Jean-Luc Nancy
“O «bem-aventurados» do Evangelho não quer tanto dar felicidade ou satisfação quanto indicar um caminho para sair da angústia. As Bem-aventuranças não designam felicidade, mas um comportamento, uma disposição geral da vida humana que foge ao mesmo tempo da angústia e da resignação”, diz o filósofo francês Jean-Luc Nancy ao jornal “La Croix” de 23 de Julho de 2010.
É uma fonte de água geladinha esta entrevista sobre as Bem-Aventuranças no meio destes dias tórridos (hoje nem tanto). E dias eclesialmente confusos. Só sobre as Bem-Aventuranças. Fala de limpidez e pureza.
O filósofo diz que não é um texto que tenha por hábito frequentar. Ele é mais Kant, Hegel, Kant, Heidegger e Lacan. Mas fala das Bem-Aventuranças como não vi mais ninguém nos tempos recentes. No início parece que já conhecemos o trajecto da interpretação. “Boas intenções adocicadas”. Mas como vem num jornal católico é de supor que a interpretação não seja tão redutora. “Algo radicalmente diverso”.
Jean-Luc Nancy: “Digamos que o entendo principalmente como uma promessa de felicidade, mas que sempre contém o risco de ser uma falsa promessa. É certamente o texto bíblico para o qual me ponho imediatamente numa perspectiva crítica e desconfiada, porque [o texto d] as Bem-aventuranças tem todas aquelas características daquela palavra que dá alívio, que lapida as arestas, que elimina os obstáculos. Concentram, a meu ver, quanto há de difícil e de que suspeitar na mensagem cristã. Vê-se nas mesmas demasiado facilmente uma “boa vontade”, cheia de boas intenções que ficam longe daquilo que, com Kant, se pode definir uma “vontade boa”. As Bem-aventuranças colocam-nos sempre diante de um dilema: ou se trata de um pacote de boas intenções adocicadas, deveras edulcoradas, que procuram seduzir os leitores e os ouvintes com uma espécie de entorpecimento de sua vigilância, como um ópio dos povos particularmente poderoso, ou então se trata de algo radicalmente diverso...”
O “algo radicalmente diverso” está nisto: “As Bem-aventuranças, todas juntas, são o amor. E o amor cristão é um paradoxo completo. É o impossível por excelência e, ao mesmo tempo, como diz Freud, é a única resposta que está na altura da violência humana”.
E nisto, sobre o “coração puro”: “A purificação do coração é a purificação de todos os pesadumes, de todos os domínios e, no limite, de todos os significados do mundo. O “coração puro” é aquele que se mantém à distância de toda a máquina do mundo, o que não significa que se mantenha “fora” do mundo. Nem é atraído pela máxima recompensa que poderia consistir neste “ver Deus”, como forma de participação no poder ou no domínio, ligada ao desejo de ser admitido junto a Deus. Não se é “feliz” por uma recompensa, o que continuaria sendo da ordem do “mundo”, mas se é “feliz” de não estar encerrados “dentro”.
Não sei se o coração de Jean-Luc Nancy é puro. Mas é relativamente novo. Pelo menos nele. No início dos anos 1990, teve problemas com o coração original e ganhou um novo. E quando recuperava, teve de lutar contra um cancro. A história deste período contou-a em “L’intrus”. Isto não é dito na entrevista, mas permite olhar com mais acuidade para o final da entrevista:
“Sem dúvida, para compreender o que é um «coração puro» é preciso voltar àquele amor que consiste em ver o outro como outro. Trata-se precisamente de ver, isto é, de estar na relação, sem nada que se possa agarrar. Não se «vê» um objecto, se «vê» uma abertura, uma evasão em direcção ao outro. O que requer o amor senão uma purificação do coração? Uma purificação das minhas expectativas, para que eu possa ver o outro como outro. É verdadeiramente através do cristianismo que o amor se torna este reconhecimento da absolutez integral da pessoa. O amor remete àquilo que nós absolutamente não podemos agarrar. Talvez seja isto «ver Deus». Não ver um ser atrás de outros seres, mas ver que todo ser é absoluto, incomensurável”.
A entrevista foi traduzida para português aqui.
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