?

Texto de Anselmo Borges no DN de 2 de Outubro de 2010.

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