Tenho estado a ler o livro de Joseph Ratzinger / Bento XVI,
que é uma leitura agradável, mas sem grande novidade. Também não é isso que se
pede a um teólogo que não é biblista nem cristólogo. Como de algum modo já era
previsível, no seu combate claramente afirmado nas obras anteriores pela
continuidade entre o Jesus da história e o Cristo da fé, o Papa bate-se pela
historicidade de fundo dos relatos da Infância de Jesus – e não dos aspetos
epidérmicos, como o do burro – e é esse precisamente o ponto mais rebatido das
críticas dos especialistas. É esclarecedor o texto de Vito Mancuso no “La
Repubblica” (tirado daqui):
Nos Evangelhos, há dados historicamente certos ao lado de elaborações simbólicas historicamente não confiáveis, e a tarefa da exegese histórico-crítica consiste em distinguir as duas dimensões.
…
Certamente, entre Mateus e Lucas, há elementos comuns: a identidade dos pais, o anúncio evangélico, a concepção de Maria sem relações sexuais com o marido, o nascimento em Belém sob o reinado de Herodes, a transferência para Nazaré. Mas também há discordâncias que não podem ser harmonizadas: antes do nascimento de Jesus, Maria e José ou residiam em Nazaré (Lucas) ou residiam em Belém (Mateus); a sua viagem de Nazaré a Belém ou aconteceu (Lc) ou não aconteceu (Mt); Jesus nasceu ou na casa dos pais (Mt) ou em uma manjedoura (Lc); o massacre das crianças de Belém ou aconteceu (Mt) ou não aconteceu (Lc); os pais ou fugiram para o Egito para salvar o menino dos soldados de Herodes (Mt) ou foram ao templo de Jerusalém para a circuncisão sem que os soldados de Herodes se preocupassem com o menino (Lc); a família de Belém ou voltou logo para casa em Nazaréda Galileia (Lc) ou foi para Nazaré só depois de ter estado no Egito e pela primeira vez (Mt).
…
Além disso, está a questão de como a notícia da concepção virginal chegou aos evangelistas. O papa se inclina pela "tradição familiar" (p. 65), no sentido de que teria sido Maria que comunicou aos discípulos o extraordinário evento de ter concebido o filho sem relações sexuais. Mas, se realmente tivesse sido assim, não se explicaria a escassa atenção do Novo Testamento a Maria, incluindo o livro dos Atos dos Apóstolos escrito justamente por Lucas, que a menciona somente uma vez e quase de passagem, enquanto dá muito mais espaço não só a Pedro e a Paulo, mas até mesmo a personagens secundários como Lídia, a comerciante de púrpura.
É crível, talvez, que Lucas, sabendo diretamente de Maria sobre a concepção extraordinária de Jesus, a ignore completamente nos Atos, sem escrever nada sobre onde ela vivia, o que fazia, como terminou a sua vida terrena e sem nunca ter lhe dado a palavra sequer uma vez? Tudo isso leva a duvidar muito do que o Papa sustenta.
…
Ratzinger, porém, não gosta do método histórico-crítico; considera-o prejudicial para a fé e, talvez por isso, no seu livro, ele nem menciona o autor do estudo mais importante sobre os evangelhos da infância, o já citado Raymond Brown, sacerdote católico, por muito tempo membro da Pontifícia Comissão Bíblica.
Brown conclui assim a sua obra monumental sobre os evangelhos da infância: "Qualquer tentativa de harmonizar as narrações a ponto de fazer delas uma história coerente está fadada ao fracasso" ("La nascita del Messia" [O Nascimento do Messias], Assis, 1981, p. 677).
Ratzinger nem menciona Brown, mas justamente por isso a sua obra, apesar de algumas belas páginas de corte espiritual, vai ao encontro do destino prefigurado pelo grande biblista norte-americano.Acrescento que esperava que o Papa citasse na bibliografia um dos melhores livrinhos que li (bem, li poucos) sobre os quatro capítulos evangélicos em causa: "Dios ha enviado a su hijo? El misterio de Navidad", de Rudolf Schnackenburg (na Herder, original em alemão de 1990), que era padre católico e um dos maiores especialistas no Novo Testamento. Mas não afina pelo diapasão do Papa.
2 comentários:
Vito Mancuso "especialista"? Mas ele nem é biblista nem cristólogo? Só se for especialista em disparates e heresias.
De facto, na sucessão de frases que escrevi, dá para presumir que penso em Vito Mancuso como especialista na matéria em questão. Coisa que não é. Mas cita especialistas.
E outros têm escrito na mesma linha. Ou se não escrevem, pensam. E até portugueses.
Já agora:
"Se o interesse pelo livro fosse circunscrito àqueles que se ocupam do pensamento do seu autor, esse terceiro e conclusivo volume sobre Jesus seria até útil. Infelizmente, as coisas, com toda a probabilidade, ocorrerão de modo diferente. Isso acontecerá por causa do silêncio público (e da discordância privada) manifestada por muitos biblistas. Eles não se sentirão livres para falar e aceitarão sem replicar os golpes que, de modo brusco, Joseph Ratzinger inflige – nesse caso, com pouca humildade – contra estudos realizados com perspicácia e erudição imensos."
E é um especialista que escreve. Pode ler tudo aqui:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/515871-o-mundo-de-joseph-ratzinger
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