terça-feira, 27 de novembro de 2012

O Papa bem tenta harmonizar os dois relatos da infância de Jesus. Mas é bem sucedido?

Tenho estado a ler o livro de Joseph Ratzinger / Bento XVI, que é uma leitura agradável, mas sem grande novidade. Também não é isso que se pede a um teólogo que não é biblista nem cristólogo. Como de algum modo já era previsível, no seu combate claramente afirmado nas obras anteriores pela continuidade entre o Jesus da história e o Cristo da fé, o Papa bate-se pela historicidade de fundo dos relatos da Infância de Jesus – e não dos aspetos epidérmicos, como o do burro – e é esse precisamente o ponto mais rebatido das críticas dos especialistas. É esclarecedor o texto de Vito Mancuso no “La Repubblica” (tirado daqui):
Nos Evangelhos, há dados historicamente certos ao lado de elaborações simbólicas historicamente não confiáveis, e a tarefa da exegese histórico-crítica consiste em distinguir as duas dimensões. 
 
Certamente, entre Mateus e Lucas, há elementos comuns: a identidade dos pais, o anúncio evangélico, a concepção de Maria sem relações sexuais com o marido, o nascimento em Belém sob o reinado de Herodes, a transferência para Nazaré. Mas também há discordâncias que não podem ser harmonizadas: antes do nascimento de Jesus, Maria e José ou residiam em Nazaré (Lucas) ou residiam em Belém (Mateus); a sua viagem de Nazaré a Belém ou aconteceu (Lc) ou não aconteceu (Mt); Jesus nasceu ou na casa dos pais (Mt) ou em uma manjedoura (Lc); o massacre das crianças de Belém ou aconteceu (Mt) ou não aconteceu (Lc); os pais ou fugiram para o Egito para salvar o menino dos soldados de Herodes (Mt) ou foram ao templo de Jerusalém para a circuncisão sem que os soldados de Herodes se preocupassem com o menino (Lc); a família de Belém ou voltou logo para casa em Nazaréda Galileia (Lc) ou foi para Nazaré só depois de ter estado no Egito e pela primeira vez (Mt). 
 
Além disso, está a questão de como a notícia da concepção virginal chegou aos evangelistas. O papa se inclina pela "tradição familiar" (p. 65), no sentido de que teria sido Maria que comunicou aos discípulos o extraordinário evento de ter concebido o filho sem relações sexuais. Mas, se realmente tivesse sido assim, não se explicaria a escassa atenção do Novo Testamento a Maria, incluindo o livro dos Atos dos Apóstolos escrito justamente por Lucas, que a menciona somente uma vez e quase de passagem, enquanto dá muito mais espaço não só a Pedro e a Paulo, mas até mesmo a personagens secundários como Lídia, a comerciante de púrpura. 
É crível, talvez, que Lucas, sabendo diretamente de Maria sobre a concepção extraordinária de Jesus, a ignore completamente nos Atos, sem escrever nada sobre onde ela vivia, o que fazia, como terminou a sua vida terrena e sem nunca ter lhe dado a palavra sequer uma vez? Tudo isso leva a duvidar muito do que o Papa sustenta. 
Ratzinger, porém, não gosta do método histórico-crítico; considera-o prejudicial para a fé e, talvez por isso, no seu livro, ele nem menciona o autor do estudo mais importante sobre os evangelhos da infância, o já citado Raymond Brown, sacerdote católico, por muito tempo membro da Pontifícia Comissão Bíblica. 
Brown conclui assim a sua obra monumental sobre os evangelhos da infância: "Qualquer tentativa de harmonizar as narrações a ponto de fazer delas uma história coerente está fadada ao fracasso" ("La nascita del Messia" [O Nascimento do Messias], Assis, 1981, p. 677). 
Ratzinger nem menciona Brown, mas justamente por isso a sua obra, apesar de algumas belas páginas de corte espiritual, vai ao encontro do destino prefigurado pelo grande biblista norte-americano.
Acrescento que esperava que o Papa citasse na bibliografia um dos melhores livrinhos que li (bem, li poucos) sobre os quatro capítulos evangélicos em causa: "Dios ha enviado a su hijo? El misterio de Navidad", de Rudolf Schnackenburg (na Herder, original em alemão de 1990), que era padre católico e um dos maiores especialistas no Novo Testamento. Mas não afina pelo diapasão do Papa. 

2 comentários:

Anónimo disse...

Vito Mancuso "especialista"? Mas ele nem é biblista nem cristólogo? Só se for especialista em disparates e heresias.

Jorge Pires Ferreira disse...

De facto, na sucessão de frases que escrevi, dá para presumir que penso em Vito Mancuso como especialista na matéria em questão. Coisa que não é. Mas cita especialistas.

E outros têm escrito na mesma linha. Ou se não escrevem, pensam. E até portugueses.

Já agora:

"Se o interesse pelo livro fosse circunscrito àqueles que se ocupam do pensamento do seu autor, esse terceiro e conclusivo volume sobre Jesus seria até útil. Infelizmente, as coisas, com toda a probabilidade, ocorrerão de modo diferente. Isso acontecerá por causa do silêncio público (e da discordância privada) manifestada por muitos biblistas. Eles não se sentirão livres para falar e aceitarão sem replicar os golpes que, de modo brusco, Joseph Ratzinger inflige – nesse caso, com pouca humildade – contra estudos realizados com perspicácia e erudição imensos."

E é um especialista que escreve. Pode ler tudo aqui:

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/515871-o-mundo-de-joseph-ratzinger

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