Texto de Anselmo Borges no DN de hoje. Aqui.
Se fosse vivo, teria feito 100 anos no passado dia 27 de
Fevereiro. É um dos maiores filósofos do século XX, que "se tornou
filósofo para se não tornar esquizofrénico".
Refiro-me a Paul Ricoeur, sendo o que aí fica, evitando
tecnicismos, uma homenagem ao grande pensador humanista e cristão, que também
influenciou a teologia, com a hermenêutica.
1. Pergunta nuclear da filosofia é: o que é o Homem?, quem
sou eu? Ora, não se pode duvidar do facto de que eu sou; mas quem sou, o que é
que eu sou: isso é duvidoso. O Homem não é transparente a si próprio. Para
chegar a si mesmo, tem de fazer um grande desvio de interpretação, passando
pelas obras da cultura: a literatura, as artes, as religiões, as ciências
naturais - no quadro das neurociências, em diálogo com J.-P. Changeux, fez
questão de acentuar a distinção fundamental entre o conhecimento científico e a
experiência vivida: o sujeito não é redutível a dados empíricos -, as ciências
humanas... É mediante esse percurso que o Homem vem a si próprio; reconhece-se,
narrando a sua própria história, sempre aberta e em transformação. A identidade
humana é narrativa.
2. A ética ocupa lugar central no pensamento ricoeuriano. É
famoso, neste campo, o seu triângulo ético: a ética é "o desejo da
"vida boa" com e para outrem em instituições justas". Tudo
arranca do desejo: o esforço de existir, a capacidade de querer e agir, ser.
Mas "eu" (primeira pessoa) não sou sem o outro, sem o "tu"
(segunda pessoa), que me solicita: "O outro é meu semelhante. Semelhante
na alteridade, outro na semelhança." O encontro, porém, dá-se no contexto
de um "ele", "ela" (terceira pessoa), que remete para o
impessoal e institucional (instituições justas).
3. A sua filosofia está profundamente enraizada. Di-lo
também um texto sobre a Europa, numa entrevista de 1997, agora publicada pela "Philosophie Magazine": "Estamos em guerra económica. É um problema muito
perturbador, sobre o qual nunca tinha dito nada. É hoje o problema de toda a
Europa ocidental. Onde, para sobrevivermos, devemos manter uma ética e uma
política da solidariedade. O combate a travar tem duas frentes: por um lado, as
nossas economias têm de permanecer competitivas; por outro, não podem perder a
alma - o seu sentido da redistribuição e da justiça social. Um problema enorme,
quase tão difícil de resolver como a quadratura do círculo...
Ainda não acabámos com a herança da violência e da última
guerra. Nem com a dureza e a brutalidade do sistema capitalista, que deu KO ao
comunismo, ficando sem rival. É hoje a única técnica de produção de riqueza,
mas com um custo humano exorbitante. As desigualdades, as exclusões são
insuportáveis.
Estou um pouco tentado por uma solução que se poderia dizer
cínica. Pode causar-lhe espanto da minha parte, mas enquanto este sistema não
tiver produzido efeitos insuportáveis para um grande número, continuará o seu
caminho, pois não tem rival... Penso que vamos conhecer na Europa ocidental uma
travessia no deserto extremamente dura. Porque já não somos capazes de pagar o
preço que os mais pobres do que nós pagam. A ascensão das jovens economias
asiáticas, concretamente a da China, supõe um custo que seremos incapazes de
suportar. Não só não queremos isso, mas não devemos fazê-lo. Não vamos voltar
aos tempos do trabalho infantil!... É por isso que eu sou tão fortemente
pró-europeu; só uma economia de grande dimensão permitirá à Europa sair
disto."
4. "O Homem é a Alegria do Sim na tristeza do
finito." Ricoeur sabe da finitude e do mal e da violência e da morte. Mas,
em primeiro lugar, há a vida e o seu esforço de ser: "a morte não é eu
como a vida, é sempre a estrangeira." Aqui, radica a esperança como
sentimento fundamental: "a esperança diz: o mundo não é a pátria
definitiva da liberdade; consinto o mais possível, mas espero ser libertado do
terrível." Assim, na última página da sua última grande obra: La Mémoire,
l"Histoire, l"Oubli (2000), publicada aos 87 anos, deixou este texto
que dá que pensar e que assinou pelo próprio punho: "Sob a história, a
memória e o esquecimento. Sob a memória e o esquecimento, a vida. Mas escrever
a vida é uma outra história. Inacabamento. Paul Ricoeur."
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