Segundo excerto (o primeiro, aqui) da entrevista do DN a Paula Rego. Sobre medos, mulheres, bruxas e o diabo.
A infância está sempre na sua mente?
Sou eu. Está tudo na minha cabeça porque já passei por lá.
Por isso é que não consegue pintar à noite?
Tenho medo! Não consigo concentrar-me porque tenho muito medo do escuro.
De que tem medo no escuro?
Tenho medo das bruxas e à noite não se pinta porque é para dormir. Pinta-se durante o dia, que é quando a gente trabalha, e com um horário de escritório... Mas já me levantei da cama para mudar um quadro que estava em frente a mim e de que não gostava. Foi a única vez.
Mas tem medo das bruxas?
Não tenho medo das bruxas, tenho medo do Diabo.
É por isso que pinta cornos nalguns desenhos?
Mas esta exposição não tem cornos!
Nesta não.
Pintava esses cornos há muito tempo, mas agora já os não faço porque tenho mais medo do Diabo agora do que tinha, de modo que já larguei essas coisas todas. Mas a gente nasce com isso, lá em Portugal, em pequenina, contam-nos histórias extraordinárias! As coisas antigas, como a mulher que cortou a maminha para dar de comer ao marido. E ele disse assim: "Ai que bom que isto é." No dia seguinte, ela diz: "Tens aqui outro guisadinho de que vais gostar muito." Ela tinha cortado o outro peito, ele comeu aquilo com muito prazer e depois disse assim: "Mulher, estás com a camisa toda cheia de sangue!" Ah, foi porque o que tu comeste foram os meus peitos, fiz um guisado para ti. E ele: "Que estúpida, agora temos de começar a comer as crianças!"
Mas as crianças fugiram?
Ao ouvirem isto, fugiram. A mulher é que ficou sem tetas.
Acha que estes contos são invenções ou uma justificação de certos actos?
Não eram só invenção. Eram verdade.
Mas as mulheres não iam cortar o peito para guisar...
Também não sei. Mas capazes disso eram elas. Somos nós!
Eram ou ainda são?
Acho que se fazem muitas coisas para pessoas que é suposto dizer que se ama, que não se fariam por qualquer outra razão.
A Paula é feliz?
Não.
Porque não?
A minha barriga. Sofro disso... Quando me sinto melhor - o diabo seja cego, surdo e mudo [bate na madeira] -, é quando estou a desenhar. Ao fim de um dia de trabalho de desenho, sinto-me normal e bem. Mas feliz?... Gosto muito, muito de trabalhar, de fazer gravuras e essa coisa toda. Ai disso gosto!
Gosta muito de trabalhar porque esquece o Diabo e as maldades todas?
Não esqueço nada, eu estou a fazê-lo! Estou a fazer as coisas de que eu tenho medo.
É quase exorcismo?
Se fosse, era bom.
Um dia destes tem de mandar fazer um bruxedo para eliminar esses medos todos...
Não gosto nada dessas rezas, ainda faz pior! O melhor é fazer bonecos!
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