Na reflexão sobre o ser humano, divulga-se hoje a tese do
animalismo, isto é, entre o homem e os outros animais não haveria uma diferença
qualitativa, mas apenas de grau. Por mim, continuo a pensar que a diferença é
qualitativa e essencial. Com isto, não estou a retirar-lhes valor intrínseco e
até penso que lhes é devido tratamento adequado, recusando sofrimentos cruéis e
inúteis.
Como escreveu Edgar Morin, "embora muito próximo dos
chimpanzés e gorilas, e tendo 98% de genes idênticos, o ser humano traz uma
novidade à animalidade". Há, apesar de tudo, entre etólogos e
antropobiólogos, convergência bastante no reconhecimento de que entre o animal
e o homem se deu um salto qualitativo essencial. Esse salto manifesta-se, em
termos gerais, na autoconsciência, na autoposse de si mesmo como eu único e
centro de identidade, na linguagem simbólica e reflexiva, na capacidade de
abstrair e formar conceitos, na transcendência em relação ao espaço e ao tempo,
na criação e assunção de valores éticos e estéticos, no pré-saber da morte
própria vinculado às crenças religiosas, na pergunta pelo ser e pelo seu ser.
O médico e filósofo Pedro Laín Entralgo chamou a atenção
para o facto de haver um conjunto de características que mostram essa diferença
e chamou-lhes "notas", precisamente porque são observáveis.
O homem não se encontra na simples continuidade da vida no
sentido biológico. Como escreveu Max Scheler, o homem é "o asceta da
vida", pois é capaz de dizer não aos impulsos instintivos. Perante a
comida apropriada, o animal não resiste a comer, mas o homem é capaz de dizer
não, por motivos de ascese ou pura e simplesmente para mostrar a si mesmo e aos
outros que tem a capacidade de resistir e dizer não. F. J. Ayala vê aqui
"a base biológica da conduta moral da espécie humana, nota essencialmente
específica dela". Porque é capaz de renunciar, abster-se, deliberar,
optar, o homem é um animal livre e moral.
Evidentemente, os outros animais também comunicam, mas a
linguagem duplamente articulada, que nos permite o pensamento simbólico e
abstracto e nos dá acesso à reflexão, ao mundo da cultura, à abertura ao ser,
ao passado e ao futuro, ao que há e ao que não há, à transcendência, à
distinção entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto, como já Aristóteles
viu, manifesta a singularidade única do ser humano, a ponto de, por causa dela,
o Prémio Nobel J. Eccles concluir por uma descontinuidade ontológica entre o
homem e os outros animais.
Mesmo biólogos (por exemplo, Jakob von Uexküll) notaram que
só o homem tem mundo (Welt), já que os animais têm meio (Umwelt, mundo
circundante). Por isso, estes vivem na imediatidade da estimulação enquanto o
homem vive no real, é um "animal de realidades", como repetia Zubiri.
O repouso de "O Pensador", de Rodin, não é simples repouso. O
que nele se mostra é a capacidade de ensimesmamento, descida à sua intimidade e
submersão na sua subjectividade pessoal. Paradoxalmente, porque o ser humano é
abertura à totalidade do ser, vem a si como único, na experiência de um eu
pessoal. Escreveu Lacan: "Possuir o Eu na sua representação: este poder
eleva o homem infinitamente acima de todos os outros seres vivos sobre a terra.
Por isso, é uma pessoa."
Na abertura ilimitada ao ser, tem o seu fundamento a
pergunta sem limites, que caracteriza o homem: toda a resposta dá sempre lugar
a novas perguntas. Por isso, o homem é criador do novo e ser do
transcendimento, de tal modo que não pode deixar de perguntar pelo próprio
Deus, pelo Fundamento e Sentido últimos.
Se admitimos a evolução, não é de estranhar que encontremos
já nos chimpanzés, gorilas, bononos, antecedentes do que caracteriza os
humanos. No entanto, com o homem, o salto foi para uma realidade essencialmente
nova. Para lá das notas apontadas e outras que poderíamos apresentar, como a
criação e contemplação da beleza, o levantamento de edifícios jurídicos para
dirimir pleitos, o sorriso e a sepultura, está o facto de só o homem levar
consigo precisamente a questão da diferença entre ele e os outros animais. Só
ele tem deveres para com eles, sem reciprocidade.
2 comentários:
Agradou-me o texto. Mas mais uma vez o que de brilhante há em AB é a sua mestria em cozer o pensamento dos demais.
Da animalidade se aproxima o homem actual pois a busca insistente de si mesmo, e o consequente afastamento de Deus (e do outro) conduz a uma bebedeira egocêntrica destinada ao fracasso e a implusao. A religião desde o início - e por isso o ódio de estimação primeiro aos judeus e hoje aos cristãos - pugnou por levar o homem a ser aquilo a que está destinado e merece ser e não aquilo que o seu primarismo pretende. O mundanismo acha todo este esforço ridículo e a sua mensagem passa muito bem: diria que muito melhor que a mensagem que nos quer puxar para cima. A questão do sexo não é de substimar - é claro que fala-se dela e lá vem as habituais vozes acusadoras ......- pois o sexo é de tal modo importante e formador da dimensão humana que por ele se avaliam bem os sintomas da 'saude' do ser humano. Uma sociedade adicta e entregue ao sexo é uma sociedade doente, que nem sequer dele retira prazer . Todos sabem que isto é verdade, sobretudo por experiência própria. A Igreja, mesmo contra algumas vozes do 'seu' (?) Povo continuará a levar está mensagem de sublimação e entrega ao outro, sair de si ( e assim aproximar-se de Deus) . O 'mundo' espuma enxofre só d de ouvir este discurso, pois esse mundo no fundo quer ver o homem entregue apenas a si próprio e aos seus desejos e instintos mais imediatos : o que é isto é se não a redução do homem à sua animalidade..... 'engraçado' como a agenda fracturante segue na integra o mando do mundo .....tenho muita pena que algumas vozes da Igreja progressista também se lhes junte ...
Jacome
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