Texto de Anselmo Borges no DN de hoje.
Lá está Ludwig Wittgenstein: a linguagem não serve apenas para descrever a realidade, usamo-la também para pedir um favor, para agradecer, para amaldiçoar, para saudar, para rezar...
E é preciso atender ao contexto, à situação, ao uso. "Chove" pode dizer a constatação de um facto: está realmente a chover. Mas suponhamos que a mãe, pela manhã, quando o filho se prepara para ir para escola, lhe diz: "Chove", ele sabe ao mesmo tempo que deve levar o guarda-chuva. Se, numa família de agricultores, após uma seca prolongada, a mulher abre a janela e diz ao marido: "Chove", é o contentamento que é dito. Mas, se estavam na expectativa de um passeio agradável e diz: "Chove", é a desilusão.
A linguagem tem três funções principais: a expressiva, a apelativa e a representativa. Essas funções têm a ver com as relações estabelecidas entre o emissor, o receptor e os objectos: há alguém (emissor) que se dirige a alguém (receptor) para lhe comunicar algo. Pela função de expressão, o emissor exprime-se; pela função de apelação, interpela o receptor; pela função de representação, a linguagem torna presente a realidade.
Noutro sentido, é essencial a dimensão pragmática da linguagem. Segundo alguns filósofos, deveria tender-se para uma linguagem artificial, lógico-unívoca, interessando apenas as dimensões sintáctica (a relação dos signos entre si) e semântica (relação dos signos com a realidade) da linguagem e o princípio verificacionista das asserções. Mas, deste modo, esquecia-se a dimensão pragmática: falando, produz-se um efeito. Pense-se, por exemplo, na promessa de casamento: "Prometo e juro amar-te e ser-te fiel por toda a nossa vida" produz o efeito que é o próprio casamento. Esta dimensão foi sublinhada na Bíblia: Deus criou pela palavra, palavra eficaz.
Com a linguagem, pode-se arrastar multidões, levá-las à revolução, acalmá-las, exaltá-las, virá-las num sentido ou noutro.
A palavra cura. Uma vez, apareceu-me um homem com imensos problemas e apenas me pediu que o ouvisse, sem interrupção. Falou mais de hora e meia e, no fim, agradeceu-me muito: tinha posto alguma ordem na sua vida. Com algumas palavras, podemos abrir futuro a uma pessoa. Com algumas palavras, podemos destruí-la para sempre: "és um burro, nunca farás nada na vida!"
Pela palavra, abrimo-nos ao mundo e o mundo abre-se a nós. Falando, damos razão disto ou daquilo, argumentamos, comprometemo-nos, formamos comunidade. Sendo a razão humana linguisticizada, só podemos compreender-nos a nós próprios em corpo, com outros e na história.
O homem, pelo facto de ser “zôon lógon échon”, animal que tem linguagem, é também “zôon politikón”, animal social, político, diferentemente do animal, que é gregário, e a razão disso é a palavra, como bem viu Aristóteles, na Política: "A razão de o homem ser um ser social, mais do que qualquer abelha e qualquer outro animal gregário, é clara. Só o homem, entre os animais, possui a palavra". E continua: "A voz é uma indicação da dor e do prazer; por isso, têm-na também os outros animais. Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente, bem como o justo e o injusto. E isto é o próprio dos humanos face aos outros animais: possuir, de modo exclusivo, o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto e das demais apreciações. A participação comunitária nestas funda a casa familiar e a cidade".
Gabriel Amengual
A linguagem humana não se reduz à linguagem emotiva do prazer e do desprazer. É capaz de fazer juízos morais, de distinguir o bem e o mal, o justo e o injusto, partilhar e debater publicamente estas apreciações. Deste modo, como sintetiza, Gabriel Amengual, "por esta dupla função, a linguagem funda a ética e funda eticamente a pólis".
Como faz falta voltar aos clássicos! Para acabar com a mentira e ir além da sofística.
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