Para o José Rui Teixeira (Equinócio de Outono)
Quando se fala de arte sacra contemporânea (assumamos que aqui que em vez de “sacra” pode ser “religiosa” ou “de inspiração cristã”), o elemento consensual é o “contemporânea”. O resto é discutível. Arte é o que dizem que é arte. E quem diz o que é arte são os artistas, os galeristas, os críticos e os consumidores de arte. É demasiada gente para um consenso.
E quem diz o que é sacra? (E “sacra” não é, claramente, o mesmo que “religiosa” ou “de inspiração cristã”). Talvez os artistas e principalmente os que a compram, ou seja, os responsáveis pelos espaços sagrados, que geralmente estão dependentes ou pelo menos relacionados com comissões de arte sacra. Sacro remete, sem dúvida, para o institucional. Haverá arte sacra sem relação com o espaço ou tempo litúrgico?
Não sei se Bill Viola (Nova Iorque, 1951) faz arte sacra. Mas o primeiro trabalho que dele vi (num número da revista Exit, que tinha como temática “Censurados / Censored” (n.º 8, 2002), estava num espaço sagrado, a catedral de Durham (Inglaterra). A revista só tem textos e imagens. Mas num daqueles programas sobre Jesus Cristo que passam no segundo canal por altura da Páscoa (2003? 2004? 2005?) pude ver o vídeo: um homem nu, filmado de frente, vem à tona da água, ganha a cor humana, respira, volta a ficar tapado pela água, vai ao fundo, vem à tona da água…
Um homem, água, nascer e morrer, respirar, ar, braços abertos. Tudo parecia crístico. Um homem, Cristo, água, baptismo, nascer, morrer, ressuscitar, respirar, Espírito, cruz. A instalação chama-se “The Messenger”. É de 1996.
Fui reler as notas sobre a exposição de Durham, na Exit. Não foi o deão que a encomendou. O deão só concordou que a instalação de fizesse na catedral. Mas como tinha um homem nu, teve de haver cautelas. Colocaram um aviso que evitasse um encontro traumático. “Pensaram, por exemplo, numa pessoa jovem que poderia ter sofrido abusos sexuais”, diz Viola.
É arte sacra? Não foi encomendada pela instituição ligada ao sagrado (um furo na minha teoria). Mas é arte é em espaço sacro. A arte sacra é capaz de ser a arte mais instrumentalizada de todas, no sentido em que se pretende que nos reconduza ao sagrado (nos religue). Reconduz ao sagrado o “The Messenger” de Viola? Durante uns dias não me saiu da cabeça o alívio de ver o homem respirar. Ele não parecia sofredor (à maneira do Jesus de São João). Mas de alguma maneira parecia estar num ciclo de morte-ressurreição interminável. Os cristãos não têm eterno retorno. A ressurreição de Cristo, o “selo da criação”, como dizia Camões, é uma lança cravada no decurso da história que garante que o tempo não volta atrás (creio que esta ideia vem de Santo Agostinho).
O que me diz este "Mensageiro", que me pareceu ao mesmo tempo a Mensagem? Lembrei-me daquele pedido de São Paulo, de que temos de completar em nós a paixão de NSJC. Enquanto houver um ser humano, aquele homem vai estar a morrer e ressuscitar por nós. Ainda que tudo já tenha acontecido.
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