Anselmo Borges escreve sobre Raimon Panikkar no DN de hoje. Texto retirado daqui.
Só estive com ele uma vez. Em Barcelona, em 2004, no Parlamento das Religiões. Morreu no passado dia 26 de Agosto, com 91 anos, em Tavertet, uma aldeia para onde se retirara, perto de Barcelona.
O Padre Raimon Panikkar era uma das maiores autoridades mundiais nas questões do diálogo inter-religioso. As suas raízes genéticas, religiosas, académicas, geográficas, deram um contributo decisivo para ser ponte entre Ocidente e Oriente: o pai era hindu e a mãe, catalã católica; era doutorado em Filosofia, Química e Teologia; viveu uma parte da sua vida na Europa, outra viveu-a na Ásia, uma terceira passou-a na América. Ensinou em várias universidades, entre as quais Santa Bárbara, na Califórnia, e Harvard. Deixou mais de 50 livros, em várias línguas. No meio de uma vida agitada e aparentemente dispersa, manteve, no Uno, a serenidade do monge.
O funeral, numa celebração solene e íntima, foi segundo o rito exclusivamente católico, mas Panikkar deixou instruções precisas para que as suas cinzas fossem repartidas entre a família, o cemitério de Tavertet e o rio Ganges, na Índia.
Regressado precisamente da Índia, disse que voltava hindu e budista, sem que isso significasse deixar de ser cristão: pelo contrário, agora, era mais cristão. Por isso, para lá do diálogo inter-religioso, defendia o diálogo intra-religioso, isto é, aquele diálogo que cada um deve estabelecer dentro de si mesmo entre as grandes religiões, cuja herança pertence a todos.
Depois dos períodos de isolamento e ignorância recíproca, indiferença e desprezo, condenação e conquista, coexistência e tolerância, chegou como "necessidade vital" o tempo do diálogo entre as religiões. É preciso superar tanto o exclusivismo, que afirma que só uma religião é verdadeira, rejeitando as outras, como o inclusivismo, segundo o qual a verdade de uma está implícita nas outras. O diálogo autêntico só pode ter por base o são pluralismo: todas as religiões são presença do Absoluto, mas nenhuma o possui definitivamente.
Este diálogo é constitutivo do ser humano enquanto tal, pois o homem não é uma mónada fechada, mas uma pessoa, um feixe de relações. Por isso, também é político, pois a religião não é uma questão privada e implica o diálogo com a Terra, a que chamou ecosofia.
E aí está a razão por que é necessário superar "três dualismos, seis dicotomias e três reducionismos", querendo dizer com isto que se torna imperioso unir o que tem andado separado.
Os dualismos são: Deus e homem, homem e natureza, natureza e Deus. Não se trata agora de confundir, mas de religar.
As seis dicotomias: alma e corpo, masculino e feminino, indivíduo e sociedade, teoria e praxis, conhecimento e amor, tempo e eternidade. Também aqui, não se trata de reduzir tudo ao mesmo, mas de tomar consciência de que uma realidade não existe sem a outra e de mostrar a sua relação intrínseca: o ser humano é uno, o masculino não se entende sem o feminino, o indivíduo não existe sem a sociedade, o conhecimento sem amor não passa de cálculo, o tempo está vinculado à eternidade - "tempieternidade", dizia.
Os três reducionismos: "O antropológico, que reduz o homem a um animal racional; o cosmológico, que reduz o cosmos a um corpo inerte; o teológico, que reduz a Divindade a um Ser transcendente." Afinal, o homem não é redutível a animal racional, e, quando se reduz o cosmos a um corpo inerte, esquece-se a sua dimensão sagrada e viva, e o modo de transcendência de Deus só pode ser este: no mundo, Deus é transcendente ao mundo.
Assim, a religião do futuro tem de religar o que tem andado separado: Deus, cosmos e homem. Ela irá vincular de modo harmónico as três dimensões últimas da realidade: o aspecto material e corporal, as diferentes facetas do homem e o princípio mistérico e transcendente, numa conexão de inter-in-dependência, de tal modo que uma não é sem as outras. A religião volta a ser central na vida humana, religando esses três pólos. Chamou a esta sua visão "A intuição cosmoteândrica", numa obra traduzida em português.
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