sábado, 24 de dezembro de 2011

O maior gesto comunicativo de sempre



A minha meditação sobre as leituras de Natal ("Missa do Dia", lê-las aqui):


Deus comunica comunicando-se

1. Há um provérbio chinês que diz que quando um dedo aponta para a lua, o tolo olha para o dedo. Na lógica do provérbio, não devemos confundir os embrulhos, os copos, os meios com os conteúdos, as bebidas, as finalidades. Daí que a primeira frase que Isaías nos apresenta na primeira leitura Missa do Dia de Natal aparentemente não faça sentido. Os pés do mensageiro são os mesmos, nem mais nem menos belos, sempre com muito pó dos caminhos semidesérticos, quer traga uma boa, quer traga uma má nova. E no entanto, qual o/a amante que não teve vontade de beijar o carteiro, no tempo em que as cartas de amor não tinham a forma de sms e eram entregues pelo mensageiro, a pé ou de bicicleta? Como não recompensaria o pai misericordioso quem trouxesse notícias do filho pródigo?

Os pés do mensageiro são belos, mesmo que feridos pelas longas caminhadas, porque a mensagem é ainda mais bela e tudo contagia pelo facto de ser proclamada. E o mais importante da notícia é: “O teu Deus é rei”, diz o mensageiro. A mensagem foi proclamada entre o povo cativo na Babilónia e significaria isto: “Deus é quem manda, vence os ídolos e vai repor a ordem nos poderes do mundo (através de Ciro). Acabou o tempo de «o teu rei é deus». Em breve o povo regressará a Jerusalém, à sua pátria, ao seu lar”. Para o exilado não há palavra mais bonita do que “pátria”. E era a isso que “Deus” soava para os judeus no cativeiro.

2. Não é preciso ser muito pessimista para conceber que a humanidade está num cativeiro. Basta ler ou ver as notícias de todos os dias. Está num cativeiro em que é cativa de si própria, dos seus erros e ilusões, da sua cegueira, da sua vontade incontrolada, da sua liberdade mal usada, das suas assimetrias de rendimentos, dos seus abusos de poder. A crise actual, localizada no Ocidente, é apenas mais um episódio da série dolorosa. O diagnóstico é reservado. Há cura? Haverá libertação? Uns dirão que é uma questão de tempo, que a humanidade ainda não atingiu o estado adulto. Outros dirão que se trata do desequilíbrio próprio de quem caminha, que a humanidade tem em si mesma a salvação que há-de desabrochar. A Bíblia diz algo diferente. Diz que a salvação bem de fora, ainda que não nos seja estranha. “Nestes dias, que são os últimos, [Deus] falou-nos por ser Filho”, diz Heb 1,2. Cansado de mandar mensageiros continuamente ignorados, enviou o seu Filho, que é também a sua Palavra, o Logos, o Verbo, que é Deus com Ele. Comunicou comunicando-se. Diz o Evangelho que “o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1,1), para depois dar o salto do maior gesto comunicativo de sempre, ainda maior do que a poderosa palavra genesíaca dos primeiros dias da Criação (porque, como diz Hebreus, também foi pelo Filho que o universo foi criado), que dividiu a história em duas parte e continua a ser pedra de toque para muitas vidas: “O Verbo fez-se carne e habitou entre nós”.


A humanidade que não se iluda. Se não se abrir à Palavra que vem do alto mas não é exterior a ela, porque se fez carne, parecerá sempre como o tolo do Barão de Munchausen, que estando a afundar-se num pântano, salvou-se puxando-se a si mesmo pelos cabelos. Tolo e mentiroso.

3. Ouvir no dia de Natal o prólogo do Evangelho de S. João, para quem não foi à Missa do Galo ou à da Aurora, é capaz de gerar uma ligeira sensação de vazio. Onde está o relato do Natal? O Menino? Os anjos? Os pastores? Mas este é um dos textos mais belos do Novo Testamento, um hino, uma meditação escrita quando os cristãos já tinham dado um salto dos factos incertos (que Jesus nasceu, sem dúvida que nasceu; mas onde?) para os símbolos (a cidade de David é Belém, que quer dizer “casa do Pão”; se Jesus é o messias e pão da vida, só pode ter nascido em Belém) e dos símbolos para o sentido mais profundo da fé (na Páscoa da morte e ressurreição, Jesus revela-se como o Messias que sempre foi desde o nascimento e ainda antes do nascimento, porque quem é Deus é sempre Deus).

O Evangelho de João olha para Jesus de outra maneira. Se os três sinópticos como que são uma subida para chegar à conclusão de que Jesus é o Cristo-Deus, com João o percurso é inverso: o Verbo, que desde sempre esteve com Deus, desce à humanidade. É comunicação de Deus.

Este é o Evangelho para quem já percebeu que em Jesus o mensageiro e a mensagem coincidem porque é o Verbo de Deus. Quando o dedo aponta, não somos tolos se olharmos para o dedo e dermos com o dedo de Jesus. Ele é a última e definitiva mensagem. Não é o dedo que aponta, mas a mão estendida do encontro de Deus com a humanidade.

4. Por Ele marcharam os passos dos legionários,
As velas dos barcos por Ele se tinham estendido
Por ele os grandes barcos de Outono tinham luzido,
Por ele se dobraram as velas nos estuários.
(…)
Os passos de Dário tinham marchado por Ele,
Era por Ele que esperavam no fundo da Pérsia,
Era por Ele que esperavam numa alma dispersa,
Ele é o Senhor de ontem e de hoje.
E os passos de Alexandre por Ele tinham marchado
Do palácio paternal às margens do Eufrates.
E por Ele o último sol tinha luzido
Sobre a morte de Aristóteles e a morte de Sócrates.
(…)
As regras de Aristóteles tinham marchado por Ele
Do cavalo de Alexandre às épocas escolásticas.
E o ascetismo e a regra luziram por Ele
Das regras de Epicuro até às regras monásticas.

(Excerto de um poema de Charles Péguy)

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito embora tenha sido criada na religião católica, e participado ativamente dessa religião durante muitos anos, o distanciamento foi inevitável porque as minhas perguntas foram todas mal respondidas. Entretanto, sem querer, esse espaço chegou até mim e, de forma despretensiosa, tem me dado algumas respostas...eu agradeço pelo olhar extremamente inteligente que você lança sobre a Igreja e por transmiti-lo a todos nós.

Jorge Pires Ferreira disse...

Obrigado pelo seu comentário. Espero que continue sempre a ter perguntas e que mesmo alguma resposta encontrada neste blogue sirva para questionar ainda mais.

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