Passa-se num monte a cena do evangelho que ouvem os que forem à missa no próximo domingo.
“O seu rosto [de Jesus] ficou resplandecente como o sol e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz. E apareceram Moisés e Elias a falar com Ele. Pedro disse a Jesus: «Senhor, como é bom estarmos aqui! Se quiseres, farei aqui três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias». Ainda ele falava, quando uma nuvem luminosa os cobriu com a sua sombra e da nuvem uma voz dizia: «Este é o meu Filho muito amado, no qual pus toda a minha complacência. Escutai-o». Ao ouvirem estas palavras, os discípulos caíram de rosto por terra e assustaram-se muito. Então Jesus aproximou-se e, tocando-os, disse: «Levantai-vos e não temais»” (de Mt 17, 1-9).
Sendo esta uma das páginas dos evangelhos mais comentadas (alguns tópicos: a transfiguração aparece nas missas a meio da quaresma para animar; aponta para a ressurreição; é metamorfose em grego; o monte é lugar de revelação; Moisés é a tradição legal; Elias é a profética; estão lá os três discípulos do costume; as tendas têm a ver com a festa judaica dos tabernáculos e não com o desejo de uma noite de campismo, embora as coisas não estejam assim tão distantes…), realço dois aspectos:
a) Deus interrompe Pedro. “Ainda ele falava…” Para não dizer mais asneiras, mais vale interromper. Pedro queria três tendas, uma para Moisés, outra para Elias e outra para Jesus. Como se fossem iguais. Como se estivessem ao mesmo nível. Rafael não caiu no mesmo erro e pintou a cena com Jesus mais elevado (ver imagem acima). Depois de ter feito o brilharete de dar a resposta certa sobre o “quem dizem que eu sou?” (é a página anterior do evangelho), Pedro mostra que às vezes é mais prudente estar calado. Pedro é a figura do evangelho com quem mais nos podemos identificar. Tão duro e tão calhau como qualquer um de nós. Tão entusiasta e tão medricas. Deus diz, cortando a palavra a Pedro e restabelecendo a hierarquia, que é o Filho quem deve ser escutado.
b) Primeiro queriam montar tendas, depois quase cavam um buraco. Medo. Medo de quê? Da voz de Deus? O medo é um dos fantasmas – ou demónio? – mais combatidos por Jesus nos evangelhos. Jesus dissolve-o dizendo: “Levantai-vos. Não temais”. “Levantai-vos” é o mesmo que “ressuscitai”.
O que fica daqui? Sigo José António Pagola, que fala dos cristãos e dos medos do ser humano no mundo de hoje, que tanto fez para controlar a vida, mas a quem tudo lhe mete medo. Fico pelos “medos da Igreja”, nos quais mais me revejo:
É, provavelmente, o medo o que mais paralisa os cristãos no seguimento fiel de Jesus Cristo. Na igreja há pecado e fragilidade, mas há sobretudo o medo de correr riscos. Começamos o terceiro milénio sem audácia para renovar criativamente a fé cristã. Não é difícil assinalar alguns destes medos.
Temos medo ao novo, como se “conservar o passado” garantisse automaticamente a fidelidade ao evangelho. (…) O que move a Igreja nestes tempos não é tanto um espírito de renovação, mas antes um instinto de conservação.
Temos medo de assumir as tensões e conflitos que traz consigo procurar a fidelidade ao evangelho. Calamo-nos quando devíamos falar; inibimo-nos quando devíamos intervir. Proíbe-se o debate de questões importantes para evitar posicionamentos que podem inquietar; preferimos a adesão rotineira, que não traz problemas nem indispõe a hierarquia.
Temos medo da investigação teológica criativa. Medo de rever ritos e linguagens que não favorecem hoje a celebração vida da fé. Medo de falar dos «direitos humanos» dentro da Igreja. Medo de reconhecer praticamente à mulher um lugar mais de acordo com o espírito de Jesus.
Temos medo de antepor a misericórdia acima de tudo, esquecendo que a Igreja não recebeu o «ministério do juízo e da condenação», mas sim o «ministério da reconciliação». Há medo de acolher os pecadores como Jesus fazia. Dificilmente se dirá hoje da Igreja que é «amiga dos pecadores», como se dizia do seu Mestre.
Segundo o relato evangélico, os discípulos caem por terra «muito assustados» ao ouvir uma voz que lhes diz: «este é o meu Filho muito amado… Escutai-o». Mete medo escutar apenas Jesus [nota do blogue: pela lógica do texto, esperar-se-ia que aqui fosse “Deus” em vez de “Jesus”; não posso confirmar no original]. É o próprio Jesus que se aproxima, toca-lhe e diz-lhes: «levantai-vos e não tenhais medo». Só o contacto vivo com Jesus nos podia libertar de tanto medo (páginas 171-2 de "O caminho aberto por Jesus").
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