terça-feira, 19 de abril de 2011

Tomás, Maquiavel e a ética na política

César Bórgia

Um leitor deste blogue comentou por duas vezes a minhas afirmações sobre “O Príncipe”, de Maquiavel. Penso que será um entendido em Teoria Política ou em História das Ideias, pois até escreve “Machiavelli” (ver aqui e aqui).
Eu não sou entendido em Maquiavel. Sei basicamente o que é de cultura geral, de uma ou outra leitura e de alguma observação da prática política. O facto de hoje fazer anos que nasceu a irmã de um dos príncipes que Maquiavel vê como modelo faz-me voltar ao assunto e esclarecer o meu ponto de vista. Lucrécia Bórgia era irmã de César Bórgia, ambos filhos do Papa Alexandre VI, gerados quando Rodrigo Bórgia ainda não estava no trono de São Pedro. Diz Maquiavel: “Desejo ilustrar duas formas de se chegar a príncipe, por virtude ou por fortuna, com dois exemplos do nosso tempo: são eles Francisco Sforza e César Bórgia” (cap. VII).
Ora o essencial das minhas observações e do meu entendimento básico de Maquiavel está nisto: ele teoriza sobre a conquista do poder, geralmente servindo-se de casos concretos da história, justificando os meios pelos fins e separando a ética da razão política. Isto não quer dizer, obviamente, que antes dele a acção política era sempre ética. Longe disso. Os exemplos de que se serve são do passado. Acontece é que nunca ninguém tinha teorizado dessa maneira. A teoria que existia, pensemos em Tomás de Aquino, ia justamente pela obrigatoriedade de aliar moral e política. O príncipe, para Tomás de Aquino, tinha de ser um homem de, pelo menos, virtudes públicas. Ética provada. O dominicano achava que a piedade (podíamos dizer hoje: a fé) não era propriamente uma qualidade necessária para o governante, mas havia qualidades que o governante devia possuir em coerência.
Ora a teoria de Maquiavel vai em sentido diverso, para não dizer oposto, certamente observando a política real do tempo. Frases como as seguintes revelam bem que estamos perante uma teoria política completamente nova. Muitos certamente já tinham vivido segundo esses princípios, mas estes nunca haviam sido escritos e abertamente assumidos. Tornados normativos mesmo. E a partir daqui passam a estar na mesa-de-cabeceira dos governantes, como diz Benjamin Wiker. Geralmente dos governantes que estragaram a vida dos governados.

Diz Maquiavel:
- O príncipe que comanda um exército e vive de pilhagens, saques, impostos e dos bens alheios precisa de ser magnânimo, pois, de contrário, não será seguido pelos seus soldados (Cap. XVI). 
- Será melhor ser amado ou temido ou o inverso? (…) É muito mais seguro ser temido do que amado, se só se puder ser uma delas (Cap. XVII). 
- (…) A experiência do nosso tempo ensina-nos que os príncipes que pouco tiveram em conta a palavra dada e souberam astuciosamente ludibriar os espíritos dos homens fizeram grandes coisas e acabaram por superar aqueles que se apoiaram na lealdade (Cap. XVIII). 
- Nunca a um príncipe faltam motivos legítimos para colorir as inobservâncias (Cap. XVIII).- Um príncipe não precisa de possuir de facto todas as qualidades acima enumeradas, mas convém que pareça possuí-las [as qualidades em questão são: piedoso, leal, humano, íntegro e religioso] (Cap. XVIII). 
- Um príncipe deve, acima de tudo, esforçar-se por dar uma imagem de homem notável e de excelente engenho (Cap. XXI).
Os exemplos poderiam continuar. E algumas dessas frases adequam-se na perfeição à  actualidade política portuguesa.
A política pré-Maquiavel não era ética. Mas os teóricos diziam que devia ser. A política pós-Maquiavel é tanto ou tão pouco ética como a outra. Mas os teóricos, a começar por Maquiavel, dizem que a ética pouco interessa quando está em questão o poder. Os que dizem o contrário são menos ouvidos.

1 comentário:

Vítor Mácula disse...

Olá, Jorge

Se entendido fôr em alguma coisa, garanto-lhe que não é em Machiavelli, mas também não chamo Boticelo ao Botticelli; não sei se tem a importância que o Jorge parece querer dar-lhe, talvez até tenha: o estilo é sempre significativo, mesmo quando insignificante.

A ética em Machiavelli é evidentemente diferente da axiomática tomista; ela deriva da constatação pessoal e Histórica de que a liberdade que habita o desejo humano é um princípio deste, e não uma ideia pura e transcendente à Natureza; assim como da constatação de que a liberdade exercida na prática dá-se sempre em coacção: um desejo coage sempre outro, tanto intrinsecamente (o meu desejo de ir ao cinema configura-se com o meu desejo de jantar com um amigo, que por sua vez etc) como extrinsecamente (o desejo de um configura-se na relação prática com os desejos de outros); e que o bem estar social e a felicidade pessoal (realização desejosa) são maximizados na concórdia entre as tais três instâncias (que para Machiavelli correspondem à totalidade social). Trata-se de um ética de libertação pura, ligada a um entendimento do humano enquanto desejo (intelectivo, sexual, poético, político, territorial, etc) e não de um dever-ser geral para todos: ela busca a efectivação real e prática de permitir o máximo de "deveres-ser", de formas de ser-se humano, e não uma definição genérica do humano afim de deduzir a partir desta, normas e regras para tutti quanti.

O método de tal programa passa por três eixos:

- descrever as instâncias histórias em jogo tal como são, e não como as desejaríamos ou como "deveriam" ser (para o jogo político há três instâncias históricas, que já lhe referi: o Estado, O Povo e a Inteligenzia);

- visto o equilíbrio socio-político derivar da igualdade de forças na dialéctica histórica que liga estas três instâncias, analisar as situações históricas em que tal se deu (e daí o estudo das Décadas de Tito Lívio e outros) para tentar compreender as condições desse equilíbrio justo, afim de preservá-lo, defendê-lo e mantê-lo; pois é na concórdia de forças entre as diversas instâncias sociais e pessoais, que se maximiza a efectivação dos desejos humanos.

O Príncipe é a análise do Estado "tal como é na sua realidade histórica"; não se espante que lhe recorde a política de Estado actual: se observar muitas outras épocas e lugares, surprender-se-á talvez por haver ecos da descrição de Machiavelli.

Eu tenho inúmeras divergências com a ética de Machiavelli, mas isso não faz desta uma não-ética; poderíamos começar por aí, visto que aparentemente a cultura geral continua embarcada num entendimento de Machiavelli a partir de uma tresleitura restrita a "O Príncipe", cuja génese ideológica é também uma interessante história.



“ (...) a natureza criou o homem de tal modo que este tudo pode desejar sem poder tudo obter; (...)” (Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, 1, XXXVI)

“Haverá sempre aqueles que preferem remeter-se com preguiça à fortuna, primeiro que à virtude, bem conscientes de que a sua virtude não é capaz de fazer frente à fortuna, e preferindo ser seus escravos do que fazer dela escrava sua.” (A Arte da Guerra., 2, XIII)



“Com efeito, quando, na mesma Constituição, se reúnem um príncipe, os senhores e a potência do povo, cada um dos três poderes controla os outros.” (Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, 1, II)

“Em toda a república, não há senão dois partidos: o dos grandes e o do povo; e todas as leis favoráveis à liberdade nascem desta oposição.” (Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio 1, IV)

saudações

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