Nem liberalismo absoluto, nem socialismo, ainda que moderado
Pio XI afirma claramente o porquê de uma encíclica social em 1931, a “Quadragesimo anno” (QA). No n.º 15 aponta três motivos: assinalar os 40 anos da “Rerum Novarum” (“Quadragesimo anno” significa “No quadragésimo aniversário”, as primeiras palavras da encíclica); responder a algumas dúvidas deixadas pela RN; e “chamar a juízo o regime económico moderno”, “instaurando processo ao socialismo” (que entretanto atingira grande grau de desenvolvimento, quer sob a forma de partidos comunistas na Europa Ocidental, quer sob a forma de regime, na URSS) e “apontando a raiz do mal-estar da sociedade contemporânea”.
Quando Pio XI escreve, o mundo ainda não conhece a real dimensão da crise iniciada com o “crash” bolsista de 1929. A crise teria consequências tão profundas que, ao chegar à Europa, principalmente à Alemanha (que no rescaldo da I Guerra Mundial vivia a crédito dos EUA) provocaria a ascensão de Hitler e, por fim, a II Guerra Mundial.
Muitos vêem na depressão económica iniciada em 1929 o cumprimento das profecias de Karl Marx: a implosão do capitalismo sobre si próprio. E na actualidade, são várias as vozes que dizem que a presente crise financeira é semelhante à de 1929 e terá consequências igualmente drásticas.
Mas o que aconteceu em 1929? Na origem está a famosa “quinta-feira negra”, o dia 24 de Outubro de 1929, com a queda a pique dos títulos da Bolsa de Nova Iorque porque a especulação bolsista já não tinha correspondência com o valor real das empresas cotadas. A seguir, todo o sistema financeiro norte-americano desmorona. Os bancos ficam sem liquidez quando milhares de portadores vendem os seus títulos ao desbarato. Sem liquidez, deixam de conceder crédito e retiram os seus investimentos do estrangeiro (sendo a Alemanha o país mais afectado). Refreia-se o investimento e o consumo e a economia cai a pique. A crise era financeira (o Dow Jones cai 79% num curto espaço de tempo), mas torna-se económica (quebra das actividades económicas), social (subida do desemprego, que chega aos 22% nos EUA e 17% na Alemanha) e política (ascensão das ditaduras).
Pio XI não antevia as consequências do “crash” bolsista (ninguém antevia) e a QA detém-se mais nos perigos da “solução socialista” no que dos do “liberalismo absoluto”. Mas a especulação financeira e o poderio dos grandes grupos económicos são notados:
“Nos nossos tempos não só se amontoam riquezas, mas acumula-se um poder imenso e um verdadeiro despotismo económico nas mãos de poucos, que as mais das vezes não são senhores, mas simples depositários e administradores de capitais alheios, com que negoceiam a seu talante. Este despotismo torna-se intolerável naqueles que, tendo nas suas mãos o dinheiro, são também senhores absolutos do crédito e por isso dispõem do sangue de que vive toda a economia, e manipulam de tal maneira a alma da mesma, que não pode respirar sem sua licença. Este acumular de poderio e recursos, nota característica da economia actual, é consequência lógica da concorrência desenfreada, à qual só podem sobreviver os mais fortes, isto é, ordinariamente os mais violentos competidores e que menos sofrem de escrúpulos de consciência” (QA 105-108).
“As últimas consequências deste espírito individualista no campo económico são essas que (…) vedes e lamentais : a livre concorrência matou-se a si própria; à liberdade do mercado sucedeu o predomínio económico; à avidez do lucro seguiu-se a desenfreada ambição de predomínio; toda a economia se tornou horrendamente dura, cruel, atroz” (QA 109).
Para evitar o despotismo do capitalismo será aceitável a via comunista ou a “facção mais moderada” do socialismo, com “princípios tendentes para as verdades que a tradição cristã sempre solenemente ensinou”?
Pio XI vai dizer que não. “A regeneração social” só se alcançará com a “profissão franca e sincera da doutrina evangélica” (QA 136). E apontará alguns princípios cristãos que devem dar forma à vida económica, na linha do seu lema, “Pax Chisti in regno Christi”, como veremos em artigo seguinte. Pio XI é o Papa da solenidade de Cristo Rei, da Acção Católica, da reconquista cristã da sociedade…