sábado, 30 de julho de 2011

Sermão para mim próprio: Como comprar sem dinheiro

"Milagre dos pães e dos peixes", por  Giovanni Lanfranco (1582-1647)

Sobre as leituras que hoje e amanhã muitos ouvem na missa (um convite de Isaías, umas perguntas de Paulo, uns pães a mais de Jesus).

1. Alguém afirmou que a Bíblia é mais uma questão de alimento do que de oração. Isso até se verifica pela contagem de palavras. Pode depender do termo que se procura e da tradução disponível, mas um manual bíblico diz-me que numa determinada versão da Bíblia, a palavra “pão” aparece 361 vezes, enquanto a palavra “oração” (ainda que sem contar com variantes como “orar” e “rezar”) surge 114 vezes. É natural que se pense mais naquilo que é incerto e que pode faltar todos os dias. E o paraíso é um grande banquete.

Logo por aqui se vê a genialidade de Jesus. Inserido na grande tradição judaica que tinha numa refeição, a da Páscoa, a grande celebração anual, escolheu o pão partilhado como gesto que o re-apresenta (volta a tornar presente) aos seres humanos. A sua dávida, impagável, é a melhor concretização do apelo de Isaías (1.ª leitura): “Vós que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei”.

2. Parece que Isaías fala (é o Senhor que fala por Isaías) para o tempo de crise: “Vós que não tendes dinheiro…” Num tempo em que tudo é mercadoria, tudo tem valor económico, até o corpo é entendido como autopropriedade, temos dificuldade em aceitar a gratuidade. Se alguém nos dá algo grátis, ficamos a pensar que pode haver algum interesse inconfessado escondido. É essa a prática comercial, que só oferece algo em vista de negócios maiores no futuro. Experimente oferecer algo a um amigo não muito próximo, fora da família, por exemplo. Faça-lhe essa surpresa. Ele não evitará um “porquê?”.

Mas Isaías insiste (é o Senhor que insiste por Isaías) na compra sem dinheiro. Onde já ouvimos isto? Não é a compra sem dinheiro, a crédito, o "consumo hoje e pago amanhã", tanto individual como coletivo, que está na origem da crise portuguesa? Será que o espírito de Isaías está na origem da crise? Na realidade, poderíamos parafrasear o profeta (parafrasear o Senhor) e dizer: “Vós que tendes o dinheiro todo do mundo, vinde, comprai e comei sem gastar um cêntimo. O que alimenta e sacia não custa dinheiro. Ouvi-me com atenção e comereis o que é bom; saboreareis manjares suculentos”.

Toda a gente sabe que o dinheiro não traz felicidade, mas está sempre disposto a dar-lhe uma nova oportunidade. Isaías realça (é o Senhor que realça por Isaías) que os bens maiores (a amizade, o amor, a paz de consciência, o sentido da vida, a vida em Deus, para só nomear alguns) não dependem das finanças de cada um, mas da adesão à “aliança eterna”.

3. São Paulo, inseparável do “amor de Deus em Cristo Jesus”, desafiava sem temor os seus inimigos: a tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada. Destes perigos, não havendo em Portugal perseguição religiosa, nem, apesar de tudo, carestia generalizada, talvez só se façam sentir dois deles: alguma tribulação, mais mental do que física, e angústia. Angústia dos que estão sós. Dos que perderam o gosto pela vida. Dos que não têm horizontes de sentido. Dos que perderam o emprego e se sentem inúteis. Dos desorientados. Dos idosos abandonados pela família. Contra a angústia, o que temos feito? A angústia surge também pelo consumo coisas que “não alimentam” e pelo gasto de energias em coisas que “não saciam” (1.ª leitura). Ora, há dias, dizia em Fátima, um responsável da Igreja que muitos fiéis “têm dificuldade em rezar nas celebrações” (aqui). Será possível? O antídoto da angústia não faz efeito?

4. O evangelho fala do milagre da divisão dos pães e dos peixes. Se é milagre, não tem explicação. Mas não é milagre só pelo facto extraordinário. Na Bíblia, esse é o aspecto secundário do milagre. O principal é a mensagem. E aí, além da ideia de que a partilha e a divisão é que multiplicam os bens (coisa que um economista poderá sempre objectar que não se aplica aos bens transacionáveis; mas aqui a economia é a da salvação), realça-se que o pão e os peixes são especialmente saciantes quando se elevam ao Céu e se recita a bênção. O pão tem nome de pessoa.

5. Cristo é o nosso pão. Não podemos pedi-lo senão para agora. Porque ele está sempre aí, à porta da nossa alma, na qual quer entrar, mas não viola o consentimento. Se consentimos que ele entre, ele entra; assim que não o queremos mais, imediatamente se vai. (...) O pão é-nos necessário. Somos seres que retiram continuamente a sua energia do exterior, porque à medida que a recebemos esgotamo-la nos nossos esforços. Se a nossa energia não é quotidianamente renovada, ficamos sem forças e incapazes de movimento.
Simone Weil (1909-1943), excerto da explicação do Pai-Nosso, in “Espera de Deus”, Assírio & Alvim, pág. 219.

6. Tu és, ó Cristo, o Reino dos céus
e a terra prometida aos mansos,
tu o prado do paraíso, a sala do divino banquete,
tu o tálamo das núpcias, mesa aberta a todos,
tu o pão da vida, tu a bebida inaudita,
tu ao mesmo tempo a talha para a água e a água da vida,
tu também a lâmpada inextinguível para cada um dos santos,
tu o hábito e a coroa, e aquele que distribui as coroas,
tu a alegria e o repouso, tu as delícias e a glória,
tu a alegria, tu a felicidade, ó meu Deus!

Excerto de uma oração de Simão, o Novo Teólogo, que viveu em Tessalónica (actual Selânik ou Salonika, na Grécia), no séc. XI.

3 comentários:

Anónimo disse...

Desculpe-me o atrevimento, mas acho que como padre de Cristo peço-lhe que faça permanentemente as exegeses antes de cada domingo das leituras (se lhe for possível... )Parabéns, está excelente esta.

Jorge Pires Ferreira disse...

Obrigado pela sua apreciação. Tentarei fazer, mas não prometo, porque sei que nem sempre me é possível.

Gonçalo Forjaz disse...

Boa tarde

Já há dias que comecei a consultar diariamente o seu blogue e tenho-o achado muito inspirador e informativo, pelo que, em primeiro lugar, dou-lhe os meus parabéns. Em relação ao ponto 3 deste seu artigo, tenho a dizer que acho que na missa deveria haver mais tempos de silêncio. É confrangedor ver que raramente os padres propõem um minuto (porque não 2, 3 ou 4) de silêncio após a comunhão. Uma vez questionei um amigo meu que me respondeu que nºao o fazia porque as pessoas não iam entender. Talvez no início isso seja verdade, mas com o tempo não só passariam a entender como passariam a disfrutar desse silêncio. Eis uma forma tão simples e, diria, tão cara à Igreja (pensemos no silêncio preconizado pelos grandes mestres da oração!) de se (re)introduzir a oração na missa.

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