sábado, 27 de abril de 2013

Anselmo Borges: "Mercadodiceia, ética e utopia"

Texto de Anselmo Borges no DN de hoje.

Primeiro, foi a Providência divina. Deus, na sua omnipotência e infinita bondade, acompanha a humanidade no combate contra o mal - Deus é o anti-Mal -, de tal modo que tem fundamento a esperança do triunfo final do bem. Depois, pela secularização da Providência, a própria história aparece como justificando-se a si própria, no quadro de uma historiodiceia: "A história do mundo é o julgamento do mundo." Finalmente, os mercados são a nova presença do divino, de tal modo que através do seu jogo, mediante uma "mão invisível", tudo se conjuga para que, embora cada um lute pelos seus próprios interesses, dessa luta resulta o maior bem para todos. Sequência: teodiceia (justificação de Deus frente ao mal), historiodiceia (justificação da história), mercadodiceia (justificação dos mercados) - Adriano Moreira utiliza a expressão: "Teologia do Mercado".


No quadro do neoliberalismo, o economista Riccardo Petrella resumiu as novas Tábuas da Lei (sigo a síntese do teólogo Juan J. Tamayo): não podes resistir à globalização dos mercados e das finanças - deves adaptar-te a isso. Deverás liberalizar completamente os mercados, renunciando à protecção das economias nacionais. Todo o poder pertence aos mercados: as autoridades políticas transformar-se-ão em meras executoras das suas ordens. Tenderás a eliminar qualquer forma de propriedade pública, ficando o governo da sociedade nas mãos de empresas privadas. Tens de ser o mais forte, se quiseres sobreviver no meio da competitividade actual. Renunciarás à defesa da justiça social, superstição estéril, e à prática do altruísmo, igualmente estéril. Defenderás a liberdade individual como valor absoluto, sem qualquer referência ou dimensão social. Defenderás o primado da economia e da finança sobre a ética e a política. Praticarás a religião do mercado com todos os seus rituais, sacramentos, pessoas, livros e tempos sagrados. Não terás em conta as necessidades dos pobres e excluídos, gente a mais, pois não gera riqueza. Porás a Terra ao serviço do capital, que é quem maior rendimento pode tirar dela, sem atender a considerações ecológicas, que só atrasam o progresso.

Perante esta situação que leva à catástrofe, impõe-se uma alternativa, que Tamayo sintetiza nalguns mandamentos, "orientados para a construção da utopia de uma sociedade alternativa".

Ética da libertação, com o imperativo moral: "Liberta o pobre, o oprimido." Ética da justiça: "Age com justiça nas relações com os teus semelhantes e trabalha na construção de uma ordem internacional justa." Num mundo onde impera o cálculo, o interesse próprio, ética da gratuitidade: "Sê generoso. Tudo o que tens recebeste-o de graça. Não faças negócio com o gratuito." Ética da compaixão: "Sê compassivo. Colabora no alívio do sofrimento." Ética da alteridade e da hospitalidade: "Reconhece, respeita e acolhe o outro como outro, como diferente. A diferença enriquece-te." Ética da solidariedade: "Sê cidadão do mundo. Trabalha por um mundo onde caibam todos." Num mundo patriarcal, de discriminação de género, ética comunitária fraterno-sororal: "Colabora na construção de uma comunidade de homens e mulheres iguais, não clónicos." Ética da paz, inseparável da justiça: "Se queres a paz, trabalha pela paz e pela justiça através da não-violência activa." Ética da vida: "Defende a vida de todos os viventes. Vive e ajuda a viver." Ética da incompatibilidade entre Deus e o dinheiro, adorado como ídolo: "Partilha os bens. A tua acumulação desregrada gera o empobrecimento dos que vivem à tua volta." Num mundo onde impera a lei do mais forte, ética da debilidade: "Trabalha pela integração dos excluídos, são teus irmãos." Ética do cuidado da natureza: "A natureza é o teu lar, não a maltrates, não a destruas, trata-a com respeito."

Utopia? Não é a função da utopia criticar o presente e transformá-lo? Para evitar a tragédia daquela estória: "Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra. Um dia encontraram-se num caminho muito estreito e como não gostavam uma da outra devoraram-se mutuamente. Quando cada uma devorou a outra não ficou nada." (Ana Hatherly).

1 comentário:

Anónimo disse...

Concordo com toda a sequência das éticas sugeridas, aliás de que serve juntar tanto se tudo isso no final se transforma em estorvo ? Apenas levaremos o que demos e não aquilo que acumulámos, mais: no final vamos lembrar não o que possuímos ou deixamos a de possuir mas o que amámos ou deixamos de amar. Posto isto como controlar os excessos das economias de mercado? Impondo regimes autoritários puritanos ? Fechar as fronteiras? Abandonar o comércio mundial ? Testar as absurdas receitas das Economias de planeamento estatal com planos anuais e quinquenais etc? Bem, restam dúvidas e mais dúvidas, em todo o caso e percebendo eu mt pouco de economia, parece-me que muito desta 'histeria' é tb fruto da incapacidade do mundo ocidental aceitar que se calhar chegou a hora dos outros povos também terem direito a alguma riqueza, pois fala-se muito em crise mas é sobretudo no Ocidente pois nas outras geografias nunca tanta gente saiu da pobreza. Quer-me pois parecer que a tão atacada globalização entre outras coisas terá permitido os povos do terceiro mundo finalmente também poderem comerciar e como isto funciona em vasos comunicantes pelo menos está a registar-se algum equilíbrio. Não sendo eu de todo apoiante do capitalismo selvagem e desregrado , não posso deixar de pensar que estes ataques ao neoliberalismo e à globalização esquecem com frequência este 'pequeno ' pormenor. Só para concluir, claro que considero que no meio disto se cometem enormes barbaridades , mas gostaria mesmo é que em vez de utupias apresentassem soluções. Eu por mim já que vivo num pequeno país prefiro então que ele seja considerado uma aldeia entre muitas outras aldeias pelo mundo fora e desta forma a minha capacidade e creatividade não se limite nunca à dimensão da minha aldeia mas antes q se possa expadir pelo globo. Se eu fôr um escritor ou um músico prefiro vender no mundo inteiro a ficar limitado à minha aldeia....
Jacome

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