Por estes dias tem sido repetido até à exaustão que o “Papa iliba judeus” da morte de Jesus Cristo no livro que vai ser lançada no dia 10 de Março. A coisa apresenta-se como novidade.
Quando eu andava na catequese, e andei na catequese toda, nos anos 70-80, não me lembro uma única vez de me terem dito que os judeus mataram Jesus. A ideia que ficou foi que “os maus mataram Jesus” e, numa teologia que hoje é contestada, mas que a mim não me causou qualquer trauma, mesmo que nela pensasse, acrescentava-se que quando nos portávamos mal estávamos a contribuir para as dores/morte de Jesus.
Um dia, numa viagem a Fátima, daquelas que demoravam o dia todo e incluíam uma passagem pela Nazaré (isto foi nos anos 70, ainda os autocarros levavam bagagem no tejadilho), tive a confirmação de quem eram os maus: os romanos com capacete, saias e lanças. Se estava pintado no interior da colunata do Santuário, não podia estar errado. Portanto, quando dizem que a Igreja pensa até 10 de Março de 2011 que os judeus é que mataram Jesus e a partir desse dia ficam ilibados pelo Papa, a questão a fazer é: qual Igreja? Há muitas décadas que os católicos não pensam assim. Isso ficou mais que dito e redito no Vaticano II, se dúvidas havia.
Colunata de Fátima nos anos 1970.
A via-sacra que refiro fica nas costas do fotógrafo
Como resumo dos capítulos que falam da traição, julgamento, condenação e morte (podem ser lidos aqui), “Papa iliba judeus” é mau resumo. Em resumo, o que diz é que o termo “judeus”, que é mais usado pelo evangelista João, tem de ser entendido como “autoridades judaicas”, a aristocracia do templo, os saduceus. E essas não são ilibadas.
Escreve Ratzinger/Bento XVI:
Quem insistiu para que Jesus fosse condenado à morte? Nas respostas dos Evangelhos, há diferenças sobre as quais devemos reflectir. Segundo João, eles são simplesmente «os judeus». Mas este termo, em João, não indica de modo algum – ao contrário do que o leitor moderno talvez se sinta inclinado a interpretar – o povo de Israel enquanto tal, e menos ainda reveste um carácter «racista». Em última análise, o próprio João, quanto à nacionalidade, era israelita, tal como Jesus e todos os seus. A comunidade primitiva era inteiramente formada por israelitas. Em João, o referido termo tem um significado específico e rigorosamente limitado: designa a aristocracia do templo. Portanto, no quarto Evangelho, o círculo dos acusadores que pretendem a morte de Jesus é descrito com precisão e claramente limitado: trata-se precisamente da aristocracia do templo, com alguma excepção, como deixa entender a alusão a Nicodemos (cf. 7, 50-52).
Jesus foi condenado num processo em que ambos (autoridades religiosas e autoridades políticas) querem condená-lo sem assumir as responsabilidades. Já alguém falou em condenação e morte virtuais. A aristocracia do templo não suporta as atitudes de Jesus (o sábado, o ser Filho de Deus, as regas da pureza transgredidas, as ameaças ao templo…). É blasfemo. Condena-o, mas não quer derramar sangue. Os romanos (não estamos a falar dos habitantes de Roma, estamos a falar das autoridades romanas na Palestina, não vá o Papa um dia ter que ilibar os habitantes do Império) não querem condená-lo, mas vêm no título “rei dos judeus” uma atitude de subversão. Cá está um bom motivo. Rebeldia. Ou seja, para o poder religioso, é blasfemo. Para o poder político, é subversivo. O poder religioso rasga as vestes e entrega-o ao poder político que, apesar de lavar as mãos, mata-o. Quem tem responsabilidades nisto? Em todo o caso, o poder. (O processo faz lembrar a Inquisição. O poder religioso julga e condena. O poder político aplica a pena, já que os religiosos não podem sujar as mãos.)
A propósito deste nova questão judaica, vale a pena ler a entrevista do “Il manifesto” (jornal italiano, de esquerda) a Amos Luzzatto, presidente da União das Comunidades Judaicas Italiana (aqui).
Diz Amos Luzzatto:
Só sei que Jesus foi morto na cruz e que se tratou de uma execução capital tipicamente "romana". De resto, também eram romanos os executores materiais. Os judeus estavam "ocupados", a autoridade era romana. Certamente, entendo que, depois, o cristianismo tenha escolhido Roma como o seu centro propulsor, mas Jesus foi morto pelos romanos.
O jornalista insiste. Insiste. Insiste. O judeu tem pouco a dizer. Não há nada de novo. Só falta o jornalista pedir: “Por favor, mostre admiração, mostre indignação”. Mas o que Luzzato diz é: “Para mim, tudo continua como antes”.
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