Há dias a Agência Ecclesia pediu-me um texto sobre o perfil digital católico, a partir da minha experiência. Escrevi o seguinte (aqui, no sítio da agência de notícias católica):
1. Um casal jovem chega às portas do céu. São Pedro, consultando o computador, diz a ambos, de rostos apreensivos:
- O vosso registo na rede social é terrível… Duas oportunidades falhadas de clicar “gosto” em “Jesus, nosso Senhor e Salvador” e recusa em mostrar a vossa fé com um simples “reencaminhe para dez amigos”.
O cartoon do sítio Reverendfun.com (aqui) não diz apenas que é preciso pôr na Internet as convicções de fé, dar testemunho. Deixa entender também que tudo o que lá fazemos fica registado. Se na imaginação São Pedro, por força do ofício, tem acesso à nossa vida “on-line”, a realidade é que, quando usamos, trabalhamos ou simplesmente passeamos pela Internet, deixamos um rasto que, na implausível hipótese de alguém se interessar por isso, permitirá reconstruir a nossa existência com pormenores impressionantes.
O jornalista Riccardo Stagliano, especialista em novas tecnologias do “La Repubblica”, contou há dias que pediu a uma empresa que pesquisasse os seus dados pessoais na rede. Em poucas horas, a empresa apresentou um relatório com dados biográficos, números de telefone, qualificação profissional, preferência partidária… Por outro lado, como tem alguns conhecimentos informáticos, foi à “caixa preta” do Google e encontrou todas as suas relações como motor de busca. “E é como olhar a alma no espelho. Desde o momento em que eu ativei a cronologia, ou seja o registo histórico de cada pesquisa feita, eles sabem exatamente o que eu vi nos últimos anos”, descreve. E encontrou a mensagem que enviou no dia 27 de maio de 1996 a um grupo de discussão sobre publicidade on-line, o que o leva a constatar: “Pelo que eu sabia na época, era como anexar um anúncio num mural da universidade. O que eu aprendi depois é que ninguém jamais o removeria, ou melhor, seria embalsamado para a memória futura. Se eu tivesse pedido instruções para confecionar uma bomba seria o mesmo” (ler aqui em português e aqui em italiano).
Claro que o perfil digital que anda pela rede ou que é possível construir com os dados dispersos na rede é feito de elementos fornecidos por nós próprios, “às vezes de maneira ativa, preenchendo questionários, assinando abaixo-assinados e assim por diante”, mas, “mais frequentemente, de modo passivo, simplesmente navegando, comprando ou sendo marcados nas fotos de outras pessoas”, atividade tão comum no Facebook, como afirma Stagliano. A lição? “Deus perdoa, a Internet não. Sobretudo não se esquece de nada. Ela conhece-nos melhor do que uma mãe, do que um amigo, do que um psicanalista. E é capaz de reunir tantas peças daquele mosaico caótico que é a vida, reconstruindo-o num nível de detalhe impensável na era pré-web”, afirma no texto do “La Repubblica”.
Ao fim de alguns anos ligados à grande rede, pode entrar-nos em casa ou no computador um romeiro que em vez de nos dizer que é “Ninguém!”, mostra-nos que somos o que pensávamos que estava definitivamente enterrado no passado.
2. É relevante pensar no perfil digital católico. Bento XVI afirma na mensagem para o próximo Dia Mundial das Comunicações Sociais que “existe um estilo cristão de presença também no mundo digital: traduz-se numa forma de comunicação honesta e aberta, responsável e respeitadora do outro”. O modo de comunicar, as escolhas, as preferências, os juízos “devem ser profundamente coerentes com o Evangelho, mesmo quando não se fala explicitamente dele”, afirma o Papa (ler aqui).
Nos exercícios do jornalista italiano acima referidos, que imagem sobressairia do cristão que passa várias horas on-line? E do comunicador que se afirma católico?
3. Desde há dois anos colaboro no blogue “Religionline” e alimento o “Tribo de Jacob” (TdJ). Este último surgiu como resposta pessoal ao apelo do Papa em 2009 para “levar para o mundo digital o testemunho da fé”.
Um dia, um leitor do TdJ, do lado de lá do Atlântico, perguntou-me se sou católico. Um “sim” ou um “não” bastava. Respondi-lhe de imediato, mas na altura não me lembrei de contar o caso do corcunda que conta a toda a gente que é corcunda. Como se precisasse de o dizer. Eu sentia-me um corcunda consciente. Pensava que não era preciso dizer o que sentia como evidente. Escrevia e escrevo como católico. Mas não sabia que isso nem sempre se notava em quem me lê. O leitor brasileiro diz-me na volta que eu falo muito da “banda podre” do catolicismo. Talvez. E acrescento que tenho simpatias pela insegurança antropológica luterana e pela segurança ontológica judaica. Mas sou católico. Pensava que isso se notava pelas efemérides quase diárias e quase sempre papais. Pelas notícias recolhidas da imprensa escrita e da Ecclesia. Pelo apontamento do sinal crente, por vezes inesperado, na cultura pop. Rumores de anjos. Pelas frases de conteúdo positivo. Pelos excertos de livros de espiritualidade. Pelas pontes que procuro entre culturas, ciências, artes e religiões. O católico sabe que há muitas moradas na Casa do Pai. Que o Papa é pontífice para lançar pontes. E cada um de nós, à sua maneira, também há-de lançá-las. Ou pelo menos atirar uma escada. Se for como a de Jacob, melhor. Ou permitir que subam pela corcunda. Talvez a minha corcunda seja pequena.
4. Como é que se mostra a identidade católica nas ferramentas digitais da comunicação? Arriscaria um perfil baseado no Concílio Vaticano II. Os novos meios são maravilhosos. Há que usá-los (“Inter mirifica”). Não é possível fazê-lo bem se não for em liberdade e com criatividade (“Dignitatis humanae”). Na rede, sabemos que somos o que partilhamos. Na vida, sabemos que a maior partilha é a que nos constitui em comunidade de comunhão (“Lumen gentium”). Pelo dom, somos mais do que o que partilhamos. A vida contém a rede. Não o contrário. Mas a rede é metáfora para a comunidade que interessa. A comunicação, na qual também nos revelamos, é sempre um mero sinal de uma revelação maior (“Dei verbum”). Nas redes, temos de olhar para os que estão mais próximos, com os quais temos muito a aprender (“Unitatis redintegratio”), e para os mais afastados, que podem ter muito a ensinar (“Nostra aetate”). Sempre com alegria e esperança. Diálogo, nunca monólogo, ditado ou anátema (“Gaudium et Spes”).
Nunca como nas últimas semanas se tem falado tanto do medo. “Não tenhais medo”, diz o Ressuscitado. Disse-o o agora bem-aventurado polaco. Dizem os políticos. Também foi essa uma das mensagens saídas do recente encontro dos blogueiros com responsáveis do Vaticano: “Não devemos ter medo de entrar nos debates informativos eclesiais” (aqui). Arrisco, nesta linha, um perfil trinitário. O comunicador cristão sabe que a autoridade, que é típica do Pai, está com o Papa e a Igreja. Mas comunica com a liberdade que a própria comunicação e os meios exigem e que é típica do Filho, o Libertador. Como aliar autoridade da paternidade/maternidade com liberdade da filiação? Só com a criatividade do Espírito. O Consolador que dissipa o medo.
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