sábado, 11 de maio de 2013

Anselmo Borges: "Animais humanos e os outros"

Texto de Anselmo Borges no DN de hoje.

Ilustração de um manuscrito de "A Cidade de Deus" do séc. XV

Na reflexão sobre o ser humano, divulga-se hoje a tese do animalismo, isto é, entre o homem e os outros animais não haveria uma diferença qualitativa, mas apenas de grau. Por mim, continuo a pensar que a diferença é qualitativa e essencial. Com isto, não estou a retirar-lhes valor intrínseco e até penso que lhes é devido tratamento adequado, recusando sofrimentos cruéis e inúteis.

Como escreveu Edgar Morin, "embora muito próximo dos chimpanzés e gorilas, e tendo 98% de genes idênticos, o ser humano traz uma novidade à animalidade". Há, apesar de tudo, entre etólogos e antropobiólogos, convergência bastante no reconhecimento de que entre o animal e o homem se deu um salto qualitativo essencial. Esse salto manifesta-se, em termos gerais, na autoconsciência, na autoposse de si mesmo como eu único e centro de identidade, na linguagem simbólica e reflexiva, na capacidade de abstrair e formar conceitos, na transcendência em relação ao espaço e ao tempo, na criação e assunção de valores éticos e estéticos, no pré-saber da morte própria vinculado às crenças religiosas, na pergunta pelo ser e pelo seu ser.

O médico e filósofo Pedro Laín Entralgo chamou a atenção para o facto de haver um conjunto de características que mostram essa diferença e chamou-lhes "notas", precisamente porque são observáveis.

O homem não se encontra na simples continuidade da vida no sentido biológico. Como escreveu Max Scheler, o homem é "o asceta da vida", pois é capaz de dizer não aos impulsos instintivos. Perante a comida apropriada, o animal não resiste a comer, mas o homem é capaz de dizer não, por motivos de ascese ou pura e simplesmente para mostrar a si mesmo e aos outros que tem a capacidade de resistir e dizer não. F. J. Ayala vê aqui "a base biológica da conduta moral da espécie humana, nota essencialmente específica dela". Porque é capaz de renunciar, abster-se, deliberar, optar, o homem é um animal livre e moral.

Evidentemente, os outros animais também comunicam, mas a linguagem duplamente articulada, que nos permite o pensamento simbólico e abstracto e nos dá acesso à reflexão, ao mundo da cultura, à abertura ao ser, ao passado e ao futuro, ao que há e ao que não há, à transcendência, à distinção entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto, como já Aristóteles viu, manifesta a singularidade única do ser humano, a ponto de, por causa dela, o Prémio Nobel J. Eccles concluir por uma descontinuidade ontológica entre o homem e os outros animais.

Mesmo biólogos (por exemplo, Jakob von Uexküll) notaram que só o homem tem mundo (Welt), já que os animais têm meio (Umwelt, mundo circundante). Por isso, estes vivem na imediatidade da estimulação enquanto o homem vive no real, é um "animal de realidades", como repetia Zubiri.

O repouso de "O Pensador", de Rodin, não é simples repouso. O que nele se mostra é a capacidade de ensimesmamento, descida à sua intimidade e submersão na sua subjectividade pessoal. Paradoxalmente, porque o ser humano é abertura à totalidade do ser, vem a si como único, na experiência de um eu pessoal. Escreveu Lacan: "Possuir o Eu na sua representação: este poder eleva o homem infinitamente acima de todos os outros seres vivos sobre a terra. Por isso, é uma pessoa."

Na abertura ilimitada ao ser, tem o seu fundamento a pergunta sem limites, que caracteriza o homem: toda a resposta dá sempre lugar a novas perguntas. Por isso, o homem é criador do novo e ser do transcendimento, de tal modo que não pode deixar de perguntar pelo próprio Deus, pelo Fundamento e Sentido últimos.

Se admitimos a evolução, não é de estranhar que encontremos já nos chimpanzés, gorilas, bononos, antecedentes do que caracteriza os humanos. No entanto, com o homem, o salto foi para uma realidade essencialmente nova. Para lá das notas apontadas e outras que poderíamos apresentar, como a criação e contemplação da beleza, o levantamento de edifícios jurídicos para dirimir pleitos, o sorriso e a sepultura, está o facto de só o homem levar consigo precisamente a questão da diferença entre ele e os outros animais. Só ele tem deveres para com eles, sem reciprocidade.

2 comentários:

Anónimo disse...

Agradou-me o texto. Mas mais uma vez o que de brilhante há em AB é a sua mestria em cozer o pensamento dos demais.

Anónimo disse...

Da animalidade se aproxima o homem actual pois a busca insistente de si mesmo, e o consequente afastamento de Deus (e do outro) conduz a uma bebedeira egocêntrica destinada ao fracasso e a implusao. A religião desde o início - e por isso o ódio de estimação primeiro aos judeus e hoje aos cristãos - pugnou por levar o homem a ser aquilo a que está destinado e merece ser e não aquilo que o seu primarismo pretende. O mundanismo acha todo este esforço ridículo e a sua mensagem passa muito bem: diria que muito melhor que a mensagem que nos quer puxar para cima. A questão do sexo não é de substimar - é claro que fala-se dela e lá vem as habituais vozes acusadoras ......- pois o sexo é de tal modo importante e formador da dimensão humana que por ele se avaliam bem os sintomas da 'saude' do ser humano. Uma sociedade adicta e entregue ao sexo é uma sociedade doente, que nem sequer dele retira prazer . Todos sabem que isto é verdade, sobretudo por experiência própria. A Igreja, mesmo contra algumas vozes do 'seu' (?) Povo continuará a levar está mensagem de sublimação e entrega ao outro, sair de si ( e assim aproximar-se de Deus) . O 'mundo' espuma enxofre só d de ouvir este discurso, pois esse mundo no fundo quer ver o homem entregue apenas a si próprio e aos seus desejos e instintos mais imediatos : o que é isto é se não a redução do homem à sua animalidade..... 'engraçado' como a agenda fracturante segue na integra o mando do mundo .....tenho muita pena que algumas vozes da Igreja progressista também se lhes junte ...
Jacome

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No início de novembro este meu texto foi publicado na Ecclesia. Do meu ponto de vista, esta é a questão mais importante que a Igreja tem de ...