Texto de Anselmo Borges no DN de hoje.
Muitos tentaram a escala. Agora, leio-a em Leonardo Boff, no Fraternizar. Comprimindo os mais de 13 000 milhões de anos do universo num ano cósmico, ficamos espantados com os resultados do cálculo para o aparecimento dos seres até nós.
No dia 1 de Janeiro, ocorreu o Big Bang. No dia 1 de Março, surgiram "as grandes estrelas vermelhas que depois explodiram e, dos seus elementos, lançados em todas as direcções, formou-se o actual universo". No dia 8 de Maio, surgiu a Via Láctea, uma entre milhares de milhões. No dia 1 de Outubro, nasceu a Terra. No dia 29 de Outubro, a vida irrompeu no seio de um oceano primevo. A 21 de Dezembro, apareceram os peixes. A 28 de Dezembro, às 08.00, os mamíferos. No mesmo dia, às 18.00, voaram os pássaros. No dia 31 de Dezembro, às 17.00, nasceram os nossos antepassados pré-humanos, os antropóides. No mesmo dia, às 22.00, entra em cena o ser humano primitivo, o australopiteco. No mesmo dia, às 23.00, 28 minutos e 10 segundos, surgiu o ser humano de hoje, o sapiens-sapiens, com consciência reflexiva. No mesmo dia, às 23.00, 59 minutos e 6 segundos, nasceu Jesus Cristo. No mesmo dia, às 23.00, 59 minutos e 59,59 segundos, viemos nós ao mundo. Impressionante, não é?
A conclusão que Boff tira é "desbancar o antropocentrismo", aquela visão que dá valor intrínseco apenas ao ser humano, que coloca o homem no centro de tudo e tudo ao seu serviço. Ora, o homem aparece inserido no todo do cosmos, na companhia de todos os seres, constituídos pelos mesmos elementos cósmicos.
Mas há outra conclusão que se impõe e que é preciso sublinhar hoje, quando se pretende nivelar o homem pelos outros animais. Afinal, o homem é o último, mas único no seu ser: é nele que a natureza e o seu processo tomam consciência de si. Enquanto um eu, consciência reflexa, que não só sabe, mas sabe que sabe, que se sabe enquanto único, é um sujeito contraposto a tudo e, assim, de algum modo, fora da natureza. Como escreveu Roger Scruton, no fosso que surge de, neste mundo, "não ser deste mundo", o homem vive a experiência da transcendência e da solidão metafísica.
Pascal disse-o de modo pregnante: "O homem não passa de uma cana, a mais fraca da natureza; mas é uma cana pensante. Para esmagá-lo, não é preciso o universo inteiro armar-se: um vapor, uma gota de água, basta para matá-lo. Mas, quando o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que o que o mata, pois sabe que morre e conhece a vantagem que o universo tem sobre ele; o universo não sabe nada disso".
O homem autopossui-se, é livre. Volta R. Scruton: "Cães, macacos e ursos têm desejos, mas não fazem escolhas". Depois e sobretudo, o pensamento é linguisticizado e linguisticizante - o homem é o animal que tem linguagem (Lógos: razão e linguagem) -, e, por isso, discutimos, debatemos e somos capazes de optar contra os nossos desejos imediatos.
Pela linguagem, argumentamos abstractamente, levantamos hipóteses científicas, erguemo-nos acima do aqui e do agora e, assim, exprimimo-nos sobre o passado e o futuro, sobre o provável, o possível e o impossível. Pelo diálogo, criticamos e justificamos tomadas de posição, crenças e atitudes. Somos capazes de levantar edifícios jurídico-políticos para decidir sobre pleitos e construir a pólis segundo o ideal da realização comum na justiça.
Outra vez Scruton: "Nenhum animal é capaz de temer algum acontecimento hipotético, invejar, estimar ou dar muito valor a um indivíduo que nunca tenha conhecido, sentir-se ciumento do passado da sua parceira ou apreensivo pelo futuro dela." O erotismo está ausente.
As questões filosóficas e religiosas estão completamente fora do horizonte da animalidade. Porque há algo e não nada? Deus existe ou não? Tudo é absurdo? Há um sentido último? Com a morte, acaba tudo? Donde vimos, para onde vamos? O que é que nos espera? O que somos?
Precisamente por sermos o que somos, somos responsáveis pela natureza e pelo seu futuro ameaçado. Vimos dela, devemos cuidar dela.
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