O que de modo grave infectou o cristianismo foi a doutrina infausta do pecado original. Escreveu o grande historiador católico Jean Delumeau: "Não é exagerado afirmar que o debate sobre o pecado original, com os seus subprodutos - problemas da graça, do servo ou livre arbítrio, da predestinação -, se converteu (no período central do nosso estudo, isto é, do século XV ao XVII) numa das principais preocupações da civilização ocidental, acabando por afectar toda a gente, desde os teólogos aos mais modestos aldeões. Chegou a afectar inclusivamente os índios americanos, que eram baptizados à pressa para que, ao morrerem, não se encontrassem com os seus antepassados no inferno. É muito difícil, hoje, compreender o lugar tão importante que o pecado original ocupou nos espíritos e em todos os níveis sociais. É um facto que o pecado original e as suas consequências ocuparam nos inícios da modernidade europeia o centro da cena mundial, sem dúvida muito atribulado."
Quando se fala em pecado original, é necessário atender ao seu significado. A língua alemã, precisa como é, distingue entre Ursünde (o pecado originário) e Erbsünde (o pecado herdado). O autor principal do pecado original enquanto herdado foi Santo Agostinho. Para explicar o mal, também o sofrimento e a morte, postulou que no pecado de Adão e Eva todos pecaram e não hesitou em deixar cair no inferno as crianças sem baptismo.
Neste contexto, Santo Anselmo, no quadro jurídico da doutrina da satisfação, ensinou que só a morte de Cristo na cruz podia pagar a dívida infinita da culpa do pecado. Só a morte do Filho podia aplacar a ira de Deus e reconciliá-lo com a Humanidade.
Jesus, porém, não falou em pecado original.
Depois, com a doutrina da evolução, como era possível conceber o pecado dos primeiros seres humanos (quem foram os primeiros?), ainda em processo de humanização, um pecado tal que tinha transformado a natureza das coisas?
Foi Hegel que viu bem: o que se chama pecado original não é senão uma metáfora para indicar a passagem da animalidade à humanidade, da saída do paraíso da inocência da inconsciência e da fusão com a natureza à consciência de si e da mortalidade: se comerdes da árvore do bem e do mal (como podiam pecar, se ainda não sabiam do bem e do mal?), sabereis que estais nus (cada um é ele mesmo, ela mesma, separados e já não fundidos com a natureza) e que sois mortais.
Agora, é Armindo Vaz, professor da Universidade Católica, que, numa obra de profunda e ampla investigação - Em vez de "história de Adão e Eva": O sentido último da vida projectado nas origens - vem esclarecer a problemática do Génesis, capítulos 2-3.
Evidentemente, só posso deixar algumas proposições inevitavelmente fragmentárias.
1. Trata-se de um mito de origem, e os mitos de origem são etiológicos, pretendem, projectado nas origens, "compreender, interpretar, dizer o sentido último, antropológico/religioso, das coisas da vida por meio da fé". 2. Adão e Eva não existiram: são personagens míticos e não históricos. 3. O "paraíso terreal" é o "pomar da várzea"; o que existe para a fé é, em esperança, o "paraíso celeste". 4. Com Adão e Eva, pretende-se exprimir a existência complementar do homem em relação com a mulher e vice-versa. 5. A nudez não é passível de interpretação sexual; o abrir-se dos olhos pelo conhecimento do bem e do mal é o evoluir do ser humano da incivilização para a civilização e a cultura. 6. Como se pode falar em pecado ou mal moral, se ao cometer a "transgressão" o Homem ainda não gozava de "conhecimento", que só adquire precisamente no acto de "comer" o fruto proibido? 7. Com o motivo da "árvore da vida", afirma-se que não pode viver para sempre, porque a imortalidade é prerrogativa exclusiva de Deus: o Homem não pode ser como Deus. 8. Não há ligação entre mal moral e mal natural.
Concluindo, o que este mito pretende é ligar os aspectos do mundo a uma Origem ou a um Criador divinos. Deus é apresentado como sentido último de tudo o que existe.
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