Morreu Moebius. Morreu Tonino Guerra. Morreu Tabuchi. Não
sei se algum deles era católico. Ou cristão. Mas encontrava em todos eles, de
vez em quando, um vislumbre de transcendência. Talvez não seja possível ser artista sem
lidar, ou pelo menos sem pretender lidar com o sublime. E o sublime abre para o infinito.
Moebius desenhou uma vez um ser intemporal que tinha traços
da representação tradicional de Deus-Pai. Durante uns tempos usei a imagem como
marcador de livros.
Tabucchi, que em Portugal chegou a apoiar políticas radicais,
escreveu um dia sobre de Zanotelli, missionário que admirava e que, com a
facilidade da Internet, também eu quis conhecer (António Marujo entrevistou-o;
ver volume I de “Deus vem a Público”).
De Tonino Guerra li as “Histórias Para uma noite de calmaria”
(na Assírio&Alvim) antes de saber que foi professor da primária durante a
II Guerra Mundial, que esteve preso num campo de concentração, que foi argumentista de
Antonioni e Fellini. Numa das suas histórias, diz um camponês a um caçador atormentado
– e a frase vale por si, embora feche um conto: “É preciso respeitar o mistério
quando se tem a sorte de o encontrar”.
Do livro acima referido, deixo aqui, na íntegra, o magnífico “A Cor
do Tempo”.
O convento tinha a forma de uma margarida. Desprendendo-se de uma torre cilíndrica, cada cela formava uma pétala. Entre uma e outra cela, no pouco espaço de muro da torre que permanecia descoberto, havia uma fenda, fechada por um vitral colorido. Conforme a deslocação do sol em redor do convento, no interior do quarto cilíndrico, havia uma luz com a cor que jorrava do vitral que protegia a fenda atingida pelos raios do sol. Se a luz era azul era meio-dia, cor de laranja era já hora da ceia e assim para todas as outras horas do dia. De noite, a lua substituía o sol. No Inverno, com o céu encoberto, os monges passavam dias e dias sem saber a hora exacta e eram felizes porque as suas vidas caminhavam de modo desordenado, especialmente no momento do encontro para o canto nocturno. Ou o levantar era demasiado cedo ou demasiado tarde e cada um acabava, assim, por cantar sozinho e os outros depois ou antes dele. Os cânticos solitários inundavam o céu até ao amanhecer.
3 comentários:
Não sei se Tonino Guerra era católico ou cristão, mas dois dos seus livros ("O Mel" e "Histórias para uma Noite de Calmaria", também publicados pela Assírio) foram traduzidos por um padre, actualmente a exercer as funções de oficial do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, na Santa Sé: Mário Rui de Oliveira.
Obrigado pela informação, Rui.
bela citação sobre o Tempo, vou utilizá-la no Estação Cronográfica
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