Na entrevista que o padre e poeta José Tolentino Mendonça dá à revista Ler (n.º 86, Dezembro de 2009), afirma a certa altura que “hoje vivemos religiosamente dimensões que são puramente humanas ou até trivialmente quotidianas”. Carlos Vaz Marques pede-lhe um exemplo. E Tolentino Mendonça afirma: “O exemplo mais claro é o dos movimentos de massas. Por exemplo, o futebol. Ou falar dos centros comerciais como as «catedrais de consumo». Transferiram-se para o horizonte puramente secular as dimensões do religioso e vive-se aí com as mesmas tensões, com a ritualidade… Hoje, as grandes ritualidades são laicas. São integradas nos dinamismos societários. Nesse sentido, importa-me fazer a arqueologia de uma determinada linguagem religiosa e utilizá-la em termos poéticos, como vocabulário, para desconstruir a nossa própria experiência comum”.
O exemplo do futebol já neste blogue foi referido (aqui), mas recupero agora um texto de 2003, de um blogue que em tempos alimentei. Trata-se de um excerto saído no Público de 26 de Setembro de 2003. O jornalista escreve sobre Ricardo Araújo Pereira, nesse tempo ainda não muito conhecido, e a sua religião, o benfiquismo. Entre parênteses rectos, comentários meus. A negrito as declarações do elemento Gato Fedorento.
«A obsessão é vivida sem eufemismos e por vezes assume proporções estranhas: durante um jogo sente o coração a bater nas costas; quando o “Glorioso” [um título messiânico, é claro, para quem só podia jogar na “catedral”] perde, sente que a culpa é dele. “Pelo menos sinto que a culpa também é minha, que não fiz tudo o que estava ao meu alcance para o Benfica poder ganhar [a fé precisa de obras]. É uma coisa quase religiosa. Não sei se tem a ver com a culpabilidade cristã, mas é um sentimento de culpabilidade bastante forte” [agora vai ter de expiar a culpa – um sacrifício]. A comparação religiosa não fica por aqui: quando era pequeno – deveria ter uns seis ou sete anos – o primo levava-o ao estádio [há sempre alguém responsável pela iniciação, um Eli para o Samuel, um João Baptista que aponta o caminho, um profeta, um santo protector], próximo de sua casa, e Ricardo, 29 anos, lembra-se “de subir a Rua dos Soeiros [para chegar a um santuário é sempre necessário subir], olhar para as pessoas e sentir que estava unido a elas [as religiões são sempre coisa de povo, de colectivo, de assembleia]. Suponho que o sentimento era parecido ao que une os peregrinos”[sim, e provavelmente usavam a mesma indumentária: cachecóis, bandeiras como se fossem estandartes de procissões, etc.]».
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