(Primeiro parágrafo do prefácio:) “Se por vias humanas me abalanço a conduzir-vos às coisas divinas é necessário que o faça recorrendo a uma comparação. Mas entre as obras humanas não encontrei imagem mais conveniente ao nosso propósito do que a de alguém que tudo vê, de tal maneira que o seu rosto por subtil arte de pintura se comporta como se tudo olhasse em seu redor. Imagens destas encontram-se muitas optimamente representadas como a do archeiro no foro de Nuremberga, a que se encontra em Bruxelas no quadro preciosíssimo pintado pelo egrégio pintor Rogério, a que estás em Coblença na minha capela de Verónica, a do anjo que em Bressanone segura o brasão da Igreja e muitas outras espalhadas por todo o lado. Todavia para que vos não desfaleçais na prática que tal figura sensível exige, envio-vos, pelo afecto que vos tenho, o quadro, que pude obter, que representa a figura de alguém que olha tudo em redor, figura essa que chamo ícone de Deus. Pendurai-o num lugar qualquer, por exemplo na parede do lado norte, e colocai-vos, irmãos, à sua volta, à mesma distância dele, olhai-o e cada um de vós experimentará, seja qual for o lugar a partir do qual o contemple, que é o único a ser olhado por ele. Ao irmão que se encontra a oriente parecerá que aquele rosto olha na direcção do oriente, ao que se encontra a sul, que ele olha na direcção sul e ao que se encontra a ocidente que ele olha na direcção de ocidente”.
A Visão de Deus | De Visione Dei | Nicolau de Cusa | Fundação Calouste Gulbenkian, 1988 | 244 páginas | Tradução e introdução de João Maria André
Nicolau Krebs ficou conhecido por Nicolau de Cusa ou Cusano, por ter nascido em Cusa (Tréveris, Alemanha). Viveu de 1401 a 1464, ano da morte de Pio II, com quem colaborou (e esse foi o pretexto para me lembrar deste livro). A sua obra mais conhecida é “Da Douta Ignorância”.
“A Visão de Deus” é “um escrito cujo estilo, atingindo momentos de rara beleza, procura colocar o leitor num contacto privilegiado com a experiência mística da sua finitude imersa no horizonte inexaurível e inatingível da plenitude infinita de Deus e por ela iluminada no seu tacteante desejo de auto-superação numa projecção permanente para a fonte inesgotável de um olhar que é criação, vida e acto absoluto de todas as possibilidades da visão humanamente contraída”, escreve João Maria André na “Introdução” (pág. 103).
A obra foi dirigida aos monges beneditinos de Tegernsee, cidade bávara na fronteira com a Áustria. Em cartas datadas de 22 de Setembro de 1452 e de 14 de Setembro de 1453, Nicolau de Cusa promete enviar à comunidade monacal “uma reprodução do rosto de Cristo, cujo olhar parecia fixar-se no espectador, qualquer que fosse a sua posição, e acompanhá-lo em todas as suas deslocações”, escreve João Maria André (pág. 102-3). No final de 1453 (o ano da queda de Constantinopla), os monges recebem a imagem e o "De Visione Dei".
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