Deixei de referir os que se pronunciaram sobre Saramago / Deus / a Bíblia / “Caim” et alia, mas retomo o tema por causa de Rui Tavares no Público de hoje. Não sei se o cronista vai colocar o texto que saiu na edição impressa no seu sítio/blog. Suponho que sim.
Quando, antevendo que um dia se pronunciaria sobre o assunto, julgava eu que ele retomaria uma ideia muito acertada, a de que a partir dos 40 anos somos culpados da nossa própria ignorância (nos assuntos sobre os quais escolhemos falar), afirma, afinal:
“Quanto ao resto; um deus vingativo, rancoroso, capaz de fúrias indiscriminadas contra culpados e inocentes; um deus que testa os humanos como se fosse brinquedos; um deus que às vezes parece que «não gosta de nós» - bem, que escândalo pode haver? Qualquer pessoa que goste de ler o Antigo Testamento sabe disto. Deus diz: exterminem os amorreus, e os amorreus são exterminados. A mulher adúltera e o filho desobediente são apedrejados; o pai deve sacrificar o filho; o homem com apenas um testículo é proibido de entrar no templo, e por aí adiante.
A relação entre humanos e o deus do Antigo Testamento – como diz Saramago «nem ele nos entende, nem nós o entendemos a ele» - é como uma história amorosa que poderia ter dado muito certo mas deu muito errado”.
Também Rui Tavares não percebeu nada. Estuda-se Feuerbach, Marx, Freud, para quê? Põem-se as coisas em termos de Deus, para quê? Por que é que ninguém põe a questão em termos do entendimento humano sobre Deus? Eu tenho uma explicação. Porque sendo Deus o sujeito, atinge-se mais facilmente a Igreja do que pondo o entendimento humano de Deus no centro da questão. Saramago sabe disso. Rui Tavares também. De resto, o pontífice e o acólito ignoram que a questão da maldade do Antigo Testamento foi discutida há cerca de 1850 anos. O nome Marcião diz alguma coisa?
Basta pôr o nome no Google e aparece logo o essencial do pensamento sobre Marcião (séc. II). Até a Wikipédia o diz:
“Marcião considerava que o Deus vingativo do Antigo Testamento não poderia ser o mesmo Deus amoroso a que Jesus se referia como Pai, e por isso, achava que só o Novo Testamento interessaria aos cristãos. Mas Marcião também não aceitava os quatro evangelhos canónicos, pois os considerava corruptos, cheios de falsificações. Na doutrina de Marcião havia assim um Deus bom e um Deus mau”.
Os cristãos dos primeiros séculos perceberam que o Deus do AT é o mesmo que do o NT. Não podia ser diferente. Os factos e as ideias estão de tal maneira misturados que ou se aceita tudo ou se recusa tudo. Os cristãos e os judeus aceitaram tudo, reinterpretando. O entendimento é que devia ser diferente. 1850 anos depois, o entendimento de alguns avançou pouco. Ainda há muitos marcionitas. Com uma diferença. Para os novos marcionitas, só há o Deus mau. E nesse, claro, não podem crer.
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