O físico brasileiro Marcelo Gleiser (aqui aludido) foi entrevistado pelo jornal “Público” no dia 5 de Julho. A entrevista do jornalista Nicolau Ferreira tinha como título. "A ciência é uma narrativa humana como a literatura ou a pintura". Alterei a cor de partes que considero especialmente relacionadas com este blogue, visto que seria prejudicial truncar a entrevista.
A humanidade mudou as leis do Universo ao longo dos séculos, mas para o físico brasileiro Marcelo Gleiser isso não tira o compromisso que existe na busca da verdade através da ciência, é só o reflexo da capacidade incompleta e limitada com que olhamos para a natureza.
Marcelo Gleiser, 52 anos, físico teórico brasileiro radicado nos Estados Unidos. Dá aulas na Universidade de Dartmouth, New Hampshire, mas é também cronista na Folha de São Paulo, e está profundamente empenhado na divulgação da Ciência no Brasil. Em Portugal saiu o último livro escrito pelo cientista sobre o Universo, chama-se Criação Imperfeita (Círculo de Leitores). Fala sobre as forças físicas da natureza, a forma como o Universo poderá ter sido criado e a importância de sermos raros num cosmos aparentemente deserto. Mais importante, desmonta a procura de uma teoria unificadora na Física que tenta explicar todas as forças do Universo de uma só vez. Uma busca que defende estar enraizada na cultura científica e que tem origens monoteístas. Nesta tentativa unificadora, a Ciência cai no erro de generalizar os fenómenos naturais e esquecer-se das assimetrias. Todas as margaridas são semelhantes, mas nenhuma delas é idêntica a outra (disse ao P2 numa entrevista em Lisboa, para promover o livro), e a Ciência nunca vai conseguir olhar para tudo. É uma história em construção. Sem fim.
Diz que a Ciência é uma narrativa humana. Que limitações tem?
As pessoas têm a impressão de que a Ciência é a verdade absoluta. Que os dados científicos são incontestáveis e que tudo está correcto. Quando se estuda a história da Ciência, percebe-se que não é bem assim, a Ciência avança e cria informação à medida que o tempo vai passando. Ela vai ficando cada vez mais complexa e mais completa, mas nunca chega ao fim. O que era verdade no tempo de [Pedro Álvares] Cabral, que o Universo era estático com a Terra móvel no centro, era completamente diferente da verdade no século XVII ou da de hoje. A noção de verdade muda com o tempo. O Universo em que a gente vive vai-se transformando à medida que nós aprendemos mais sobre ele. Dessa forma, a posição do Homem no Universo e a compreensão de quem nós somos também mudam. O que eu tento no livro é desmistificar a Ciência, mostrar que ela é, na verdade, uma narrativa, uma construção profundamente humana, uma tentativa de compreensão de quem nós somos. A Literatura faz isso, a Pintura faz isso, a Ciência também está a fazer isso.
Como é que a cultura molda essa narrativa?
A cultura cria um contexto. As perguntas sobre quem nós somos, qual é a essência da vida podem ser as mesmas, mas as respostas dependem muito desse contexto. Voltando, por exemplo, à imagem de Cabral: no século XVI existia uma cultura completamente dominada pela teologia cristã, a visão do mundo era essencialmente religiosa e, dentro dessa visão religiosa, o Homem era um ser extremamente especial, era uma criação divina, e à medida que a Ciência foi avançando, essa visão foi-se transformando.
Richard Dawkins (cientista e autor de A Desilusão de Deus) utiliza a verdade científica para lutar contra a religião, argumento com o qual não está de acordo. Tem que ver com a Ciência ser uma narrativa?
Sim. Acho que Dawkins concordaria com essa noção de que a Ciência é uma narrativa humana. Espero, nunca conversei com ele sobre isso. No que diferimos profundamente é na atitude. Ele tem uma atitude em que a Ciência é a única forma de conhecimento e eu não acredito nisso, eu acho que a Ciência é uma forma de conhecimento, muito precisa, está ligada ao nosso entendimento do mundo, da natureza. A função da Ciência é descrever a natureza, descrever o mundo.
O que é que as outras formas de conhecimento dão ao Homem, como a religião?
Eu não diria que a religião é uma forma de conhecimento, mas a literatura ou a pintura, a música, a poesia, elas criam conhecimento de uma forma completamente diferente da Ciência. Elas constroem realidades que são paralelas à realidade científica. Na literatura não é preciso um compromisso com o real. Jorge Luís Borges ou Saramago criam realidades completamente fantasiosas mas que nem por isso deixam de trazer um elemento de verdade para a dimensão humana.
E essa dimensão é importante?
É fundamental. Dizem que a ficção, através da mentira, diz verdades. E a Ciência tenta sempre dizer verdades através da verdade. São propostas completamente diferentes de se alcançar a mesma coisa, que é uma maior compreensão do espírito humano.
Dawkins presume de mais dessa verdade trazida pela Ciência?
O que me incomoda em relação ao Dawkins é a sua posição absoluta. É um pouco fundamentalista. Esse fundamentalismo ateu sofre dos mesmos problemas do fundamentalismo religioso. Que é acreditar ser o dono absoluto da verdade. A posição do ateu é uma posição que logicamente não faz sentido. O que é que diz o ateu: diz que "eu acredito no não-acreditar". Como é que se pode acreditar no não-acreditar? Para Dawkins, Deus é completamente impossível. E apesar de concordar com isso - também não acredito em Deus ou no sobrenatural - cientificamente você só pode falar no que existe. A Ciência é muito boa para provar o que existe: electrões existem, planetas existem, estrelas existem, galáxias existem. Mas o que é que não existe? Sei lá! Então, eliminar radicalmente o que não existe usando a linguagem da Ciência: Deus não existe, fadas não existem, duendes não existem - também acho, mas não posso ser radical na minha atitude, prefiro manter a cabeça aberta e essa é a posição do agnóstico.
Diz que a procura de uma teoria geral na Física é uma ideia monoteísta. De onde vem?
Essa busca por uma unificação de tudo, por uma teoria final, que seria a soma de todas as teorias possíveis de como a matéria se organiza, que descreve as interacções entre as partículas da matéria, é uma noção essencialmente monoteísta. À medida que as religiões monoteístas foram ganhando força mais ou menos há 3000 anos, essa noção de que Deus é um criador de tudo, então tudo tem uma explicação única que volta a Deus. Essa ideia tomou muita força e entrou na Filosofia. Platão foi influenciado pelos pitagóricos, que defendiam que a natureza é matemática e que a função do filósofo era entender a construção matemática do mundo. Através dessa construção entender-se-ia a mente de Deus. Essa noção de que a natureza é uma ponte entre a mente humana e a de Deus torna a Matemática num instrumento teológico. O cientista passa a ser o intérprete da criação. Essa noção inspirou muitos cientistas. Por exemplo [Johannes] Kepler, no século XVII, foi uma pessoa muito influenciada por isso, e depois Einstein, mesmo que se tenha libertado dessa noção monoteísta do Deus autoritário, ficou com a ideia de que a natureza é matemática, e que pode ser compreendida de uma forma perfeita pela mente humana.
Essa ideia continua presente?
Sim. Por exemplo, existe a teoria das supercordas, a ambição máxima da Física moderna, unificar as forças da natureza numa teoria única. É a encarnação moderna desse sonho platónico de traduzir toda a existência em termos geométricos. Ela traz consigo essa bagagem cultural do monoteísmo, que há uma justificação única e central para tudo o que existe pelas ordens da Física. Para mim, essa noção é um preconceito filosófico influenciado por uma teologia de 3000 anos. Em termos práticos, se você olhar para o que está a acontecer nas descobertas da Física moderna, vê que existe uma tensão entre uma discussão completa do mundo, as simetrias da natureza e as quebras dessas simetrias. Então, criamos uma teoria simétrica, muito bela, e aí as experiências vão e - bum! - quebram essa simetria e mostram que é apenas aproximada. Isso é uma constante na história da Física.
Por que é que essa procura deixou de lhe fazer sentido?
Porque a Física é essencialmente uma Ciência empírica, baseada nos dados, nas experiências. Podemos querer construir teorias muito belas, mas no final quem vai dizer como é a natureza é a própria natureza, através de experiências. Comecei a perceber que, apesar do meu desejo adolescente, romântico, de construir uma visão única do mundo, baseada numa teoria unificada, a história dos últimos 50 anos da Física está a levar-nos a uma posição completamente diferente em que as simetrias são quebradas, que elas são aproximadas e que talvez essa insistência que nós tenhamos em criar uma teoria completa do mundo seja só um preconceito.
Na educação da Física, como cientista, é-se influenciado para a teoria final?
Para a teoria final e também para a confusão entre simetria como uma aproximação e simetria como uma verdade. Em Filosofia, você tem duas correntes, a Filosofia do ser, que é atemporal, não se transforma, e a do devir, do que está sempre a construir-se. E na história da Filosofia houve sempre uma espécie de crise, ou tensão, entre elas. A Ciência contém as duas. O ser - a conservação da energia, por exemplo, que é uma lei que existe independentemente do quando e do onde, e por outro lado o devir - todas as variações locais das coisas que vão acontecendo, em cada planeta, que dependem da história, de detalhes. Para mim, o que é interessante hoje é as forças que criam as diferenças, a origem das assimetrias.
O livro chama essas assimetrias logo para o título "Criação Imperfeita".
No livro, eu tomo cuidado ao dizer que não sou contra a unificação. Mas sou contra a ideia do abuso dessa noção. Para mim, a teoria final é completamente absurda. Pode falar-se em teorias que são parcialmente unificadas, como o electromagnetismo, mas mesmo essa, que é o paradigma da unificação, não é perfeita. Porque existem diferenças entre as propriedades da electricidade e do magnetismo. As unificações que vão ocorrendo vão ser sempre aproximadas, nunca vão ser perfeitas. E certamente nunca vão chegar numa teoria final. Basta ver como funciona a Ciência: através dos dados que colectamos sobre o mundo. Dependemos de telescópios, de aceleradores de partículas, etc. Esses instrumentos vão ficando mais precisos e poderosos à medida que a tecnologia vai avançando, mas eles têm limites de precisão. Como nós não temos uma visão total do mundo, a nossa descrição da natureza vai ser sempre limitada. A ideia de chegarmos a uma teoria que contém tudo não faz sentido, porque nunca vamos saber se a teoria está certa ou errada. Por isso eu falo em narrativa, a Ciência é uma construção que está sempre em andamento, ela não tem um ponto final.
Os próprios conceitos como electromagnetismo não limitam o modo como olhamos para a Física?
Eles não limitam como vemos a Física, eles são como a Física é. A Física é construída a partir desses conceitos porque ela é feita por nós.
A Física não é a natureza.
Exactamente. A Física é o que a gente pode dizer sobre a natureza. Aliás, não fui eu que disse isso, foi [Niels] Bohr (Nobel da Física em 1922). Idealmente, podemos descrever tudo sobre o mundo, e a posição mais concreta e realista é que infelizmente não é verdade, porque somos seres muito sofisticados, mas limitados. A noção de teoria final é tentar equiparar o Homem a Deus, e isso, para mim, é uma noção extremamente perigosa.
Uma das frases que mais repete no livro é. "Só sabemos o que podemos medir." Qual é o perigo das teorias impossíveis de serem testadas?
O perigo é levar à perda da credibilidade da Ciência. A força da Ciência está justamente no facto de que quando se diz que o Sol é uma estrela, que tem uma temperatura na superfície de 5800 graus, está a fazer-se uma asserção que se pode comprovar. Mas se se disser que vivemos num universo em que existem infinitos universos, mas que não se podem contactar esses múltiplos universos, então está a fazer-se uma asserção que não é científica, em que tudo é válido, e começa a discutir-se mais Filosofia do que Ciência. Essa noção de concreto da Física está a perder-se com a especulação um pouco exagerada dos físicos teóricos.
Essa especulação é recente?
Está pior nos últimos 20 anos.
Normalmente o nível da discussão ultrapassa o conhecimento comum.
É, mas por exemplo o [Stephen] Hawking escreveu um livro que faz asserções do tipo "a Ciência explica hoje a origem do Universo" e não é verdade. Existem modelos matemáticos, extremamente abstractos, que fazem previsões em relação à origem do Universo, mas dizermos que a Ciência explica a origem do Universo não é verdade. Passa-se ao público uma impressão de que sabemos muito mais do que sabemos, e isso faz com que a Ciência perca credibilidade.
Diz: "O cientista deve estar preparado para encarar as consequências do seu trabalho." Parece algo que pedimos aos políticos. Também devemos exigir isso aos cientistas?
A Ciência pode trazer o bem e o mal. Isso vê-se, por exemplo, na bomba atómica, na energia nuclear. Os usos das descobertas científicas em geral escapam das mãos dos cientistas, e vão ser utilizadas pelos políticos, pelos industriais, pelas grandes empresas, etc. Os cientistas têm que estar muito conscientes desse perigo e da aliança que têm com o poder.
Fukushima [acidente na central nuclear no Japão em Março último] é culpa dos cientistas?
Não. Os cientistas também não são culpados pela bomba em Hiroxima e Nagasáqui. Esse é o ponto.
Há coisas que devem estar fechadas aos cientistas e à Humanidade?
Mas quem vai definir isso? Não há como controlar a pesquisa científica, é uma espécie de caixa de Pandora. Destruir todas as bombas nucleares e apagar esse capítulo da humanidade - isso nunca vai acontecer. Porque já foi descoberto, pode voltar. O que tem que ser feito é uma maior consciencialização da população, dos políticos que são eleitos. Por isso é que o cientista não se deve dar ao luxo de ficar só na academia. Tem que se manifestar publicamente como intelectual. Tem que ter uma consciência ética do que está a fazer e quais são as possíveis consequências. Na Segunda Guerra Mundial, quando um grupo de cientistas foi trabalhar no projecto Manhattan para as bombas, eles estavam a responder ao medo que tinham que os nazis tivessem a bomba. Essa era a motivação principal. Mas quando a Alemanha se rendeu, o projecto tinha uma inércia tão grande que não conseguia parar. Transformou-se muito mais numa arma política, militar, do que numa descoberta científica. Os cientistas perderam o controlo e a bomba passou a ser uma propriedade dos políticos e militares. Esse é um risco que vai sempre acontecer.
1 comentário:
Entrevista notável, e que bom apanhá-la aqui.
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