Anselmo Borges, no DN de hoje, volta ao tema do trabalho. Texto da semana passada aqui.
É um paradoxo. As pessoas que trabalham, ali pela quinta-feira, já começam, aliviadas, a desejar umas às outras bom fim-de-semana. Cá está a constatação do trabalho como maçada e sofrimento. Mas, por outro lado, de vez em quando, lá volta o debate sobre a diminuição do número dos feriados e a necessidade de encostá-los à segunda ou à sexta-feira. Porque é preciso trabalhar e produzir mais. Por causa da concorrência e da crise.
É sobre isso que queria reflectir hoje, começando por esclarecer que até posso ser favorável à diminuição do número de feriados, mas não concordo com que passem automaticamente para a segunda ou para a sexta-feira. A razão dessa oposição não está propriamente na defesa dos dias santos da Igreja Católica, mas essencialmente na antropologia e na simbólica dos feriados.
É verdade que o trabalho tem essa dimensão de esforço e sacrifício. Só quem nunca trabalhou é que o não sabe. Por isso, os gregos associavam-no aos escravos - daí, a expressão "trabalhos servis". A palavra deriva de tripalium (três paus), instrumento romano de tortura. O livro do Génesis põe na boca de Deus: "Ganharás o pão com o suor do teu rosto."
Mas, por outro lado, também se não pode esquecer que o homem se realiza pelo trabalho. É pelo trabalho que o homem arranca à natureza aquilo de que precisa e a torna habitável, domina a natureza hostil, dá-lhe rosto humano e, ao transformá-la, transforma-se a si mesmo e humaniza-se. Pelo trabalho, participamos no esforço comum de realização da sociedade, disciplinamo-nos e configuramos, concretamente numa profissão, a identidade própria, e a humanidade vai erguendo a sua história.
Aqui, surge o feriado e a festa, cujo sentido originário se esbateu ou perdeu na actualidade. O nosso feriado e festa têm a sua raiz no latim feria e (dies) festus (dia festivo). Os dois termos têm a ver com a interrupção das actividades quotidianas e profanas, para entregar--se às festividades em honra do deus. O tempo estruturava-se à volta das festas religiosas, que ritmavam o calendário, com a distinção do tempo sagrado e do tempo profano. Ninguém aprofundou melhor esta questão do que Mircea Eliade: a festa faz mergulhar no tempo sagrado, reactualizando o tempo originário e fundante e, assim, regenerando e dando sentido ao tempo quotidiano.
É certo que hoje, por causa da secularização e do ritmo do trabalho, com excepção das pessoas muito religiosas ou ligadas à política, se esqueceu o sentido dos dias feriados, religiosos ou civis, de tal modo que o tempo aparece, assim, homogeneizado ou então a festa não ultrapassa a simples celebração do aniversário, do final do curso... ou a suspensão do trabalho para ter tempo livre, relaxar, dormir, estar com a família e os amigos.
Num país em que não há a cultura do trabalho, julgo ser fundamental mentalizarmo-nos para a necessidade de responsabilidade no trabalho - não é emprego e não trabalho que se procura?, de educação e formação excelentes - o nosso problema não é tanto o número de horas de trabalho, pois andaremos na média europeia, mas a produtividade, de iniciativa, de boa gestão - porque somos melhores a trabalhar no estrangeiro do que em Portugal?, de justiça, de estímulos salariais.
Mas o ser humano não se esgota no trabalho e na produção. E um dia feriado é isso mesmo: um dia festivo que tem a sua finalidade em si mesmo, valendo, portanto, por si mesmo, e não para restaurar as forças para voltar a trabalhar. É da sua essência ser um acontecimento não programado: é um "luxo", algo que surge como uma "graça" inesperada. Para que o homem se lembre de que é criador festivo e livre e não besta de carga.
Seja como for, não se pode esquecer que o homem está sujeito a ser dominado pelo que Ionesco chamava a contradição - como Adriano Moreira, penso que não há contradição - entre "a inutilidade do útil", que é a sociedade do trabalho e consumista, e "a utilidade do inútil", que são as artes e os valores, o exercício da liberdade de se ser humano.
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