terça-feira, 4 de agosto de 2009

João Paulo II visto por Bento XVI

No domingo apontei para este livro. Não sei se cabe no lote dos livros úteis. Não certamente nos de referência, para consulta. Caberá antes no dos curiosos: “Deixa cá ver o que Bento XVI diz do seu venerando predecessor”. E ainda nos de “deixa ver se te apanho”. Este “te” refere-se a Sua Santidade Bento XVI. “Portanto, deixei-me cá ver, Sua Santidade, se vos apanho”.

O actual Papa não é tão dado ao humor como o anterior. Até há um livro de anedotas de e sobre João Paulo II, bem na linha das "florinhas" de S. Francisco. Coisa que só por milagre aparecerá em relação a Bento XVI. Mas creio que ele próprio compreenderá a minha ideia. É que se um Papa fala do anterior, só uma mente distraída ou demasiado ingénua não perguntará: E isto também se aplica ao actual?

O livro reúne textos escritos quando Joseph Ratzinger já se sentava no trono de Pedro e outros de quando João Paulo II ainda estava entre nós. Estes são os mais interessantes para avaliar o actual Papa. Foram escritos com mais independência, quando ainda não imaginava que poderia suceder a João Paulo II.

No primeiro ensaio, como balanço de duas décadas de pontificado joãopaulino, escreve o que, possivelmente, será a passagem mais valiosa para catalogar este livro na tal estante (Bento XVI fornece muitos para esta secção, porque escreveu bastante como teólogo).

“Quando o Papa fala, ele não fala em seu próprio nome. Naquele momento, em última análise não contam nada as teorias ou as opiniões privadas que ele tenha elaborado no decurso da sua vida, por mais elevado que possa ser o seu nível intelectual. O Papa não fala como um simples homem erudito, com o seu eu privado ou, por assim dizer, como um solista sobre a cena da história espiritual da humanidade, Ele fala atingido pelo «nós» da fé de toda a Igreja, por detrás do qual o eu tem o dever de desaparecer.

Vem-me à mente, a este propósito, o grande Papa humanista, Enea Silvio Piccolomini, o qual, como Papa, devia por vezes dizer, apoiando-se precisamente no «nós» do seu magistério pontifício, coisas em contradição com as teorias daquele douto humanista que precedentemente tinha sido ele próprio. Quando lhe eram assinaladas estas contradições, costumava responder: Aeneam reicite, Pium recipite” (Deixai ficar Enea, sigam Pio). Num certo sentido, não é por um fenómeno inócuo se o «eu» substitui o «nós»”.

Joseph Ratzinger in “João Paulo II. O meu venerando predecessor” (Gráfica de Coimbra 2), 13

Está assim explicado porque é que o cardeal Joseph Ratzinger dizia que não havia lugar para a Turquia na União Europeia, mas Bento XVI já afirma que sim. Ou porque é que o presidente da Congregação para a Doutrina da Fé dava por terminado o diálogo com Hans Kung, mas o Papa convida-o para conversar.

Estas minhas palavras tanto podem ser uma crítica ao magistério de Bento XVI como um sinal de compreensão das suas contradições. Mas são, de certeza, sinal de uma perplexidade que penso que todos sentem no exercício de determinadas funções (“penso assim pela minha própria cabeça ou pela função que desempenho?”). Talvez esta perplexidade seja própria de todos os que assumem uma missão. E é um apelo à humildade no exercício do poder.

Este livro é sobre João Paulo II visto por Bento XVI mas em algumas páginas não posso evitar ler textos sobre “Bento XVI visto por ele próprio”.

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