sábado, 1 de maio de 2010

Anselmo Borges: Católicos em autogestão?

No DN de hoje (aqui), Anselmo Borges escreve sobre os católicos portugueses. Não responde a "o que é ser católico", ao contrário do que dá a entender na primeira frase. Mas questiona sociologicamente os católicos portugueses. "Católico" tanto é adjectivo como substantivo. Parece-me que Anselmo Borges pega no "católico" enquanto adjectivo, como qualificativo de cristão. O mais importante está na base, no ser cristão, segundo a sua visão. Mas quem quer saber o que é ser católico talvez não esteja muito interessado em saber primeiro o que é ser cristão. Aliás, por absurdo que pareça, no limite podemos colocar a questão: pode haver católicos que não sejam cristãos? Temo que sim.


Pessoas da política e dos media pediram-me para escrever um texto sobre o que é ser católico. Porque por vezes "discutem entre si, acusando-se mutuamente: quem é o católico?"

Apesar da dificuldade, fica aí uma tentativa simples, quase ingénua.

Afinal, o católico é antes de mais o cristão baptizado na Igreja Católica. O acento tem de estar no "cristão". Ora, quem é o cristão?

O fundamento da espiritualidade cristã não se encontra em dogmas por vezes incompreensíveis nem numa grande teoria ou num sistema eclesiástico. O modelo de vida cristão - Hans Küng insiste justamente nisto - é pura e simplesmente Jesus de Nazaré como o Messias, o Filho de Deus. Na vida e na morte, o fundamento da autêntica espiritualidade cristã é Jesus Cristo, um desafio vivo para a nossa relação com os homens e com o próprio Deus, que se tornou orientação e critério para milhões de homens e mulheres em todo o mundo. Cristão é aquele ou aquela que na sua vida e também na morte se esforça por orientar-se na prática por este Jesus Cristo e o seu Evangelho do Reino de Deus. A cruz só se entende à luz da sua vida e dos conflitos que criou. Mas os cristãos são transportados pela convicção de fé de que a sua morte não foi o fim: a ressurreição significa que Jesus está em Deus, que morreu não para o nada, mas para a Realidade mais real, isto é, foi recebido na vida eterna de Deus. Ele é, assim, o modelo cristão de vida em pessoa.

De qualquer modo, o cristianismo explicita-se numa doutrina, e aí há, como reconheceu o Concílio Vaticano II, uma hierarquia de verdades. Por exemplo, a infalibilidade papal ou a virgindade de Maria não pertencem ao seu núcleo. A ressurreição, que não é a reanimação do cadáver, mas a confissão de fé de que, na morte, o homem não encontra o nada, mas a vida em Deus, sim. Ora, ainda há dias se publicava um estudo no qual se conclui que cerca de 25% dos portugueses não acreditam na vida para além da morte e entre eles estão 10% de católicos que vão por regra à Missa e 26% dos que o fazem ocasionalmente.

A prática do culto, concretamente a participação na Eucaristia ao Domingo, anda por pouco mais de 20%. Daí, a expressão vulgar de tantos se afirmarem católicos não praticantes, entendendo-se por isso que ainda baptizam os filhos e têm referências católicas, mas não vão à Missa nem se confessam.

A expressão "católico não praticante" é tremendamente equívoca, porque, significando a não prática cultual, suporia a prática dos valores apresentados por Cristo. Ora, precisamente aqui, começam perguntas tremendas, que mostram que, afinal, tanto no domínio doutrinal como no cultual e praxístico, a grande maioria dos católicos em Portugal vive em autogestão.

As estatísticas dizem que 88% dos portugueses se afirmam católicos.

Então, no plano da praxis, são inevitáveis muitas perguntas, de que se dá exemplos. Parta-se do princípio de que um católico, no referendo, poderia ser favorável à descriminalização (não à liberalização) do aborto e de que é legítimo o uso responsável de anticonceptivos e do preservativo. Pergunta-se: a irresponsabilidade de tantos milhares de abortos, pagos pelo contribuinte, é um exclusivo dos 12% não católicos?

A corrupção que campeia é um exclusivo desses 12%? É da sua única responsabilidade o não funcionamento da Justiça? E o abismo cada vez mais fundo entre os muito ricos e os muito pobres também? E os salários e prémios escandalosos de gestores? E a situação desgraçada na educação?

Fala-se muito na crise de valores, no relativismo moral e cultural, na perda de referências. Jesus disse que não se pode adorar o Dinheiro, que aparece agora como motor quase exclusivo da vida. Perdeu-se o hábito do trabalho, mente-se descaradamente em todas as instâncias, afundamo-nos no consumismo alarve. Passados 36 anos do 25 de Abril, há quem tema o pior: numa democracia triste e impotente, estar-se a chegar ao point of no return na caminhada para o abismo, no plano económico, social, político. Os únicos responsáveis são os tais 12%?

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