domingo, 8 de novembro de 2009

A hilariante interpretação literal

Já foi dito e repetido que ninguém fez tanto pela Bíblia, recentemente, ainda que de modo involuntário, como Saramago, ou melhor, como as declarações de Saramago. Tanto, em termos mediáticos e de interesse popular, não fizeram, por exemplo, o Ano Paulino, decretado por Bento XVI para 2008 e 2009, e o Sínodo da Palavra (Roma, Outubro de 2008). E digo que tanto não fizeram porque não ouvi ninguém na rua a discutir se Paulo tinha ou não caído do cavalo ou se “a história é prova de como a palavra de Deus é viva” (frase do início dos lineamenta do Sínodo). Mas ouvi, num café, no intervalo dum jogo da Liga Europa, uma discussão sobre a inspiração bíblica, em concreto sobre a definição do cânone no Concílio de Trento. Não conhecia ninguém e não me meti na conversa. Ouvi-a uns bons cinco minutos, na mesa ao lado, até começar a segunda parte do jogo num canal desportivo. E, pela aparência, não era um letrado que falava, mas alguém da working class.

Exemplos do interesse bíblico com génese em Saramago são os últimos números do JL (n.º 1020) e da "Ler" (n.º 85).

Na sempre hilariante “Diacrónica”, de Onésimo Teotónio de Almeida, este açoriano professor nos EUA escreve ("Ler", p. 93):

“Nos States, a assanhada moderadora de um programa radiofónico de linha aberta decretou a homossexualidade uma perversão, apoiando-se na Bíblia, mais precisamente no Levítico, capítulo 18, versículo 22: «Tu não te deitarás com um homem como te deitarias com uma mulher: seria uma abominação». Um ouvinte reagiu por carta, sim senhora, assim é que é, defender a moralidade pública com coragem impondo a Lei de Deus. Depois, todo falinhas mansas, pede conselho em jeito de perguntas inocentes. O leitor internetional já conhece certamente, mas para benefício dos outros cito aqui e ali. «Gostaria de vender a minha filha como serva, tal como vem indicado no livro do Êxodo, cap. 21,7. Na sua opinião, qual seria o preço mais justo? O Levítico, também, no cap. 25,44, diz que posso ter escravos, homens ou mulheres, desde que sejam comprados me nações vizinhas. Um amigo meu afirma que isto é aplicável aos mexicanos, mas não aos canadianos. Poderia a senhora esclarecer-nos sobre este ponto? Tenho um vizinho que trabalha ao sábado. O êxodo (25,2) afirma claramente que ele deve ser condenado à morte. Sou obrigado a matá-lo eu próprio? Outra questão: o Levítico (21,18) diz que não podemos aproximar-nos do altar de Deus se tivermos problemas de visão. Eu preciso de óculos para ler. A minha acuidade visual teria de ser de cem por cento? Seria possível rever esta exigência no sentido de baixarem o limite? Um último conselho: o meu tio não respeita o que diz o Levítico (19,19), plantando dois tipos de culturas diferentes no mesmo campo, da mesma forma que a mulher dele usa roupas feitas de diferentes tecidos: algodão e poliéster. Além disso, ele passa os dias a maldizer e a blasfemar. Será obrigatório levar o processo até às últimas consequências reunindo todos os habitantes da aldeia para lapidarmos o meu tio e a minha tia, como manda o Levítico (24,10-16)». E por aí foram terminando humildemente pedinte: «Confio em pleno na sua ajuda»”.

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