É urgente que a vida não seja só a acumulação do tempo e do seu cavalgar sonâmbulo
Gosto, mas gosto muito, que a primeira palavra de Jesus no
Evangelho de João seja uma pergunta (e seja aquela pergunta): “Que procurais?”
(Jo 1,38). Consola-me ir percebendo que o que sustenta a arquitetura dos
encontros e dos desencontros que os Evangelhos relatam é uma espécie de
coreografia de perguntas, um intenso tráfico interrogativo, construído a maior
parte do tempo a tatear, sem saber bem, com muitas dúvidas, muitos disparos ao
lado, muita incapacidade até de comunicar. Isso é uma âncora, por muito que nos
custe, pois uma vida só assente em respostas é uma vida diminuída, à maneira de
uma primavera que não chegou a ser. Não sei como vai rebentar em nós a
primavera, como se vai acender este reflorir que a natureza insinua, este
renascer que o gesto pascal de Jesus espantosamente (res)suscita na nossa
humanidade. Sei apenas que nas perguntas, mesmo naquelas que são difíceis e nos
estremecem, reencontramos a vida exposta e aberta, certamente mais frágil, mas
a única que nos permite tocar as margens de uma existência autêntica.
Todos somos habitados por perguntas e elas cartografam zonas
silenciosas, territórios de fronteira do nosso ser. Estes dias reencontrei a
pergunta de Pilatos (ainda no Evangelho de João): “O que é a verdade?”
(Jo18,38). E dei comigo a aproximar esta pergunta de uma das frases
emblemáticas de Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”(Jo 14,2). Sem
querer relativizar a natureza densamente dogmática do enunciado, dei comigo,
porém, a revisitá-lo em chave existencial. E era como se Jesus, mestre da vida
que incessantemente se reformula em nós, nos desafiasse a uma apropriação. Sim,
a uma apropriação. É necessário que perante a multidão dos caminhos percorridos
e a percorrer cada um de nós diga: “eu sou o caminho que percorro”. É decisivo
que as verdades que acordamos não sejam uma sobreposição, mas uma expressão
profunda do que somos: “eu sou a verdade”. É urgente que a vida não seja só a
acumulação do tempo e do seu cavalgar sonâmbulo, mas que cada um, pelo menos
uma vez, possa dizer plenamente: “eu sou a vida”. Acho que é disto que o
mistério pascal fala.
José Tolentino Mendonça
Copiei daqui.
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