sábado, 14 de julho de 2012

Anselmo Borges: "A partícula de Deus"


Texto de Anselmo Borges no DN de hoje (aqui):

Para que a teoria-padrão da Física fosse validada, estava previsto, desde há cerca de 50 anos, o famoso bosão de Higgs, para dar massa às outras partículas. No passado dia 4, festejou-se no CERN, porque, mesmo que se não tenha a certeza total da descoberta da célebre partícula, houve um novo avanço científico no sentido de percebermos melhor o mundo e nos entendermos melhor a nós próprios. Foi um acontecimento histórico, a ponto de Stephen Haw-king sugerir a atribuição do Nobel a Peter Higgs, que teorizou sobre a existência do bosão.
Peter Higgs

A linguagem jornalística refere-se ao bosão de Higgs como "a partícula de Deus" - claro, os físicos não o fazem. A expressão, se não estou enganado, vulgarizou-se e teve êxito, a partir do título de um livro do Nobel da Física, Leo Lederman, que devia chamar-se The Goddamn Particle (a partícula maldita), por causa da dificuldade em observá-la, mas que o editor, temendo o impacto ofensivo da palavra, pediu para mudar. Seja como for, o bosão de Higgs não é Deus, como, em ignorância apressada e atrevida, sugeriu uma jornalista, quando, num noticiário de uma rádio nacional, atirou: foi descoberta "a partícula que substitui Deus".

Alguns pensam que esta e outras descobertas diminuirão a importância de Deus na compreensão do universo. Mas é o físico Carlos Fiolhais, da Universidade de Coimbra, que tem razão, quando diz que "não haverá consequências para as crenças religiosas, pois desde o tempo de Galileu que a ciência é uma coisa e a religião é outra".

A ciência e a religião não só não são incompatíveis como são perfeitamente compatíveis, desde que se perceba o âmbito e o método de cada uma. A prova está em que há cientistas não crentes e cientistas crentes. O que é preciso entender é que a ciência como tal não é crente nem ateia. É pura e simplesmente ciência, de tal modo que crentes e não crentes avançam para o domínio científico em pé de igualdade, com métodos científicos. A ciência não demonstra a existência de Deus, mas também não demonstra a sua não existência. Não pode fazê-lo, porque Deus não é objecto de ciência, Deus não é da ordem do verificável empiricamente.

No plano da ciência, a questão de Deus não se põe. O que se passa é que os cientistas também são seres humanos, com múltiplos interesses e pondo questões em vários âmbitos, para lá do domínio científico. Por outro lado, a realidade é infinitamente complexa e exige múltiplas abordagens. Depois, a razão é multidimensional, de tal modo que se foi percebendo que a religião não é hegemónica - entendeu-se, por exemplo, que a Bíblia não é um livro de ciência, mas um livro religioso e que, mesmo se 46% dos americanos continuam a crer que a Terra e os humanos foram criados por Deus há menos de dez mil anos, não pode ser lido à letra, pois exige uma leitura histórico-crítica -, como também se superou o positivismo cientificista do século XIX, que pensava ter resposta para tudo - os físicos hoje já não têm a pretensão de uma "teoria de tudo", no quadro de uma equação que tudo explicaria.

Há, portanto, o ser humano que enfrenta a realidade nos seus múltiplos planos e com variados interesses e com metodologias diferentes. Costumo dar um exemplo simples, quase ingénuo. É evidente que um botânico, um químico, um artista, um poeta, um jardineiro, um casal romântico, um administrador, não encaram todos da mesma maneira um belo jardim botânico. Trata-se do mesmo jardim, mas perspectivado de modos diferentes. Com a realidade globalmente considerada passa-se a mesma coisa.

Existem, pois, várias abordagens para a realidade, com metodologias diferentes. Depois da suspeita de que se encontrou o bosão que Higgs previra, a ciência continuará num caminho interminável de investigação. E, para lá das vantagens tecnológicas que o saber científico nos traz, é fascinante conhecer pelo simples gozo de saber. E lá estará sempre aquela pergunta radical: Porque há algo e não nada? Qual o sentido último de tudo? Aqui, ergue-se a resposta filosófica e religiosa, e há uns que acreditam e outros não. De qualquer modo, a religião não é necessariamente o asilo da ignorância e da superstição.

9 comentários:

Anónimo disse...

Belo! Era o Anselmo que devia ter ido ao "Prós e Contras" e não um qualquer amador. Tenho Dito!

Américo Mendes

Jorge Pires Ferreira disse...

Concordo consigo, Américo Mendes. O problema - não sei se será essa a razão por não vermos muito o prof. e p.e Anselmo Borges na tv - é que o Prós e Contras, como a televisão em geral (exceto uma ou outra entrevista com apenas uma pessoa - e dependerá muito do que o entrevistador quiser fazer), não é um bom local para desenvolver um raciocínio. Interessam mais a imagem e a frase sonante do que duas ou três ideias pertinentes e esclarecedoras expostas com princípio, meio e fim.

Anónimo disse...

Américo Mendes,

já me envolvi esta semana numa troca de palavras sobre esse "Prós e Contra". Tentando obter informações, aqui e ali entre conhecidos, posso garantir que uma das razões para a presença de um desses "amadores" (na sua designação) é o desejo que algumas pessoas têm em promover a presença do mesmo no "espaço público".

Fernando d'Costa

Anónimo disse...

Fernando: não li as suas palavras antes de aqui escrever. Mas o autor deste blog tem razão: o "Prós e Contras" convida, muitas vezes, pessoas à imagem da sua apresentadora: um verdadeiro fole intelectual (totalmente vazio por dentro a atirar jactos de ar decorados a correr).

Américo Mendes

Anónimo disse...

Pois é. Mas é a única (Fátima Ferreira) que ainda vai promovendo a Igreja. O resto é uma vergonha. E aqui infelizmente os leigos deixam muito a desejar, sobretudo nas matérias em questão no post. E depois falam dos padres e bispos. Marcelo Rebelo de Sousa, Bagão Félix e pouco mais. O resto... dá pena.

Anónimo disse...

Eu gostaria que a Igreja fosse promovida segundo os critérios do Evangelho e não segundo os critérios da moda que, se estiverem espelhados na Fátima Ferreira, são só maquilhagem ignorante. Para isso, mais valia não dizer nada. Não acha, ó anónimo das 2:20 PM?

Fernando d'Costa

Anónimo disse...

Mas a pergunta continua? Onde estão os leigos? O que tenho visto ultimamente é um Frei Ventura a pregar um discurso absolutamente pessimista.

Anónimo disse...

E quem disse que Fátima Ferreira é modelo para alguém? Eu pouco a aprecio em termos jornalísticos.

Unknown disse...

"Onde estão os leigos?" Não sei. Sejam criativos. Mostrem-se competentes. Dêem-lhes crédito e tempo de antena. Mas concordo consigo: o Ventura manda uns slogans rimados e pouco mais. Entre os leigos (e cá para o Norte onde vivo) aprecio mais um Jorge Dias (sim, o autor deste blog); um João Carlos Carvalho; um Alexandre Duarte; José Rui Teixeira. Mas os dois do meio são muito discretos (nem sei se o segundo tem algo publicado: só o ouvi uma vez na Católica do Porto o ano passado).

Fernando d'Costa

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