Texto de Pedro José, Chapadinha (Brasil), 18-06-2010. Retirado daqui.
José Saramago (1992-2010), aos 87 anos, morreu um justo: provocador laico, profeta ateu
Como soube da noticia da morte do José Saramago. Lendo on-line, curioso Saramago já estava on-line também: “Morreu Saramago. Agora já sabe que existe Aquilo que negou. Se não existir, não sabe nem deixa de saber.” Estava escrito no blog do meu amigo, companheiro de estudos teológicos.
Num tempo em que acreditava piamente na investigação da ciência teológica, quando em 1991, lançou o seu Cristo excessivamente humanizado no “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, - o evangelho do Saramago -, eu estudava em Coimbra, e fui com dois companheiros, em número de dois a memória vai falhando, à sessão pública de apresentação do romance, envolvido em polemica gratuita. Não fiz perguntas. O meu colega fez uma pergunta de dimensão teológica, sobre a questão dos gêneros literários, e a ignorância religiosa de Saramago me impressionou sobremaneira. Pensei comigo um gênio perdido no seu narcisismo. Recolhi o seu autografo no romance que li e depois que o li com muita sofreguidão... vendi-o a outro colega de estudos. Hoje estou quase arrependido já comprei outra edição de bolso, na Editora Companhia de Letras, para talvez reler na minha futura “dispensa laboral”.
Além dessa primeira leitura traumática, li todas as suas entrevistas que achei na imprensa. Li também “Todos os Nomes” e mais uma obra que não lembro agora. Ao todo três obras completas... que segundo os críticos nem serão futuramente as mais importantes. Espero um dia poder ler os seus Ensaios (Cegueira e Lucidez). Coisas de leitor endividado. Nessa qualidade gostava do Saramago, na sua eterna dívida para com o Transcendente e pela ausência exagerada da pontuação explícita (implicitamente havia sempre pistas e indicativos senão seria o caos hermenêutico...), talvez aí encontra uma pequena empatia pela dificuldade imensa que tenho ao pontuar os textos que vou tentando escrever.
Era um provocador nato. Sabia tirar partido disso como ninguém. Por essa razão só me consola a eterna provocação mútua: nunca mereceu o prêmio Nobel... foi uma fuga de (in)formação da academia sueca. Lamentável, pelo menos, por uma questão de justiça, existiam três nomes na sua frente: Miguel Torga, Sofia de Mello Breyner ou Agustina Bessa-Luís.
Como mau aprendiz de “teólogo no fio da navalha”, demonstrou ser uma aberração completa, as entrevistas sobre a obra Caim foram gritantes. A sua e nossa inteligência não mereciam tanto. Falta da mais elementar sensibilidade. Seu ateísmo, supostamente radical, não ajuda os bons ateus..., quanto mais os maus crentes. Afirmam escrevia bem. Em termos de imaginação literária, sim. Nisso sua criatividade era exemplar... Era quase um gênio! Embora existisse sempre excessivo marketing, à volta do lançamento das obras e aparições em público. O seu profetismo era o do ateu convicto e vai-nos fazer alguma falta dialógica, embora ele só dialogasse com o seu próprio umbigo.
Nunca o vi crescer em pensamento e abertura religiosa. Um disperdício notável. Tinha os seus inimigos de culto, sempre escoltando pelos seus acólitos, fiéis servidores e propagandistas dos seus dogmas inquestionáveis. O seu telhado não era de vidro, o do próximo era! Deveria ser enterrado em Lanzarote pois decidiu viver ilhado..., como ilhado deveria ser sepultado, em coerência absoluta até ao fim.
Releio as suas justas palavras: "... a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça.Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinônimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em ação, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste" (José Saramago).
Perdi um inimigo virtual. Vou rezar respeitosamente por ele na missa de hoje, só pela sua dimensão corporal, a mente e o espírito dele não precisam!? Seja cumprida a justiça do corpo. Morreu um justo incompreendido por si mesmo!
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