Sobre o poder encantatório da música disse Homero na Odisseia. Era tanta a beleza, a doçura, o fascínio e o feitiço do canto das sereias que, para não correrem o perigo da atracção e da morte, Ulisses ordenou que tapassem com cera os ouvidos dos marinheiros e a ele o amarrassem sem possibilidade de fuga ao mastro do navio.
Não há nenhum povo sem música. Nada de tão material como a música: a voz, instrumentos de sopro, de percussão e de cordas e disso tudo resulta o que nos enleva, nos transporta para a transcendência, nos coloca lá no donde viemos e lá para onde verdadeiramente queremos ir e habitar. Feita de tempo, a música pára o tempo, transcende o tempo e tange o eterno. Ali, onde quereríamos estar sempre, e já não há morte.
Por isso, Ernst Bloch disse que a música é "a mais utópica das artes". Ela é o divino no mundo ou, pelo menos, o que nos abre à experiência do divino. Aí está a beleza, que, no dizer de Dostoiévski, "salvará o mundo". O belo abre a porta do que normalmente, no meio da banalidade rasante, se não vê nem ouve. Mas, quando se viu o invisível e se ouviu o inaudível e a sua beleza, tudo se transfigura e reconcilia. Este mundo torna-se outro, sem deixar de ser este. Daí, a exclamação de felicidade, que também os discípulos experimentaram, aquando da transfiguração de Jesus: "Como é bom estar aqui!"
No belo, tornamo-nos vizinhos imediatos do próprio transcendente. Como escreveu George Steiner, "a poesia, a arte, a música são os meios portadores desta vizinhança". A música, nomeadamente, é inseparável do sentimento religioso: "Ela foi durante muito tempo, continua a ser hoje, a teologia não escrita dos que não têm ou recusam qualquer crença formal."
Até pela negativa, através do dilacerante, o que ela procura é a harmonia. Como escreveu Fernando Savater, "na denúncia que falta vê-se contra a luz a possibilidade futura daquilo que poderia ser a plenitude".
Neste vislumbre e porque é um melómano, entusiasta da grande música, Miguel Oliveira da Silva, num debate sobre o diálogo inter-religioso, sugeriu que o modo de entendimento do Papa e de um chefe religioso muçulmano, por exemplo, seria a música. Como se sabe, Bento XVI é um pianista; se esse chefe muçulmano fosse um violinista, os dois, que talvez não se entendam na doutrina, entender-se- -iam num concerto para piano e violino.
A sugestão é realidade. Daniel Barenboim nasceu em 1942, em Buenos Aires, e tem tríplice nacionalidade: argentina, israelita e espanhola. Ele e o falecido Edward Saïd fundaram, em 1999, a célebre West--Eastern Divan Orchestra, com sede em Sevilha e formada por músicos espanhóis, israelitas, palestinianos, sírios, jordanos, egípcios, libaneses, iranianos e turcos.
No passado dia 11, a orquestra ofereceu um concerto ao Papa Bento XVI, grande amante da música clássica, tocando a Sexta Sinfonia (Pastoral) e a Quinta em dó menor, de Ludwig van Beethoven.
E o Papa agradeceu: "Podem imaginar quanto estou feliz por acolher uma orquestra como esta, que nasceu da convicção e sobretudo da experiência de que a música une as pessoas, para lá de todas as divisões; porque a música é harmonia das diferenças, como acontece cada vez que se inicia um concerto, com o 'rito' da afinação. Da multiplicidade dos timbres dos diversos instrumentos, pode surgir uma sinfonia. Mas isto não acontece de modo mágico nem automaticamente. Só se realiza graças ao empenho do maestro e de cada músico individualmente. Um empenho paciente, trabalhoso, que requer tempo e sacrifícios, no esforço da escuta recíproca, evitando protagonismos excessivos e privilegiando o melhor resultado do conjunto."
A mensagem a tirar da orquestra e do concerto é que, "para conseguir a paz, é necessário comprometer-se, pondo de lado a violência e as armas, e comprometer-se com a conversão pessoal e comunitária, com o diálogo e a busca paciente de acordos possíveis". Afinal, "a harmonia da música ensina-nos a paz". Por isso, pediu: "Continuem a semear pelo mundo a esperança da paz através da linguagem universal da música."
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