"No meu entender a Igreja Católica entrou em declínio a partir do momento em que deixou de acreditar em prodígios e, portanto, de os praticar. O Papa ainda frequenta Fátima, certo, mas vai lá como quem visita uma tia doente. Nos dias de hoje nenhum sacerdote daria o menor crédito a um pastorinho que lhe dissesse ter visto a Virgem Maria dependurada de uma oliveira. Nos dias de hoje nem há mais pastorinhos. Um pastorinho já é quase uma aparição.
O Brasil, o maior país católico do mundo, é também aquele que mais devotos perde todos os anos.
Porquê?
Porque os devotos exigem milagres. Os devotos transferem-se, com o seu dízimo, o seu coração generoso, para as igrejas evangélicas, cujos bispos exorcizam demónios, devolvem a vista aos cegos e o movimento aos paralíticos. Uma Igreja é, na sua essência, abismo e mistério. Pura magia. Um sacerdote que não seja capaz de operar prodígios tem tanta credibilidade, tanta serventia, quanto uma cozinheira que não saiba arquitectar um bom bobó de camarão. Ao contrário do que propagam os católicos moderninhos, Fé e Ciência não são compatíveis. A Ciência veio destruir a Fé. Ao desculpar-se perante Galileu, João Paulo II abjurou. Achei uma vergonha, aquilo. Uma enormidade".
Excerto da crónica “Nelson Rodrigues, Papa, samba e futebol”, de José Eduardo Agualusa, na “Ler” de Junho de 2010.
Há textos feitos de afirmações verdadeiras que transmitem uma ideia falsa no seu todo. Este, feito de informações falsas (a Igreja pode estar em declínio na Europa, mas não no mundo; poucos devotos exigem milagres; a tensão entre Ciência e Fé é salutar para ambas; o Para apenas foi humilde…), transmite uma ideia verdadeira: a perda de encanto em relação à Igreja Católica.
Claro que, quanto a mim, a Igreja teria mais a perder se voltasse a ter uma credibilidade fundada em milagres, se desse o seu aval a qualquer aparição, se quisesse dominar a Ciência. Perderia em primeiro lugar para a questão da verdade. Mas não deixa de ser real que por vezes se afirma uma tal continuidade entre o que é ser católico e o homem / mulher com sólida formação moral que se perde o significado do cristianismo católico. Dilui-se a diferença cristã.
Outra forma de começar o texto de Agualusa seria: “No meu entender a Igreja Católica entrou em declínio a partir do momento em que deixou de acreditar no inferno e, portanto, de o anunciar”. Sem medo do inferno, sem inferno, para que ser crente, católico? Para quê seguir uma moral exigente? E no entanto, nem o medo nem o desejo de espectáculo (os prodígios, os milagres) devem ser os motores da fé.
Sobre o inferno, aliás, há uma frase admirável de Santo Agostinho, cito de cor: “Se amas a Deus com medo do inferno, não és um herói; és um cobarde”. E outra do Padre António Vieira, que dá – parece-me – o sentido genuíno do que é ser cristão neste mundo (cito de cor; note-se que a frase tanto pode ser interpretada no sentido de Cristo ser um ópio como no sentido de ser o que realmente dá força aos cristãos nos infernos intramundanos): “Quem está com Cristo está no paraíso, mesmo que esteja no inferno”. Não é de milagres que o cristão precisa. É de Cristo.
2 comentários:
Caro Jorge Pires Ferreira,
Antes de mais, parabéns pelo seu blog! Sempre que posso, passo por cá.
E felicito-o pela boa recolha e selecção de todas as publicações, assim como as suas anotações e comentários! Muito obrigado pelo seu contributo!
Desta vez, gostaria de fazer um pequeno comentário ao seu comentário.
Concordo com o desencantamento, mas não em relação à Igreja Católica, mas sim a Cristo.
E até acho que Agualusa, apesar da sua conversa meio disparatada, tem razão quando diz algo como - hoje, nem os milagres dariam aso a qualquer tipo de espanto...
Este sintoma visto de forma mais séria, acontece a nível geral: no cristianismo (não só no catolicismo), na política, nas artes, na sociedade, na psicologia, na ciência, etc...
E não confundo espanto com euforia ou infantilidade.
Não percebi se considera que se deva anunciar o inferno ou não... Eu acho que não se devia. Aliás, devia-se era anunciar o Céu! (a ressurreição de Cristo, como Bento XVI disse em Lx)
Independentemente disso, o inferno na sua existêncialidade mais simples é o apelo de Jesus a sermos vigilantes, pois claro está, nunca se sabe quando vem o ladrão. Mas como sabe, se ficarmos por aqui, continuamos a não ser diferentes dos fariseus, dos escribas, dos doutores da Lei, e até, dos moralmente bem formados (ocidentalmente correctos).
Não é a diferença que se dilui... ela está lá, em Cristo, o cristão é que anda diluído.
E perdoe-me a provocação, mas até vou mais longe...
Creio que ainda está por se compreender, em muitos ambientes, qual é o verdadeiro significado desta passagem: “perder a vida para a ganhar”... Frase dita por Jesus em todos os evangelhos, com as suas nuances próprias.
Este é um ponto que nos dias que (literalmente) correm, parece-me essencial nesse encantamento perdido...
É que afinal de contas, mesmo sem a ideia de inferno, até parece existir um certo medo... pois muitos cristãos não estão, na verdade, a pensar sequer em perder a sua vida para ganhá-la...
Será ignorância? Comodismo? Fragilidade humana? Ou cobardia?
Claro que este perder a vida não é suicídio nem eutanásias ou homicídios... Também não me parece que seja um simples apelo ao altruísmo ou à abolição do egoísmo... É ainda mais que isso, e infelizmente, são poucos os que levam isto a sério...
É realmente necessário saber o que é este “perder a vida”. E o que é este “ganhar a vida”...
Só compreenderemos isto com estudo, experiência de (na) vida, oração, e muita inspiração do Espírito Santo.
Ora, será que colocando as coisas assim, há mais luz sobre o Cristo que o cristão precisa, como referiu no seu post?
Desculpe o tamanho com que o comentário (supostamente pequeno) ficou.
Obrigado pela sua atenção!
Continuação de bom trabalho no blog!
Paulo C.
Obrigado pelo seu comentário. Coloca questões interessantes e espero responder-lhe em breve.
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