sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Das escutas à escuta

A crónica de D. Carlos Azevedo no "Correio da Manhã" parte das escutas, que por estes dias andam pelos jornais, para chegar à escuta que é própria do tempo quaresmal.




À escuta

Desde há uns meses que o assunto das escutas ocupa grande espaço na comunicação portuguesa, com perversa confusão entre meios e fins, condenação dos modos e acolhimento dos resultados. O que não se devia saber publicamente faz-se notícia e revela sentimentos, carácter, comportamentos de pessoas responsáveis pelo bem público. A lentidão do sistema judicial contrasta com a celeridade dos boatos. A dedicação ao bem comum do país é desviada para a defesa pessoal dos visados. Eis o que produzem as escutas: uma murmuração em cadeia, uma grande baralhada que promete durar, porque o gosto por mexer na porcaria é próprio de alguns animais!
Esta introdução serve para abrir o tema da escuta, da criação de silêncio, próprio do tempo quaresmal, a iniciar na próxima quarta--feira pelos cristãos. Deus é a Palavra, nós somos escuta: e a escuta pressupõe o silêncio, isto é o despojamento de todas as vozes que nos distraem da escuta, sejam aquelas que partem do nosso coração ou da nossa inteligência, sejam aquelas que entram em nós, usurpando um lugar indevido...
É difícil falar de silêncio num mundo habituado ao barulho. Não é grande prova o silêncio sobre um monte deserto, onde tudo nos convida à harmonia com a terra, o céu, as estrelas, as flores, o vento. Sem o silêncio, o ser humano morre de fome, não fome de pão, mas de escuta da Palavra do Senhor (Amós 8,11).
O silêncio cria à volta de nós o clima de deserto levando-nos à nobre e necessária solidão. O valor justo da solidão é o contrário de um isolamento, de uma distância aristocrática, de uma presunção auto-suficiente. A solidão do deserto é contínua procura de água, de lugar de encontro, de oásis. Deus atrai ao deserto para se revelar, para falar ao coração, para fazer conhecer o Seu desígnio. No deserto aprende-se a ter sede e a organizar a própria vida, dirigir o próprio caminho. É a experiência de que só Deus basta: pobreza radical e plenitude perfeita.
A fuga diante da solidão, a murmuração no deserto, a procura quase nevrótica do dia cheio, da actividade, da distracção e da companhia testemunham a incapacidade de viver sem débeis apoios e como Deus não aparece guia absoluto dos passos incertos, atento a qualquer grito ou a qualquer desequilíbrio.
As escutas lusitanas, aludidas no início, apelam a murmuração, impedem a escuta dos apelos profundos do Portugal real. O tempo de Quaresma, marcado pela escuta da Palavra, permitirá passos novos, Páscoa verdadeira.
Fonte: CM

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