sábado, 22 de maio de 2010

Confronto sobre verdade, fé e ateísmo

Existe Deus? Um confronto sobre verdade, fé e ateísmo
Joseph Ratzinger e Paolo Flores d’Arcais
Pedra Angular
158 páginas

A eleição do Cardeal Ratzinger para Papa provocou um fenómeno editorial curioso, que foi o do aparecimento dos títulos que têm um único autor mas com dois nomes. Refiro-me, obviamente, ao autor Joseph Ratzinger / Bento XVI. Isso tanto aconteceu com títulos escritos por Joseph Ratzinger enquanto era somente cardeal como nas obras elaboradas já após a eleição de 2005, como é o caso do primeiro volume de “Jesus de Nazaré”, na editora A Esfera dos Livros. Compreende-se a estratégia comercial no primeiro caso: lembrar que o antes cardeal-teólogo agora é Papa para vender mais. Mas no segundo caso, o nome duplo parece ter outra finalidade: levar a pensar que aquele que agora é Papa escreveu um livro como teólogo. Caso contrário bastaria pôr “Bento XVI”, como em qualquer outra obra ou documento. Mas esta situação – aquele que é Papa escrever como teólogo – não deixa de causa alguns pruridos, no mínimo, ao leitor, a quem é estudante de teologia e principalmente aos especialistas de cristologia. Pode-se debater a obra “Jesus de Nazaré”, de Joseph Ratzinger / Bento XVI, como a de um teólogo comum? Pode-se peneirá-la à procura de erros ou opiniões discutíveis? Serão questões interessantes para continuar a reflectir quando se aproxima a publicação do segundo volume sobre Jesus Cristo.

Atitude igualmente compreensível é a de ler uma obra escrita pelo cardeal, sabendo que ele hoje é Papa, e nela procurar pistas para interpretar o pontificado. Tal leitura dará naturalmente com incongruências, sendo a mais flagrante a defesa da exclusão da entrada da Turquia na União Europeia enquanto cardeal e teólogo e a defesa da inclusão já como Papa. Valerá para Bento XVI o que o cardeal Ratzinger escreveu quando João Paulo II ainda estava entre nós: “Quando o Papa fala, ele não fala em seu próprio nome. Naquele momento, em última análise não contam nada as teorias ou as opiniões privadas que ele tenha elaborado no decurso da sua vida, por mais elevado que possa ser o seu nível intelectual. O Papa não fala como um simples homem erudito, com o seu eu privado ou, por assim dizer, como um solista sobre a cena da história espiritual da humanidade. Ele fala atingido pelo «nós» da fé de toda a Igreja, por detrás do qual o eu tem o dever de desaparecer. Vem-me à mente, a este propósito, o grande Papa humanista, Enea Silvio Piccolomini, o qual, como Papa, devia por vezes dizer, apoiando-se precisamente no «nós» do seu magistério pontifício, coisas em contradição com as teorias daquele douto humanista que precedentemente tinha sido ele próprio. Quando lhe eram assinaladas estas contradições, costumava responder: “Aeneam reicite, Pium recipite” (Deixai ficar Eneas, sigam Pio). Num certo sentido, não é por um fenómeno inócuo se o «eu» substitui o «nós»” (Joseph Ratzinger in “João Paulo II. O meu venerando predecessor”, ed. Gráfica de Coimbra 2, pág. 13).

São estes os óculos para ler os livros de Ratzinger antes de ser Papa? Os óculos de “Aeneam reicite, Pium recipite”? Talvez. Entre o antes e o depois da eleição há continuidade e descontinuidade. Mas uma passagem como esta de “Existe Deus?”, não significará que Bento XVI nunca convocará um concílio? A passagem: “Parece-me que [o Concílio Vaticano II] foi um acontecimento providencial, necessário, mas… com a comparação da intervenção cirúrgica queria ainda mostrar que um acontecimento benéfico não implica logo, necessariamente, os efeitos positivos esperados. E tenho um ilustre predecessor, o grande teólogo Gregório de Nazianzo, justamente denominado como “o” teólogo. Havendo sido convidado pelo imperador para o Concílio de Constantinopla, depois das anteriores experiências que tivera com outros concílios, disse: «Nunca mais irei a um Concílio, porque só cria confusão», tal era o seu desespero. Eu não me expressaria assim, mas foi ele que o disse; um Concílio, como mensagem, como acção, digamos como intervenção profunda na vida das Igrejas, é necessário, mas ao mesmo tempo suscita também novas complicações… e estamos numa fase em que temos de enfrentar essas complicações” (pág. 69-70).

A presente obra é um conjunto de textos, sendo o mais extenso o debate entre Joseph Ratzinger e o filósofo Paulo Flores d’Arcais, ateu. Intitulado “Existe Deus?”, o debate aborda assuntos como a racionalidade da fé, o iluminismo, fé/razão, João Paulo II, a fé na Europa, entre outros. Surge a seguir um ensaio de Ratzinger sobre “A Verdade Católica” e uma conversa de Ratzinger e Patrick Bahners e Christian Geyer. Por fim, o ensaio de Paulo Flores d’Arcais sobre “Ateísmo e Verdade”. O debate principal teve lugar em Roma, a 21 de Fevereiro de 2000, perante cerca de duas mil pessoas no Treatro Quirino, promovido pela revista de debate “MicroMega”. Algumas seguiram-no em plena rua com um amplificador improvisado.

Com os ateus inteligentes aprende-se sempre. Paulo Flores d’Arcais lembra-nos que também há uma tradição cristã pouco dada ao diálogo com a razão. Prescinde dela. Não certamente a de Ratzinger, sempre preocupado com conciliação fé /razão. Pensemos no Paulo do “escândalo para os judeus e loucura para os gentios”, de Tertuliano, Lutero, Pascal ou Kierkegaard. O debate nunca acaba.

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